quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Valdomiro Silveira: "Seo Doutor"

SEO DOUTOR
A papai, de todo o coração.


Quando na fazenda se soube que Valdóro ia aos estudos, não houve quem não fechasse muxoxo e não levantasse ombreira, porque ninguém quis acreditar: um tal dizia que menino assim,  que  até  os  catorze  anos  não  tomou  tenência  e  é  reinador  e  mexerendengo,  foge  das coisas  sérias  da  vida,  como  o  demo  da  cruz;  outro  afirmava  que  já  havia  visto  resoluções semelhantes, as quais em breve tempo se desfizeram, como as borbulhas d’água que a capivara faz  no  açude,  ao  escapar  de  uma  perseguição;  outro,  enfim,  malvado  a  mais  não  poder  ser, afiançou que o filho da patroa não deixaria a santa terra, por andar de velho derriço com a Isa,  filha de nhá Marcolina.

Por este teor e forma,  foram levando a  conversa os diabos dos  caboclos. Deu-lhes  a  notícia o Baltazar, o mais arteiro sujeito que o céu cobre, e criticou-a a seu bel-prazer: e desde que  ele  puxara  a  fieira,  os  demais  agarraram  direito  no  diz-que-diz-que.  Entrecontaram-se façanhas de arrepiar os cabelos: o andar Valdóro pelos grotões, a campear ninhos de urus, o armar-se de bodoque para martirizar os guaxes no laranjal, o judiar dos poldros e o perseguir os piriás pelos brejos. Tudo lhes veio  à  retentiva, aumentado por ûa memória que sofria os calores da imaginação: que o menino, em resumo, não era tão ruim peça como eles queriam, lá isso não era, decerto...

O Baltazar, que os encontrara no terreiro da casa da máquina, disse também cobras e lagartos à conta do patrãozinho: e a maledicência, então, por momentos, ocupou quase todas as bocas do grupo. O Marcolino saiu-se com esta: 
    
     − Vocês têm reparado nos meus garnizés? São muito lindos, mas mesmo muito... Pois não é que Valdóro às vezes cai na maluquice de vir atirar pelotas no galinheiro e os aniquila sem dó nem piedade? Aquilo é um precipício!
   
Depois teve a mão o Demétrio:

  − Você ainda não sofreu nada. Que diria se lhe acontecesse o que me aconteceu! Não faz  tempo  grande,  eu  estava  transplantando  umas  couves  na  horta,  sossegado,  sossegado,  e recebo na cabeça uma pancada terrível. Sabe o que tinha sido? Um terrão duro que o bruto me  apinchou.
  
Em seguida fez-se ouvir o Teófilo:
  
− Isso prova que ele é deveras endemoninhado, não há dúvida, e portanto não terá jeito  para a vida das leituras. Mas, se não creio que ele se vá embora, é por diverso motivo: um dia  destes  −  olhem  que  até  foi  domingo  derradeiro  −  vi  resvalar  dois  vultos  no  jardim,  que  andavam  no  seguimento  de  uma  rolinha  chumbeada.  Por  fim  pegaram  a  rolinha  e  muitos  beijos lhe correram pelas penas: mas a maior parte dos beijos sobejava do pássaro e ia de um  vulto  ao  companheiro.  Não  preciso  botar  mais  nada  na  carta:  a  Isa  e  o  Valdóro  contarão  o  resto...
 
− Ora que dois! − admirou-se o Martinho.
   
− Há cada história! − o Teófilo rosnou, com semblante enigmático.
 
− Venha daí mais uma! − pediu o Demétrio.

Mas o Teófilo conteve-se: os parceiros bem sabiam que ele não gostava de tesourar a  humanidade.  Se  narrara  aquele  fato,  aliás  com  serenidade  o  fizera,  porque  não  via  mal  no  simples  passeio  que  duas  crianças  dão  pelo  jardim.  E,  atenuando  o  acre  da  narração,  mais  ainda, concluiu:

− Rapazinho de entendimento está ali! Vocês hão de ver, se ele for mesmo! Sou muito  gente para apostar este meu dedo em como o dando faz carreira. Vocês hão de ver!

Os  outros,  contudo,  continuavam  a  fechar  muxoxos,  murchos  duma  vez,  e  alevantar  ombreiras  significativas  de  funda  incredulidade.  E  nem  bem  o  Teófilo  de  por  findo  o  seu  discurso, já o mundico levou por diante a forte teima:
 
−  Ele,  voltar  doutor  em  leis?  Capaz!  Com  estes  meus  olhos  que  aterra  há  de  comer,  tenho  visto  tanta  coisa  feia  praticada  pelo  tal  maganão,  que  não  posso  receber  esta  notícia  com  bastante  fé.  Pois  então,  um  tipo  que  é  amigo  de  atacar  as  chilenas  aí  nesses  infelizes  cabritos, passar o pialo nos novilhos, prender os alcaides com varas de visgo e os jaós com  urupucas, terá coragem de queimar as pestanas em riba dos livros? Capaz!...

Na  verdade,  não  havia  quem  assim  não  pensasse.  Houve,  porém,  no  meio  daqueles  caboclos, alguns que se quedaram à escuta, sem nada aventurar que aumentasse os rigores da  crítica. Esses, se porventura fossem novidadeiros, dariam à trela no sentido de contar que o  rapazinho chegara ao ponto, numa passada noite, de ir cantar trovas de amor inflamado sob a  janela da Isa: e a galante menina, apesar da alta hora, havia assomado à janela e deixando cair  sobre a cabeça do cantor um punhado de pétalas de flores...

Duvidaram sem razão, supondo impossível a partida. Pois o dia que se marcara para a  mesma  alvoreceu  enfim,  vindo  encontrar  prontos  os  preparativos  da  viagem.  Valdóro,  logo  que lhe entreluziu a manhã pelo teto de palhinha, acordou e soltou da cama, num movimento  resoluto; e, enquanto banhava o rosto, às pressas, a Felipa monologava na cozinha, arrumando  o café. Pombos arrulhavam no telhado, passeando por certo à roda das pombas, e as asas, que  se  lhes  estendiam  todas  em  sinal  de  cortesia,  começavam  de  rugir  com  insistência  entre  os  oitões e as telhas.
   
Da banda de fora do terreiro, o Pedrinho da Faxina gritou:
   
− Seo Valdóro, alevante-se, que as juntas já estão nas cangas e tudo se acha preparado:  a da guia pintou a manta, mas concordou comigo, e aqui está de olhos virados pro chão.
  
− Sempre essa junta da guia foi teimosa  e contadeira de história, − disse Valdóro, e  mudou logo de tom − : ó, Pedrinho, você quererá tanto bem aos meus carneiros como eu lhes  quero e tomará conta deles como se fosse eu mesmo?
    
− Sossegue que assim será!

Valdóro  saiu.  Ao  pôr  o  pé  na  taboa  de  junto  à  porta,  a  taboa  deu  de  si  em  toda  a  extensão,  e  gemeu  como  um  escoroçadouro  ou  como  uma  pessoa  atormentada  de  dores  ocultas: e o menino, que por sinal nem vinha pensando em coisas magoadas, perguntou entre  si  se  aquilo  não  seria  na  realidade  uma  lástima  pela  sua  negra  sorte.  Pulou  os  degraus  da  escadinha,  chegou  ao  terreiro,  tomou  uma  das  varas  e  começou  a  tanger  os  carneiros  dasanimados. O sol já estava de fora. Contemplando-o, de olhos tristes e semblante brusco,  Valdóro como já sentia no coração as primeiras lançadas da saudade: o que lhe amargurava  era um sentir nunca sentido, uma apertura esquisita que mal se podia explicar; parecia que  uma  corda  lhe  arrochava  metade  do  coração,  ficando  a  outra  metade  vazia  e  com  friura  de  geada.

A  neblina  da  manhã  não  se  afastava  ainda  de  sobre  os  morros:  apenas,  de  longe  a  longe,  quenturas  de  sol  a  mordiam,  dourando-a;  e  a  estrada,  que  o  arrebol  abria  naquele  flanco,  era  estreita  e  pequenina.  Valdóro,  atentando  nas  brumas,  falou,  como  se  fosse  num  solilóquio:

− As minhas aspirações também são assim, alvas, mas indecisas... Tempo chegará em  que  o  sol  as  ilumine  esplendidamente:  as  brumas  ir-se-ão  dissolvendo,  e  acima  delas  aparecerá o céu, encantado de azul.

O Pedrinho encarou nele, perdendo a cocha: viu-se em branco, sem dúvida, ao escutar  dizeres como os do Valdóro, que se inventaram para cabeças de entendimento, e não para a de  um  rude  candieiro  de  carro,  cuja  lavra  principiava  ao  amiudar  dos  galos  e  terminava  ao  empoleirar  das  galinhas.  Pelo  menos,  ia  o  pobre  candieiro  maturando  desta  sorte,  amesquinhando-se  dentro  de  si  mesmo,  fazendo-se  pequenino  em  razão  do  nhonhô  patrãozinho já se ir fazendo grandes: amigos deste volume poucos se encontram, por certo,  neste mundo, em que cada qual, ao crescer quer que os demais se lhe desmereçam e atrofiem  à sombra...

O carro, entretanto, movia-se com vagar pela estrada que o sereno da noite molhara: com vagar, que conduzia uma alma desafortunada, e almas, que tal modo se vêm, parecem até  arroubar-se  na  própria  amargura  e  demoram-se  a  contemplar  o  quadro  negro  que  os  pensamentos lhe estão a traçar lá dentro. A intercadências, uma ramada úmida vascolejava-se  ao toque os fueiros: e os dois piás, que iam sentados na mesa, recebiam nas faces o orvalho  frio, − tão absortos que nem se furtavam às vergastadas de todo minuto. E as rodas, dando de  encontro aos barrancos, soltavam gemidos fracos.

As  despedidas  (aquilo  não  passava  de  uma  viagemzinha  de  despedida)  começaram  pelo Demétrio, que assistia mesmo ao fim do pomar. Embora fosse tão cedinho, já ele estava á  porta da palhoça, arredando um cavalo pedrez. Ia botar a carona, quando Valdóro o chamou:

− Ó seu Demétrio?

− Bom dia, patrãozinho; que ventos o trazem? – perguntou ele.

− Venho receber as suas ordens: lá me vou.

− Resolve-se então duma vez?

− Duma vez.

− E não acho que pode não se acostumar?

− Não acho. Pelo contrário.

− Pois eu desejo que nhonhô seja muito feliz.

− Deus  lhe pague. E se nalguma ocasião o ofendi, desculpe, que me arrependo.

− Ah! Isso nunca! Vosmecê é que há de prender alguma falta.

− Adeus, Demétrio.

− Adeus, seu Valdóro.  Volte logo, ouviu? Mas nem tomou uma canequinha de café  com a gente...

− Obrigado, obrigado: não tenho tempo. Adeus!

− Bons ventos o levem e melhores o tragam!

Quem é que seria capaz de calcular que Demétrio ia ficar de olhos aguados, que é?  Pois ele, que tinha tantas queixas contra o rapazinho, sentia assim a partida? Sentia, sentia,  porque  uma  coisa  é  falar  e  outra  é  pensar:  e  mau  grado  a  trampolinagem  do  Valdóro,  o  Demétrio tinha-o em alta estima, vendo-o crescer ali na fazenda, alegre e sem luxo com os  pobres.  Fora  ele  até  que  ensinara  ao  menino  a  moda  do  marimbondinho  a  uma  porção  de  castigas e tiranas: chegara a esse ponto de paciência.

Um por um, todos os agregados tiveram a visita. Os carneiros, ao chegarem junto às  portas, já respiravam a custo e com afrontação. Mas era preciso que ninguém lhe esquecesse,  e  Valdóro  procurava  todos.  Quem  mais  dissera  mal,  mais  se  entristecia  com  a  retirada:  e  causava  dó  ver  como  ficavam  murchos  os  crilinhas  e  as  pequenas  caboclas  do  tempo  de  esconde-esconde  e  do  que-pau-é-este.  O  Teófilo,  o  Mundico,  o  Baltazar,  o  Martinho  e  os  outros roceiros auguravam-lhe venturas no colégio, como diziam. O Lico da Benvinda (um  dos que haviam ficado quietos, quando os demais batiam caixa no nome do Valdóro), assim  que o viu, veio logo limpando as lágrimas: e abraçou-o tanto, com tanta amizade, com tanta  tristeza, que o corpo do amigo pegou a doer.

A  derradeira  pessoa  visitada  foi  Isa.  Mas  para  essa  não  se  tornou  necessário  que  os  carneiros  parassem  à  porta  da  casa.  Enquanto,  só,  o  Pedrinho  dirigia  o  carro,  Valdóro  foi  esperá-la à beira do ribeirão, no mesmo lugar em que outrora havia armado um mundéu. O sol  já estava de queimar. As borboletas e lavandeiras sentavam perto da água, movendo as asas  com  uma  vagareza  que  era  cheia  de  preguiça.  E  o  folhudo  ingá  da  margem,  debruçando  a  ramaria  por  sobre  o  tronco,  tinha  ao  fundo  do  leito  uma  imagem  quase  misteriosa,  de  tão  sombria.  Mal  que  viu  o  vulto  do  namorado,  a  Isa  disparou  a  chorar:  o  se  Valdóro  não  começasse a beijá-la, jurando-lhe mil coisas, não era difícil que a afligida criatura chorasse  choro de sangue. Isso mesmo ela falava, no entretempo das carícias: e com forte convicção,  que  o  companheiro  deu  de  olhá-la  a  fito,  afim  de  ver  se  daqueles  amados  olhos  poderiam  brotar mágoas vermelhas. Despediram-se enfim! Ele saiu de sopetão, suando frio e com um  nó na garganta, que lh’a apertava tenazmente: e ela, desvairada pelo pesar, nada mais pôde  fazer que cair meio sem sentidos junto à raiz do ingazeiro. Os capixingüis e cambarás-de-lixa  permaneciam imóveis, como se a imensa dor da pobre os tivesse comovido.

À hora em que a comitiva saiu, numerosa e barulhenta, a mãe de Valdóro encostou-se   à janela da varanda: ficou a olhar a poeira que  a cavalgada levantava  ao ar, quando já não  podia ver filho muito querido; através do sofrer que a pungia, brilhava a esperança no futuro,  e  ela  como  que  se  via  mais  refrigerada,  ao  antever  a  volta  daquele  estremecido  caboclinho  feito doutor. O pai de Valdóro acompanhava a espaços os cantos da boca. Mas os sentimentos dos pais são coisas que não se descrevem...

Dobraram-se seis anos.

Alvoreceu  um  dia,  como  todos  os  dias  alvorecem,  vermelho  para  as  bandas  do  nascente, cor de ouro para as bandas do ocaso, o qual dia já encontrou meio mundo acordado  na fazenda. Havia um reboliço em cada canto a azáfama pela casa inteira. A mãe de Valdóro,  diligente  e risonha, andava dando ordens na  cozinha, na varanda, na sala: não saísse puxa-puxa  a  bandeja  de  pés-de-moleque,  tivessem  bom  ponto  os  queimados,  e  não  queimasse  o  espera-marido! O Benedito, cuja carapinha como que se avermelhava às lavaredas do forno,  acabava de compor um pernil de porco e um peru recheado: com ar vitorioso olhava a feitura,  e  com  tal  entusiasmo,  que  os  frangos,  patos,  perdizes  e  a  paca  dantes  aviados  não  lhe  mereciam  sequer  um  reparo  mais.  A  Marcelina,  pressurosa  como  nunca,  varrera  tudo  e  tal  qual como quem varre uma igreja: podiam-se ver, por gosto, os cachorros do teto, as vigotas e  os próprios espigões, porque o asseio era tão completo que estavam com jeito de novos.

À hora do almoço, ninguém chegou à mesa: ninguém tinha fome, pois a idéia fixa de  todos  era  a  volta  do  doutorzinho.  A  caboclada  havia  resolvido  perder  um  dia  de  serviço  e  rodeava o povo da casa, pedindo o que fazer, oferecendo adjutório; um baldeava água; outro  arranjava  palmas  de  cedro  e  ramas  de  bananeira,  para  se  enfeitarem  as  dependências  da  morada;  outra  catava  flores  de  caeté,  de  lírios,  de  espirradeira  e  de  ipês;  outro  tentava  uns  arcos de triunfo carregados de fitas, que tremiam ao vento, e os arcos eram muito frágeis, por  serem  de  cana  do  reino;  outro,  afinal,  mais  engraçado  ou  mais  afetuoso  que  os  restantes,  espalhava pelo pátio e por um longo trecho da estrada, folhas de manga e de jasmins do cabo.

Foi a essa hora que o pai do moço tornou do povoado. A primeira coisa que fez foi  mandar  ensilhar  um  cavalo  baio-açafranado,  que  era  bom  demais:  podia-se  estar  montado  naquele  baio  com  um  copo  d’água  na  mão,  que  a  água  nem  bulia;  passista  legítimo,  como  aquele,  decerto  nunca  se  viu  numas  dez  léguas  em  roda;  então  para  levantar  as  mãos  num  terreno  lançante,  como  ele,  só  ele  mesmo  –  pois  um  cavalo  braceiro  assim  até  parecia  impossível, tanto que o cavaleiro precisava ser toco, porque se fosse nervoso, ao tomar com as  patas  do  animal  nos  estribos,  caía  pela  certa;  tinha  o  corpo  cheio,  estava  um  torresminho,  luzidio que nem enganatico. No açafranado é que Valdóro havia de vir, e com pouco saiu o  camarada que tinha de acompanhá-lo.

A Felipa do galinheiro escolhia os frangos maiores para molho-pardo e recheio, não  obstante  os  que  o  Benedito  aprontou:  porque  à  última  hora  se  viu  que  para  o  povaréu  que  aparecia  eram  necessárias,  pelo  menos,  umas  vinte  cabeças.  A  ajudar  a  Felipa,  rompeu  um  peva  bulhento,  pintando  a  saracura:  aquilo  pulava  no  pescoço  ou  na  canela  dos  frangos,  e  fugissem! Naquele instante uns pares de parirus vieram beber no córguinho que passava ao  fim do galinheiro – e a Felipa gritou para dentro da casa que até dava ares de ser de propósito,  virem ali as pombinhas que Valdóro tanto apreciava, depois de se terem sumido por muitos  dias e talvez meses! Não houve quem não concordasse com a Felipa.

Cantigas  encantadoras  se  ouviam,  cantadas  por  um  terno  de  lavadeiras  que  ensaboavam  e  batiam  roupa  nas  vizinhanças;  houve  um  momento  em  que  uma  delas,  a  de  peito  mais  limpo  e  de  voz  tão  entoada  que  a  gente  cuidava  estar  escutando  o  som  de  uma  flauta,  disse  uma  quadra  de  amores  que  acabava  trovando  com  seu  doutor.  E  as  outras  lavadeiras então se riram; uma das três procurou saber:

− Pois você, Isa, ainda não se esqueceu do Valdóro? Não pense mais nele: fazendo das  prateleiras de riba não a de ser pra nós, caipiras do mato. Largue mão disso!

− Mas o que hei de fazer – a Isa contraveio: − se o amor que tenho por ele a modos  que cresce cada vez mais com a ausência? Eu quero esquecer-me: eu quero, mas não posso!

− Pode, é só querer. Você não sabe a distância que existe entre ele e você, agora que  ele volta moço e formado: é um abismo, criatura!

A  Isa  deu  de  suspirar:  pois  não  tinha  certeza,  mas  como  que  adivinhava  a  impossibilidade  de  se  amarem  um  rapagão  dos  trinques  e  uma  rapariga  sertaneja,  que  não  sabia cumprimentar nem receber uma visita, e falava as palavras todas trocadas! São voltas  que dá o mundo, são voltas que o mundo dá – é muita verdade o que diz esta trova! – ela  cismava assim, - quando, no cume do morro da fazenda, se levantou a poeira, que havia de  anunciar a chegada da comitiva.

Houve  uma  barafunda.  A  notícia  correu  à  semelhança  de  um  vento  do  sul,  rápida  e  rumorosa. O povo aglomerou-se no terreiro, no pátio, às janelas e às portas: queriam todos ver  com vinha o doutorzinho. E logo que ele apeou, junto à escadinha do casarão velho, e a mãe  veio  abraçá-lo,  chorando  de  alegria,  e  o  pai,  muitas  exclamações  se  ergueram  de  muitas  partes:

− Olhai como ele está mudado!

− Como está magro, o pobre!

− Nos estudos a gente fica pálida: vejam só o rosto dele!

− Era tão risonho e vem tão sério, já se viu?

− E como vem cresçudo!

A  Isa  foi  a  última  pessoa  a  dizer-lhe  adeus.  Quando  ela  lhe  apareceu,  vergonhosa,  corada, e tremendo, Valdóro perguntou-lhe:

− Então, sou para você algum desconhecido, Isa? Dantes não era!

Ela  aproximou-se,  estendeu-lhe  a  mão  direita,  vexada  demais,  e  nada  pôde  dizer.  E  parecia que um céu de felicidades se abrira de novo à coitada, só por ouvir do Valdóro uma  frase  amiga  como  os  do  passado.  Afastou-se  para  um  canto  do  pátio  em  que  todos  permaneciam ainda, e pegou a fuxicar as barras dum lenço; as fontes ruidavam-lhe tanto, e os  ouvidos,  que  tinha  medo  de  cair  com  uma  vertigem.  Chegou  um  momento  em  que,  lembrando-se  das  admoestações  das  companheiras  de  havia  pouco,  pediu  a  Deus  que,  tal  acontecesse, antes a fizesse cair ali mesmo e não alevantasse mais...

Para desmanchar o constrangimento que se apoderara de quase todos, só mesmo uma  léria do Martinho. E foi realmente o Martinho quem acabou co meia tristeza que ensombrava  o semblante daquele povo, clamando para o fundo da sua casa, que era perto:

− Repontem esses perus e marrequinhas pro galinheiro, porque o Valdóro já está na  terra, e senão, temos gronga!


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Nota:
Valdomiro Silveira: "Mucufos" (1894-1905). Versão ortográfica do  apógrafo  de  Carmen  Lydia  de Souza  Dias, in: Alexandre de Oliveira Barbosa: "Edição anotada de Mucufos, coletânea de contos inédita de Valdomiro Silveira", da Universidade de São Paulo, 2007   

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