sábado, 14 de novembro de 2015

José de Anchieta: "5 Poemas"

A SANTA INÊS

I
Cordeirinha linda,
como folga o povo
porque vossa vinda
lhe dá lume novo!

Cordeirinha santa,
de Iesu querida,
vossa santa vinda
o diabo espanta.

Por isso vos canta,
com prazer, o povo,
porque vossa vinda
lhe dá lume novo.

Nossa culpa escura
fugirá depressa,
pois vossa cabeça
vem com luz tão pura

Vossa formosura
honra é do povo,
porque vossa vinda
lhe dá lume novo.

Virginal cabeça
pola fé cortada,
com vossa chegada,
já ninguém pereça.

Vinde mui depressa
ajudar o povo,
pois com vossa vinda
lhe dais lume novo.

Vós sois, cordeirinha,
de Iesu formoso,
mas o vosso esposo
já vos fez rainha.

Também padeirinha
sois de nosso povo,
pois, com vossa vinda,
lhe dais lume novo.

II
Não é d’Alentejo
este vosso trigo,
mas Jesus amigo
é vosso desejo.

Morro porque vejo
que este nosso povo
não anda faminto
deste trigo novo.

Santa padeirinha,
morta com cutelo,
sem nenhum farelo
é vossa farinha.

Ela é mezinha
com que sara o povo,
que, com vossa vinda,
terá trigo novo.

O pão que amassastes
dentro em vosso peito,
é o amor perfeito
com que a Deus amastes.

Deste vos fartastes,
deste dais ao povo,
porque deixe o velho
pelo trigo novo.

Não se vende em praça
este pão de vida,
porque é comida
que se dá de graça.

Ó preciosa massa!
Ó que pão tão novo
que, com vossa vinda,
quer Deus dar ao povo!

Ó que doce bolo,
que se chama graça!
Quem sem ele passa
é mui grande tolo,

Homem sem miolo,
qualquer deste povo,
que não é faminto
deste pão tão novo!



POEMA À VIRGEM

Olha como está prostrado diante da Face do PAI,
Todo o suor de sangue do seu corpo se esvai.
Olha a multidão se comporta como ELE se ladrão fosse,
Pisam-NO e amarram as mãos presas ao pescoço.

Olha, diante de Anás, como um cruel soldado
O esbofeteia forte, com punho bem cerrado.
Vê como diante Caifás, em humildes meneios,
Aguenta mil opróbrios, socos e escarros feios.

Não afasta o rosto ao que bate, e do perverso
Que arranca Sua barba com golpes violento.
Olha com que chicote o carrasco sombrio
Dilacera do SENHOR a meiga carne a frio.

Olha como lhe rasgou a sagrada cabeça os espinhos,
E o sangue corre pela Face pura e bela.
Pois não vês que seu corpo, grosseiramente ferido
Mal susterá ao ombro o desumano peso?

Vê como os carrascos pregaram no lenho
As inocentes mãos atravessadas por cravos.
Olha como na Cruz o algoz cruel prega
Os inocentes pés o cravo atravessa.

Eis o SENHOR, grosseiramente dilacerado pendurado no tronco,
Pagando com Teu Divino Sangue o antigo crime!
(Pecado Original cometido pelos primeiros pais)
Vê: quão grande e funesta ferida transpassa o peito, aberto
Donde corre mistura de sangue e água.

Se o não sabes, a Mãe dolorosa reclama
Para si, as chagas que vê suportar o FILHO que ama.
Pois quanto sofreu aquele corpo inocente em reparação,
Tanto suporta o Coração compassivo da Mãe, em expiação.



AO SANTÍSSIMO SACRAMENTO

Oh que pão, oh que comida,
Oh que divino manjar
Se nos dá no santo altar
Cada dia.

Filho da Virgem Maria
Que Deus Padre cá mandou
E por nós na cruz passou
Crua morte.

E para que nos conforte
Se deixou no Sacramento
Para dar-nos com aumento
Sua graça.

Esta divina fogaça
É manjar de lutadores,
Galardão de vencedores
Esforçados.

Deleite de enamorados
Que com o gosto deste pão
Deixem a deleitarão
Transitória.

Quem quiser haver vitória
Do falso contentamento,
Goste deste sacramento
Divinal.

Ele dá vida imortal,
Este mata toda fome,
Porque nele Deus é homem
Se contêm.

É fonte de todo bem
Da qual quem bem se embebeda
Não tenha medo de queda
Do pecado.

Oh! que divino bocado
Que tem todos os sabores,
Vindes, pobres pecadores,
A comer.

Não tendes de que temer
Senão de vossos pecados;
Se forem bem confessados,
Isso basta.

Que este manjar tudo gasta,
Porque é fogo gastador,
Que com seu divino ardor
Tudo abrasa.

É pão dos filhos de casa
Com que sempre se sustentam
E virtudes acrescentam
De contino.

Todo al é desatino
Se não comer tal vianda,
Com que a alma sempre anda
Satisfeita.

Este manjar aproveita
Para vícios arrancar
E virtudes arraigar
Nas entranhas.

Suas graças são tamanhas,
Que se não podem contar,
Mas bem se podem gostar
De quem ama.

Sua graça se derrama
Nos devotos corações
E os enche de benções
Copiosas.

Oh que entranhas piedosas
De vosso divino amor!
Ó meu Deus e meu Senhor
Humanado!

Quem vos fez tão namorado
De quem tanto vos ofende?!
Quem vos ata, quem vos prende
Com tais nós?!

Por caber dentro de nós
Vos fazeis tão pequenino
Sem o vosso ser divino,
Se mudar.

Para vosso amor plantar
Dentro em nosso coração
Achastes tal invenção
De manjar,

Em o qual nosso paladar
Acha gostos diferentes
Debaixo dos acidentes
Escondidos.

Uns são todos incendidos
Do fogo de vosso amor,
Outros cheios de temor
Filial,

Outros com o celestial
Lume deste sacramento
Alcançam conhecimento
De quem são,

Outros sentem compaixão
De seu Deus que tantas dores
Por nos dar estes sabores
Quis sofrer.

E desejam de morrer
Por amor de seu amado,
Vivendo sem ter cuidado
Desta vida.

Quem viu nunca tal comida
Que é o sumo de todo bem,
Ai de nós que nos detém
Que buscamos!

Como não nos enfrascamos
Nos deleites deste Pão
Com que o nosso coração
Tem fartura.

Se buscarmos formosura
Nele está toda metida,
Se queremos achar vida,
Esta é.

Aqui se refina a fé,
Pois debaixo do que vemos,
Estar Deus e homem cremos
Sem mudança.

Acrescenta-se a esperança,
Pois na terra nos é dado
Quanto lá nos céus guardado
Nos está.

A claridade que lá
Há de ser aperfeiçoada,
Deste pão é confirmada
Em pureza.

Dele nasce a fortaleza,
Ele dá perseverança,
Pão da bem-aventurança,
Pão de glória.

Deixado para memória
Da morte do Redentor,
Testemunho de Seu amor
Verdadeiro.

Oh mansíssimo Cordeiro,
Oh menino de Belém,
Oh Jesus todo meu Bem,
Meu Amor.

Meu Esposo, meu Senhor,
Meu amigo, meu irmão,
Centro do meu coração,
Deus e Pai.

Pois com entranhas de Mai
Quereis de mim ser comido,
Roubai todo meu sentido
Para vós

Com o sangue que derramasses,
Com a vida que perdesses,
Com a morte que quisesses
Padecer.

Morra eu, por que viver
Vós possais dentro de mim;
Ganha-me, pois me perdi
Em amar-me.

Pois que para incorporar-me
E mudar-me em vós de todo,
Com um tão divino modo
Me mudais.

Quando na minha alma entrais
É dela fazeis sacrário,
De vós mesmo é relicário
Que vos guarda.

Enquanto a presença tarda
De vosso divino rosto,
O saboroso e doce gosto
Deste pão

Seja minha refeição
E todo o meu apetite,
Seja gracioso convite
De minha alma.

Ar fresco de minha calma,
Fogo de minha frieza,
Fonte viva de limpeza,
Doce beijo.

Mitigador do desejo
Com que a vós suspiro, e gemo,
Esperança do que temo
De perder.

Pois não vivo sem comer,
Como a vós, em vós vivendo,
Vivo em vós, a vós comendo,
Doce amor.

Comendo de tal penhor,
Nela tenha minha parte,
E depois de vós me farte
Com vos ver.

Amém.



COMPAIXÃO DA VIRGEM NA MORTE DO FILHO

Por que ao profundo sono, alma, tu te abandonas,
e em pesado dormir, tão fundo assim ressonas?
Não te move a aflição dessa mãe toda em pranto,
que a morte tão cruel do filho chora tanto?
O seio que de dor amargado esmorece,
ao ver, ali presente, as chagas que padece?
Onde a vista pousar, tudo o que é de Jesus,
ocorre ao teu olhar vertendo sangue a flux.
Olha como, prostrado ante a face do Pai,
todo o sangue em suor do corpo se lhe esvai.
Olha como a ladrão essas bárbaras hordas
pisam-no e lhe retêm o colo e mãos com cordas.
Olha, perante Anás, como duro soldado
o esbofeteia mau, com punho bem cerrado.
Vê como, ante Caifás, em humildes meneios,
aguenta opróbrios mil, punhos, escarros feios.
Não afasta seu rosto ao que o bate, e se abeira
do que duro lhe arranca a barba e cabeleira.
Olha com que azorrague o carrasco sombrio
retalha do Senhor a meiga carne a frio.
Olha como lhe rasga a cerviz rijo espinho,
e o sangue puro risca a face toda arminho.
Pois não vês que seu corpo, incivilmente leso,
mal susterá ao ombro o desumano peso?
Vê como a dextra má finca em lenho de escravo
as inocentes mãos com aguçado cravo.
Olha como na cruz finca a mão do algoz cego
os inocentes pés com aguçado prego.
Ei-lo, rasgado jaz nesse tronco inimigo,
e c'o sangue a escorrer paga teu furto antigo!
Vê como larga chaga abre o peito, e deságua
misturado com sangue um rio todo d'água.
Se o não sabes, a mãe dolorosa reclama
para si quanto vês sofrer ao filho que ama.
Pois quanto ele aguentou em seu corpo desfeito,
tanto suporta a mãe no compassivo peito.
Ergue-te pois e, atrás da muralha ferina
cheio de compaixão, procura a mãe divina.
Deixaram-te uma e outro em sinais bem marcada
a passagem: assim, tornou-se clara a estrada.
Ele aos rastros tingiu com seu sangue tais sendas,
ela o solo regou com lágrimas tremendas.
Procura a boa mãe, e a seu pranto sossega,
se acaso ainda aflita às lágrimas se entrega.
Mas se essa imensa dor tal consolo invalida,
porque a morte matou a vida à sua vida,
ao menos chorarás todo o teu latrocínio,
que foi toda a razão do horrível assassínio.
Mas onde te arrastou, mãe, borrasca tão forte?
que terra te acolheu a prantear tal morte?
Ouvirá teu gemido e lamento a colina,
em que de ossos mortais a terra podre mina?
Sofres acaso tu junto à planta do odor,
em que pendeu Jesus, em que pendeu o amor?
Eis-te aí lacrimosa a curtir pena inteira,
pagando o mau prazer de nossa mãe primeira!
Sob a planta vedada, ela fez-se corruta:
colheu boba e loquaz, com mão audaz a fruta.
Mas a fruta preciosa, em teu seio nascida,
à própria boa mãe dá para sempre a vida,
e a seus filhos de amor que morreram na rega
do primeiro veneno, a ti os ergue e entrega.
Mas findou tua vida, essa doce vivência
do amante coração: caiu-te a resistência!
O inimigo arrastou a essa cruz tão amarga
quem dos seios, em ti, pendeu qual doce carga.
Sucumbiu teu Jesus transpassado de chagas,
ele, o fulgor, a glória, a luz em que divagas.
Quantas chagas sofreu, doutras tantas te dóis:
era uma só e a mesma a vida de vós dois!
Pois se teu coração o conserva, e jamais
deixou de se hospedar dentro de teus umbrais,
para ferido assim crua morte o tragar,
com lança foi mister teu coração rasgar.
Rompeu-te o coração seu terrível flagelo,
e o espinho ensanguentou teu coração tão belo.
Conjurou contra ti, com seus cravos sangrentos,
quanto arrastou na cruz o filho, de tormentos.
Mas, inda vives tu, morto Deus, tua vida?
e não foste arrastada em morte parecida?
E como é que, ao morrer, não roubou teus sentidos,
se sempre uma alma só reteve os dois unidos?
Não puderas, confesso, aguentar mal tamanho,
se não te sustentasse amor assim estranho;
se não te erguesse o filho em seu válido busto,
deixando-te mais dor ao coração robusto.
Vives ainda, ó mãe, p'ra sofrer mais canseira:
já te envolve no mar uma onda derradeira.
Esconde, mãe, o rosto e o olhar no regaço:
eis que a lança a vibrar voa no leve espaço.
Rasga o sagrado peito a teu filho já morto,
fincando-se a tremer no coração absorto.
Faltava a tanta dor esta síntese finda,
faltava ao teu penar tal complemento ainda!
Faltava ao teu suplício esta última chaga!
tão grave dor e pena achou ainda vaga!
Com o filho na cruz tu querias bem mais:
que pregassem teus pés, teus punhos virginais.
Ele tomou p'ra si todo o cravo e madeiro
e deu-te a rija lança ao coração inteiro.
Podes mãe, descansar; já tens quanto querias:
Varam-te o coração todas as agonias.
Este golpe encontrou o seu corpo desfeito:
só tu colhes o golpe em compassivo peito.
Chaga santa, eis te abriu, mais que o ferro da lança,
o amor de nosso amor, que amou sem temperança!
Ó rio, que confluis das nascentes do Éden,
todo se embebe o chão das águas que retém!
Ó caminho real, áurea porta da altura!
Torre de fortaleza, abrigo da alma pura!
Ó rosa a trescalar santo odor que embriaga!
Jóia com que no céu o pobre um trono paga!
Doce ninho no qual pombas põem seus ovinhos
e casta rola nutre os tenros filhotinhos!
Ó chaga que és rubi de ornamento e esplendor,
cravas os peitos bons de divinal amor!
Ó ferida a ferir corações de imprevisto,
abres estrada larga ao coração de Cristo!
Prova do estranho amor, que nos força à unidade!
Porto a que se recolhe a barca em tempestade!
Refugiam-se a ti os que o mau pisa e afronta:
mas tu a todo o mal és medicina pronta!
Quem se verga em tristeza, em consolo se alarga:
por ti, depõe do peito a dura sobrecarga!
Por ti, o pecador, firme em sua esperança,
sem temor, chega ao lar da bem-aventurança!
Ó morada de paz! sempre viva cisterna
da torrente que jorra até a vida eterna!
Esta ferida, ó mãe, só se abriu em teu peito:
quem a sofre és tu só, só tu lhe tens direito.
Que nesse peito aberto eu me possa meter,
possa no coração de meu Senhor viver!
Por aí entrarei ao amor descoberto,
terei aí descanso, aí meu pouso certo!
No sangue que jorrou lavarei meus delitos,
e manchas delirei em seus caudais benditos!
Se neste teto e lar decorrer minha sorte,
me será doce a vida, e será doce a morte!



CARTA DA COMPANHIA DE JESUS

para o seráfico São Francisco
José de Anchieta

Depois de tudo criado
por conto, peso e medida,
disse Deus: "Seja formado
o homem, como treslado
de nossa imagem subida".

E criou
a Adão, a quem dotou
da semelhança divina.
Mas foi tal sua morfina,
que mui depressa borrou
aquela imagem tão divina.


Mas Cristo, Deus humanado,
glorioso São Francisco,
para limpar o treslado,
que Adão tinha borrado,
pondo o mundo em tanto risco,

quis pintar,
e consigo conformar
a vós, de dentro e de fora,
com graça tão singular,
que vos podemos chamar
homem novo, em quem Deus mora.

Ó formoso patriarca,
ó ilustre capitão
da sagrada religião,
dentro da qual, como em arca,
se salva o povo cristão!

Vós sois aquele varão
cheio de justiça e fé
e de toda perfeição,
figurado, com razão,
no justo e santo Noé.

Noé fez a grande arca
em que o homem racional,
junto com o bruto animal,
escapassem, como em barca,
do dilúvio universal.

Vós, por ordem divinal,
na religião, que fizestes,
a bons e maus recebestes,
e livres d'água mortal,
a Deus vivo os oferecestes.

Vós sois o grande varão
que de Deus fostes achado
segundo seu coração,
e no pai de Salomão
altamente figurado.

O qual, como desprezado
por ser o filho menor,
sendo de ovelhas pastor,
apascentava seu gado
com grã cuidado e amor.

Davi, com grande vigor,
um leão mui carniceiro
e um urso roubador,
com o gigante espantador
matou, com ser ovelheiro.

Este tal, por derradeiro,
Deus o fez rei de Israel,
salvando o povo fiel,
por este grã cavaleiro,
de toda a gente cruel.
Vós vos tínheis por menor,
tendo a todos por maiores,
e maior dos pecadores,
tendo-vos Deus por maior
de todos seus servidores.

Fez-vos pastor dos menores,
uns dos quais foram cordeiros,
mas mui fortes cavaleiros,
outros, do gado pastores
e guias, como carneiros.

Concedeu-vos tal poder,
que leão, urso e gigante
matásseis, carne e Lúcifer
destruindo mui possante.

Com tal capitão diante,
aumentou-se a fé e lei
da igreja militante,
e vós, já na triunfante,
sois coroado por rei.

Trepando sem nenhum medo
o príncipe Jônatas,
com seu criado de trás,
por um áspero penedo,
alcançou vitória e paz,

cometendo
o exército tremendo
dos inimigos, de repente.
E, com ânimo valente,
suas forças desfazendo,
salvou toda sua gente.


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Fonte
"Toda a Poesia: Antologia Poética". Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2015.

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