segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Camilo Castelo Branco: "5 Poemas"

A MAIOR DOR HUMANA

Que imensas agonias se formaram
sob os olhos de Deus! Sinistra hora
em que o homem surgiu! Que negra aurora,
que amargas condições o escravizaram!

As mãos, que um filho amado amortalharam,
erguidas buscam Deus. A Fé implora...
E o céu, que respondeu? As mãos baixaram
para abraçar a filha morta agora.

Depois um pai em trevas vai sonhando,
e apalpa as sombras deles onde os viu
nascer, florir, morrer! Desastre infando!

Ao teu abismo, pai, não vão confortos...
És coração que a dor empederniu,
sepulcro vivo de dois filhos mortos.



ALMA ATRIBULADA

O' alma atribulada, corta o laço
da torva angústia que te cinge à vida!
Vai, foge para Deus, ou para o espaço...
Ou nada ou Deus, que importa? eis-te remida.

Não tiveste na vida um dia escasso
de paz e de alegria! Escurecida
te foi sempre a existência, desvalida,
e cortada de abismos, passo a passo.

Vai! Não leves saudades do que deixas.
Se a fé em melhor mundo te preluz,
alma gemente, por que assim te queixas?

Desprende-te, a sorrir, da horrenda cruz
em que tanto penaste! Os olhos fechas?
Abre os d'alma, e verás que infinda luz.



ANEL

Dá-me um anel; mas que seja
Como o anel em que cingida
Tem gemido toda a minha vida.
Dá-me um anel; mas de ferro,
Negro, bem negro, da cor
Desta minha acerba dor,
Deste meu negro desterro!

Dá-me um anel; mas de ferro...
Sempre comigo hei-de tê-lo;
Há-de ser o negro elo,
Que me prenda à sepultura.
Quero-o negro...seja o estigma,
que decifre o escuro enigma,
Duma grande desventura.

Dá-me um anel; mas de ferro,
Que resista mais que os ossos
Dum cadáver aos destroços
Do roaz verme do pó.
Entre as cinzas alvacentas,
como espólio das tormentas
Apareça o ferro só.

E o teu nome impresso nele,
Falará dum grande amor,
Nutrido em ânsias de dor,
Pelo fel da sociedade...
Que teu nome nele escrito,
Nesse padrão infinito,
Vá comigo à Eternidade.



O SEGREDO DE SALVAR-ME PELO AMOR

Quem há aí que possa o cálix
De meus lábios apartar?
Quem, nesta vida de penas,
Poderá mudar as cenas
Que ninguém pôde mudar?

Quem possui na alma o segredo
De salvar-me pelo amor?
Quem me dará gota de água
Nesta angustiosa frágua
De um deserto abrasador?

Se alguém existe na terra
Que tanto possa, és tu só!
Tu só, mulher, que eu adoro,
Quando a Deus piedade imploro,
E a ti peço amor e dó.

Se soubesses que tristeza
Enluta meu coração,
Terias nobre vaidade
Em me dar felicidade,
Que eu busquei no mundo em vão.

Busquei-a em tudo na terra,
Tudo na terra mentiu!
Essa estrela carinhosa
Que luz à infância ditosa
Para mim nunca luziu.

Infeliz desde criança
Nem me foi risonha a fé;
Quando a terra nos maltrata,
Caprichosa, acerba e ingrata,
Céu e esperança nada é.

Pois a ventura busquei-a
No vivo anseio do amor,
Era ardente a minha alma;
Conquistei mais de uma palma
À custa de muita dor.

Mas estas palmas tais eram
Que, postas no coração,
Fundas raízes lançavam,
E nas lágrimas medravam
Com frutos de maldição.

Em ânsias de alma, a ventura
Nos dons da ciência busquei.
Tudo mentira! A ciência
Era um sinal de impotência
Da vã Razão que invoquei…

Era um brado, um testemunho
Do nada que o mundo é.
Quanto a minha mente erguia
Tudo por terra caía,
Só ficava Deus e a fé.

Lancei-me aos braços do Eterno
Com o fervor de infeliz;
Senti mais fundas as dores,
Mais agros os dissabores…
O próprio Deus não me quis!

Depois, no mundo, cercado
Só de angustias, divaguei
De um abismo a outro abismo
Pedindo ao louco cinismo
O prazer que não achei.

Tristes correram meus anos
Na infância que em todos é
Bela de crenças e amores,
Terna de risos e flores
Santa de esperança e de fé.

Assim negra me era a vida
Quando, ó luz da alma, te vi
Baixar do céu, onde outrora
Te busquei, mão redentora,
Procurando amparo em ti.

Serás tu a mão piedosa,
Que se estende entre escarcéus
Ao perdido naufragado?
Serás tu, ser adorado,
Um prêmio vindo dos céus?

E eu mereço-te, que imenso
Tem já sido o meu quinhão
De torturas não sabidas,
Com resignação sofridas
Nos seios do coração.

Que ternura e amor e afagos
Toda a vida te darei!
Com que jubilo e delírio,
Nova dor, novo martírio,
De ti vindo, aceitarei!

Se na terra um céu desejas
Como o céu que eu tanto quis,
Se d’um anjo a glória queres,
Serás anjo, se fizeres,
Contra o destino, um feliz.

Faz que eu veja nestas trevas
Um relâmpago de amor,
Que eu não morra sem que diga:

“Tive no mundo uma amiga,
Que entendeu a minha dor.

Deu-me ela o estro grande
Das memoráveis canções;
Acendeu-me a extinta chama
Da inspiração que inflama
Regelados corações.

Os segredos dos afetos
Que mais puros Deus nos deu,
Ensinou-mos ela um dia
Que de entre arcanjos descia
Com linguagem do céu.

Os mimosos pensamentos
Que, de mim soberbo, leio,
Inspirou-mos, deu-mos ela
Recostando a fronte bela
Sobre o meu ardente seio.

Morta estava a fantasia
Que o gelo da alma esfriou;
Tinha o espírito dormente,
Só no peito um fogo ardente,
Quando o céu me a deparou.

Agora morro no gozo
De uma saudade imortal.
Foi ditosa a minha sorte;
Amei, vivi: venha a morte,
Que morte ou vida é-me igual.

Igual, sim, que o amor profundo,
Como foi na terra o meu,
Não expira, é sempre vivo,
Sempre ardente e progressivo
Em perpétuo amor do céu”.

Assim, querida, meus lábios,
Já moribundos, dirão,
Nas agonias supremas,
Essas palavras extremas
Do meu ao teu coração.

Sabes quem é, neste mundo,
Quase igual ao Redentor?
É quem diz: “Sou adorada
Pela alma resgatada,
Por mim, das ânsias da dor.”



COMÉDIA HUMANA

Literatos! Chorai-me, que eu sou digno
Da vossa gemebunda e velha táctica!
Se acaso tendes crimes em gramática,
Farei que vos perdoe o Deus benigno.

Demais conheço a prosa inflada, enfática,
Com que chorais os mortos; e o maligno
Desafeto aos que vivem… Não me indigno…
Sei o que sois em teoria e em prática.

Quando o avô desta vã literatura
Garret, era levado á sepultura,
Viu-se a imprensa verter prantos sem fim…

Pois seis dos literatos mais magoados,
Saíram, nessa noite embriagados,
Da crapulosa tasca do Penim.



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Fonte
"Toda a Poesia: Antologia Poética". Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2015.

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