sábado, 24 de agosto de 2013

João Simões Lopes Neto: "Jogo do Osso"

JOGO DE OSSO

— Pois olhe: eu já vi jogar-se uma mulher num tira de taba. Foi uma parada que custou vida… mas foi jogada!
  
Um pouco pra fora da Vila, na volta da estrada, metida na sombra dumas figueiras velhas ficava a vendola do Arranhão; era um bochinche mui arrebentado, e o dono era um sujeito alarifaço, cá pra mim,  desertor,  meio  espanhol  meio  gringo,  mas  mui  jeitoso  para  qualquer arreglo  que  cheirasse  à plata...

Mui  destravado  da  língua  e  ao  mesmo  tempo  rezador,  sempre  se  santiguando  e  olhando  por baixo, como porco, tudo pra ele era negócio: comprava roubos, trocava cousas, emprestava pra jogo, com usura, e sempre se atrapalhava para menos, no troco dos pagamentos.

Às  vezes  armava  umas  carreiritas,  que  se  corriam  numa  cancha  dumas  três  quadras  que  ele mesmo tinha arranjado a um lado do potreiro; então conchavava algum gringo tocador de realejo e estava  preparado  o  divertimento.  O  que  ele  queria  era  gente,  peonada,  andantes,  vagabundos, carreteiros,  para  poder  vender  canha  e  comida  e  doces;  e  de  noite  facilitava  umas  mesas  de     primeira, de truco ou de sete-em-porta para tirar o cafife. Doutras ocasiões ajeitava umas dançarolas que alvorotavam o chinaredo da vizinhança.

Por este pano de amostra vancê vê o que seria aquele gavião.

Duma vez que ele tinha trançado umas carreiras, com duas ou três pencas de patacão, e se havia ajuntado algum povo, tudo gauchada leviana, choveu.

A chuvarada estragou a cancha, molhou as carpetas, atrapalhou tudo.

E a gente foi ganhando na venda, apinhoscou-se por debaixo das figueiras e no galpão.

Quando passou o aguaceiro e oriou o terreiro, deram alguns aficionados para jogar o osso.

Vancê sabe como é que se joga o osso?

Ansim:

Escolhe-se um chão parelho, nem duro, que faz saltar, nem mole, que acama, nem areento, que enterra o osso.

É  sobre  o  firme  macio,  que  convém.  A  cancha  com  uma  braça  de  largura,  chega,  e  três  de comprimento; no meio bota-se uma raia de piola, amarrada em duas estaquinhas ou mesmo um risco no chão, serve; de cada cabeça da cancha é que o jogador atira, sobre a raia do centro: este atira daqui pra lá, o outro atira de lá pra cá.

O osso é a taba, que é o osso do garrão da rês vacum. O jogo é só de culo ou suerte.

Culo  é  quando  a  taba  cai  com  o  lado  arredondado  pra  baixo:  quem  atira  assim  perde  logo  a parada. Suerte é quando o lado chato fica embaixo: ganha logo e sempre.

Quer dizer: quem atira culo perde, se é suerte ganha e logo arrasta a parada. 

Ao lado da raia do meio fica o coimeiro que é o sujeito depositário da parada e que a entrega logo ao ganhador. O coimeiro também é que tira o barato — para o pulpeiro. Quase sempre é algum aldragante velho e sem-vergonha, dizedor de graças.

E um jogo brabo, pois não é?

Pois  há  gente  que  se  amarra  o  dia  inteiro  nessa  cachaça,  e  parada  a  parada  envida  tudo:  os bolivianos,  os  arreios,  o  cavalo,  o  poncho,  as  esporas.  O  facão  nem  a  pistola,  isso,  sim,  nenhum aficionado  joga;  os  fala-verdade  é  que  têm  de  garantir  a  retirada  do  perdedor  sem  debocheira  dos ganhadores...  e,  cuidado…  muito  cuidado  com  o  gaúcho  que  saiu  da  cancha  do  osso  de  marca quente!...

Pois dessa feita se acolheraram a jogar a taba o Osoro e o Chico Ruivo.

O  Osoro  era  um  moreno  mui  milongueiro,  compositor  de  parelheiros  e  meio  aruá;  andava sempre metido pelos ranchos contando histórias às mulheres e tomando mate de parceria com elas.

O  Chico era domador e morava de agregado num rincão da estância das Palmas; e vivia com uma piguancha bem jeitosa, chamada Lalica.

Nesse  dia  Unha  vindo  com  ela  ao  festo  do  Arranhão.  Enquanto  os  dois  jogavam,  a  morocha  andava lá por dentro, com as outras, saracoteando.

Havia violas; havia tocadores; a farra ia indo quente. E os dois, jogando. O Chico perdia uma  em cima da outra.

—  Culo! Outra vez?... Má raios!...

—  Suerte, chê! Ganhei! repetia o Osoro.

—  Jogo-te o tostado, aperado, valeu? Topo!

E culo!... Isto é mau olhado dalgum roncolho mirone!...

E  relanceou  os  olhos  pelos  vedores,  esperando  que  algum  comprasse  a  camorra;  ninguém  se picou.

—  Jogo o teu ruano contra as duas tambeiras da Lalica!

—  E pouco, Chico!... Ainda se fosse a dona!...

—  Osoro, não brinca!... Pois olha; jogo!

—  O ruano?

—  O mano contra a Lalica! Assim como assim, esta china já está me enfarando!...

—  Pois topo!

Os mirones se entreolharam, boquejando, alguns; eles bem viam que o gaúcho estava sem liga, que já tinha perdido tudo, o dinheiro, o cavalo, as botas, um rebenque com argolão de prata; e agora, o outro, o Osoro, para completar o carcheio, ainda tinha topado a última parada, que era a china...

A cousa ia ser tirana; correu logo voz; em roda dos dois amontoou-se a gente.

O Osoro atirou, e deu suerte...

O Ruivo atirou, e deu suerte...

—  Ora, não deu gosto! disse um.

—  Outra mão! disse o outro.

E o Ruivo atirou: culo!

O Osoro atirou: suerte!

—  Ganhei, aparceiro!

—  Pois toma conta, ermâo!

—  Tu é que tens de fazer a entrega...

—  Não tem veremos... Trato é trato!...

Já ia querendo anoitecer.

O  que  se  passou  entre  aquelas  três  criaturas,  não  sei;  se  juntaram  num  canto  do  balcão  da venda  e  falaram.  Por  certo  que  o  Chico Ruivo  disse  à  china  que a  jogara  numa  parada  de  taba;  o Osoro só disse uma vez:

—  Eu, se perdesse o ruano, o Chico já ia daqui montado nele.. 

A  Lalica  deu  uma  risadinha  amarela;  olhou  o  Osoro,  olhou  o  Chico  Ruivo, cuspiu  de  nojo  e disse pra este, na cara:

—  Sempre és muito baixo!..., guampudo, por gosto!...

—  Olha, guincha, que te grudo as chilenas!...

—  Ixe! Este, agora, é que me encilha, retalhado!...

Nisto  um  violeiro pegou  a  rufar  uma  dança  chorada;  umas  parelhas  pegaram  a  se  menear  no compasso da música e logo o Osoro, para cortar aquele aperto, travou do pulso da morocha, passou-lhe o braço na cinta e quase levantando-a no ar entrou na roda dos dançadores; o Ruivo ficou quieto, mas de goela seca e nos olhos com uma luz diferente.

Na primeira volta, quando o par passou por ele, a china ia dizendo mui derretida:

—  Quando quiseres, meu negro...

Na segunda volta, como num despique, ela tornou a boquejar pro Osoro:

—  Eu vou na tua garupa...

E na outra, a china vinha calada, mas com a cabeça deitada no peito do par, olhando terneira pra ele, com uma luz de riso, os beiços encolhidos, como armando uma promessa de boquinha; e o Osoro se esqueceu do mundo… e colou na boca da tentação um beijo gordo, demorado, cheio de desaforo...

O Chico Ruivo teve um estremeção e deu um urro entupido, arrancou do facão e atirou o braço pra diante, numa cegueira de raiva, que só enxerga bem o que quer matar...

E vai, como pegou o Osoro pela esquerda, do lado, meio por detrás, por debaixo da paleta, o facão saiu no rumo certo e foi bandear a Lalica meio de lado, sobre a esquerda da frente.

Vancê  compr’ende?  Do  mesmo  talho  varou  os  dois  corações,  espetou-os  no  mesmo  feno, matou-os  da  mesma  morte,  fazendo  os  dois  sangues,  num  de  cada  peito,  correrem  juntos  num  só derrame... que foi lastrando pelo chão duro, de cupim socado, lastrando... até os dois corpos baterem na parede, sempre abraçados, talvez mais abraçados, e depois tombarem por cima do balcão, onde estava encostado o tocador, que parou um rasgado bonito e ficou olhando fixe para aquela parelha de dançarmos morrentes e farristas ainda!...

Levantou-se uma berraçada.

— Matou! Foi o Chico Ruivo!... Amarra! Cerca!...

Mas o Ruivo parece que voltou a si; coriscou o facão aos dois lados e atropelou a porta, ganhou o terreiro e se foi ao palanque onde estava o ruano do Osoro: montou e gritou pra os que ficavam:

— Siga o baile!...

E deu de rédea, no escuro da noite.

O Arranhão acudiu ao berzabum; aquele safado, curtido na ciganagem, só soube dizer:

— Pois é... jogaram o osso, armaram a sua paranda... mas nenhum pagou nada ao coimeiro!... Que trastes!...


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Nota:
João Simões Lopes Neto: "Contos Gauchescos" (1912)

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