quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Mário de Andrade: "Tempo de camisolinha"

TEMPO DA CAMISOLINHA


A feiura dos cabelos cortados me fez mal. Não sei que noção prematura da sordidez dos nossos atos, ou exatamente, da vida, me veio nessa experiência da minha primeira infância. O que não pude esquecer, e é minha recordação mais antiga, foi, dentre as brincadeiras que faziam comigo para me desemburrar da tristeza em que ficara por me terem cortado os cabelos, alguém, não sei mais quem, uma voz masculina falando: “Você ficou um homem, assim!”. Ora eu tinha três anos, fui tomado de pavor. Veio um medo lancinante de já ter ficado homem naquele tamanhinho, um medo medonho, e recomecei a chorar.

Meus cabelos eram muito bonitos, dum negro quente, acastanhado nos reflexos. Caíam pelos meus ombros em cachos gordos, com ritmos pesados de molas de espiral. Me lembro de uma fotografia minha desse tempo, que depois destruí por uma espécie de polidez envergonhada... Era já agora bem homem e aqueles cabelos adorados na infância, me pareceram de repente como um engano grave, destruí com rapidez o retrato. Os traços não era felizes, mas na moldura da cabeleira havia sempre um olhar manso, um rosto sem marcas, franco, promessa de alma sem maldade. De um ano depois do corte dos cabelos ou pouco mais, guardo outro retrato tirado junto com Totó, meu mano. Ele, quatro anos mais velho que eu, vem garboso e completamente infantil numa bonita roupa marinheira; eu, bem menor, inda conservo uma camisolinha de veludo, muito besta, que minha mãe por economia teimava utilizar até o fim.

Guardo esta fotografia porque se ela não me perdoa do que tenho sido, ao menos me explica. Dou a impressão de uma monstruosidade insubordinada. Meu irmão, com seus oito anos, é uma criança integral, olhar vazio de experiência, rosto rechonchudo e lisinho, sem caráter fixo, sem malícia, a própria imagem da infância. Eu, tão menor, tenho esse quê repulsivo do anão, pareço velho. E o que é mais triste, com uns sulcos vividos descendo das abas voluptuosas do nariz e da boca larga, entreaberta num risinho pérfido. Meus olhos não olham, espreitam. Fornecem às claras, com uma facilidade teatral, todos os indícios de uma segunda intenção.

Não sei por que não destruí em tempo também essa fotografia, agora é tarde. Muitas vezes passei minutos compridos me contemplando, me buscando dentro dela. E me achando. Comparava-a com meus atos e tudo eram confirmações. Tenho certeza que essa fotografia me fez imenso mal, porque me deu muita preguiça de reagir. Me proclamava demasiadamente em mim e afogou meus possíveis anseios de perfeição. Voltemos ao caso que é melhor.

Toda a gente apreciava os meus cabelos cacheados, tão lentos! e eu me envaidecia

deles, mais que isso, os adorava por causa dos elogios. Foi por uma tarde, me lembro bem, que meu pai suavemente murmurou uma daquelas suas decisões irrevogáveis: “É preciso cortar os cabelos desse menino”. Olhei de um lado, de outro, procurando um apoio, um jeito de fugir daquela ordem, muito aflito. Preferi o instinto e fixei os olhos já lacrimosos em mamãe. Ela quis me olhar compassiva, mas me lembro como se fosse hoje, não aguentou meus últimos olhos de inocência perfeita, baixou os dela, oscilando entre a piedade por mim e a razão possível que estivesse no mando do chefe. Hoje, imagino um egoísmo grande da parte dela, não reagindo. As camisolinhas, ela as conservaria ainda por mais de ano, até que se acabassem feitas trapos. Mas ninguém percebeu a delicadeza da minha vaidade infantil. Deixassem que eu sentisse por mim, me incutissem aos poucos a necessidade de cortar os cabelos, nada: uma decisão à antiga, brutal, impiedosa, castigo sem culpa, primeiro convite às revoltas íntimas: “é preciso cortar os cabelos desse menino”.

Tudo o mais são memórias confusas ritmadas por gritos horríveis, cabeça sacudida com violência, mãos enérgicas me agarrando, palavras aflitas me mandando com raiva entre piedades infecundas, dificuldades irritadas do cabeleireiro que se esforçava em ter paciência e me dava terror. E o pranto, afinal. E no último e prolongado fim, o chorinho doloridíssimo, convulsivo, cheio de visagens próximas atrozes, um desespero desprendido de tudo, uma fixação emperrada em não querer aceitar o consumado.

Me davam presentes. Era razão pra mais choro. Caçoavam de mim: choro. Beijos de mamãe: choro. Recusava os espelhos em que me diziam bonito. Os cadáveres de meus cabelos guardados naquela caixa de sapatos: choro. Choro e recusa. Um não-conformismo navalhante que de um momento pra outro me virava homem-feito, cheio de desilusões, de revoltas, fácil para todas as ruindades. De-noite fiz questão de não rezar; e minha mãe, depois de várias tentativas, olhou o lindo quadro de N. S. do Carmo, com mais de século na família dela, gente empobrecida mas diz-que nobre, o olhou com olhos de imploração. Mas eu estava com raiva da minha madrinha do Carmo.

E o meu passado se acabou pela primeira vez. Só ficavam como demonstrações desagradáveis dele, as camisolinhas. Foi dentro delas, camisolas de fazendinha barata (a gloriosa, de veludo, era só para as grandes ocasiões), foi dentro ainda das camisolinhas que parti com os meus pra Santos, aproveitar as férias do Totó sempre fraquinho, um junho.

Havia aliás outra razão mais tristonha pra essa vilegiatura aparentemente festiva de férias. Me viera uma irmãzinha aumentar a família e parece que o parto fora desastroso, não sei direito... Sei que mamãe ficara quase dois meses de cama, paralítica, e só principiara mesmo a andar premida pelas obrigações da casa e dos filhos. Mas andava mal, se encostando nos móveis, se arrastando, com dores insuportáveis na voz, sentindo puxões nos músculos das pernas e um desânimo vasto. Menos tratava da casa que se iludia, consolada por cumprir a obrigação de tratar da casa. Diante da iminência de algum desastre maior, papai fizera um esforço espantoso para o seu ser que só imaginava a existência no trabalho sem recreio, todo assombrado com os progressos financeiros que fazia e a subida de classe. Resolvera aceitar o conselho do médico, se dera férias também, e levara mamãe aos receitados banhos de mar.

Isso foi, convém lembrar, ali pelos últimos anos do século passado, e a praia do José Menino era quase um deserto longe. Mesmo assim, a casa que papai alugara não ficava na praia exatamente, mas numa das ruas que a ela davam e onde uns operários trabalhavam diariamente no alinhamento de um dos canais que carreavam o enxurro da cidade para o mar do golfo. Aí vivemos perto de dois meses, casão imenso e vazio, lar improvisado cheio de deficiências, a que o desmazelo doentio de mamãe ainda melancolizava mais, deixando pousar em tudo um ar de mau trato e passagem.

É certo que os banhos logo lhe tinham feito bem, lhe voltaram as cores, as forças, e os puxões dos nervos desapareciam com rapidez. Mas ficara a lembrança do sofrimento muito grande e próximo, e ela sentia um prazer perdoável de representar naquelas férias o papel largado da convalescente. A papai então o passeio deixara bem menos pai, um ótimo camarada com muita fome e condescendência. Eu é que não tomava banho de mar nem que me batessem! No primeiro dia, na roupinha de baeta calçuda, como era a moda de então, fora com todos até a primeira onda, mas não sei que pavor me tomou, dera tais gritos, que nem mesmo o exemplo sempre invejado de meu mano mais velho me fizera mais entrar naquelas águas vivas. Me parecia morte certa, vingativa, um castigo inexplicável do mar, que o céu de névoa de inverno deixava cinzento e mau, enfarruscado, cheio de ameaças impiedosas. E até hoje detesto banho de mar... Odiei o mar, e tanto, que nem as caminhadas na praia me agradavam, apesar da companhia agora deliciosa e faladeira de papai. Os outros que fossem passear, eu ficava no terreno maltratado da casa, algumas árvores frias e um capim amarelo, nas minhas conversas com as formigas e o meu sonho grande. Ainda apreciava mais, ir até à borda barrenta do canal, onde os operários me protegiam de qualquer perigo. Papai é que não gostava muito disso não, porque tendo sido operário um dia e subido de classe por esforço pessoal e Deus sabe lá que sacrifícios, considerava operário má companhia pra filho de negociante mais ou menos. Porém mamãe intervinha com o “deixe ele!” de agora, fatigado, de convalescente pela primeira vez na vida com vontades; e lá estava eu dia inteiro, sujando a barra da camisolinha na terra amontoada do canal, com os operários.

Vivia sujo. Muitas vezes agora até me faltavam, por baixo da camisola, as calcinhas de encobrir as coisas feias, e eu sentia um esporte de inverno em levantar a camisola na frente pra o friozinho entrar. Mamãe se incomodava muito com isso, mas não havia calcinhas que chegassem, todas no varal enxugando ao sol fraco. E foi por causa disso que entrei a detestar minha madrinha, N. S. do Carmo. Não vê que minha mãe levara pra Santos aquele quadro antigo de que falei e de que ela não se separava nunca, e quando me via erguendo a camisola no gesto indiscreto, me ameaçava com a minha encantadora madrinha: “Meu filho, não mostre isso, que feio! repare: sua madrinha está te olhando na parede!”. Eu espiava pra minha madrinha do Carmo na parede, e descia a camisolinha, mal convencido, com raiva da santa linda, tão apreciada noutros tempos, sorrindo sempre e com aquelas mãos gordas e quentes. E desgostoso ia brincar no barro do canal, botando a culpa de tudo no quadro secular. Odiei minha madrinha santa.

Pois um dia, não sei o que me deu de repente, o desígnio explodiu, nem pensei: largo correndo os meus brinquedos com o barro, barafusto porta a dentro, vou primeiro espiar onde mamãe estava. Não estava. Fora passear na praia matinal com papai e Totó. Só a cozinheira no fogão perdida, conversando com a ama da Mariazinha nova. Então podia! Entrei na sala da frente, solene, com uma coragem desenvolta, heroica, de quem perde tudo mas se quer liberto. Olhei francamente, com ódio, a minha madrinha santa, eu bem sabia, era santa, com os doces olhos se rindo pra mim. Levantei quanto pude a camisola e empinando a barriguinha, mostrei tudo pra ela. “Tó! que eu dizia, olhe! olhe bem! tó! olhe bastante mesmo!”. E empinava a barriguinha de quase me quebrar pra trás.

Mas não sucedeu nada, eu bem imaginava que não sucedia nada... Minha madrinha do quadro continuava olhando pra mim, se rindo, a boba, não zangando comigo nada. E eu saí muito firme, quase sem remorso, delirando num orgulho tão corajoso no peito, que me arrisquei a chegar sozinho até a esquina da praia larga. Estavam uns pescadores ali mesmo na esquina, conversando, e me meti no meio deles, sempre era uma proteção. E todos eles eram casados, tinham filhos, não se amolavam proletariamente com os filhos, mas proletariamente davam muita importância pra o filhinho de “seu dotô” meu pai, que nem era doutor, graças a Deus.

Ora se deu que um dos pescadores pegara três lindas estrelas-do-mar e brincava com elas na mão, expondo-as ao solzinho. E eu fiquei num delírio de entusiasmo por causa das estrelas-do-mar. O pescador percebeu logo meus olhos de desejo, e sem paciência pra ser bom devagar, com brutalidade, foi logo me dando todas.

− Tome pra você, que ele disse, estrela-do-mar dá boa-sorte.

− O que é boa-sorte, hein?

Ele olhou rápido os companheiros porque não sabia explicar o que era boa-sorte. Mas todos estavam esperando e ele arrancou meio bravo:

− Isto é... não vê que a gente fica cheio de tudo... dinheiro, saúde...

Pigarreou fatigado. E depois de me olhar com um olho indiferentemente carinhoso, acrescentou mais firme:

− Seque bem elas no sol que dá boa-sorte.

Isso nem agradeci, fui numa chispada luminosa pra casa esconder minhas estrelas-do-mar. Pus as três ao sol, perto do muro lá no fundo do quintal onde ninguém chegava, e entre feliz e inquieto fui brincabrincar no canal. Mas quem disse brincar! me dava aquela vontade amante de ver minhas estrelas e voltava numa chispada luminosa contemplar as minhas tesoureiras da boa-sorte. A felicidade era tamanha e o desejo de contar minha glória, que até meu pai se inquietou com o meu fastio no almoço. Mas eu não queria contar. Era um segredo contra tudo e todos, a arma certa da minha vingança, eu havia de machucar bastante Totó, e quando mamãe se incomodasse com o meu sujo, não sei não... mas pelo menos ela havia de dar um trupicão de até dizer “ai!”, bem feito! As minhas estrelas-do-mar estavam lá escondidas junto do muro me dando boa-sorte. Comer? pra que comer? elas me davam tudo, me alimentavam, me davam licença pra brincar no barro, e se Nossa Senhora, minha madrinha, quisesse se vingar daquilo que eu fizera pra ela, as estrelas me salvavam, davam nela, machucavam muito ela, isto é... muito eu não queria não, só um bocadinho, que machucassem um pouco, sem estragar a cara tão linda da pintura, só pra minha madrinha saber que agora eu tinha a boa-sorte, estava protegido e nem precisava mais dela, tó! ai que saudades das minhas estrelas-do-mar!... Mas não podia desistir do almoço pra ir espiá-las, Totó era capaz de me seguir e querer uma pra ele, isso nunca!

− Esse menino não come nada, Maria Luísa!

− Não sei o que é isso hoje, Carlos! Meu filho, coma ao menos a goiabada...

Que goiabada nem mané goiabada! eu estava era pensando nas minhas estrelas, doido por enxergá-las. E nem bem o almoço se acabou, até disfarcei bem, e fui correndo ver as estrelas-do-mar.

Eram três, uma menorzinha e duas grandonas. Uma das grandonas tinha as pernas um bocado tortas para o meu gosto, mas assim mesmo era muito mais bonita que a pequetitinha, que trazia um defeito imenso numa das pernas, faltava a ponta. Essa decerto não dava boa-sorte não, as outras é que davam: e agora eu havia de ser sempre feliz, não havia de crescer, minha madrinha gostosa se rindo sempre, mamãe completamente sarada me dando brinquedos, com papai não se amolando por causa dos gastos. Não! a estrela pequenina dava boa-sorte também, nunca que eu largasse de uma delas!

Foi então que aconteceu o caso desgraçado de que jamais me esquecerei no seu menor detalhe. Cansei de olhar minhas estrelas e fui brincar no canal. Era já na hora do meio-dia, hora do almoço, da janta, do não-sei-o-quê dos operários, e eles estavam descansando jogados na sombra das árvores. Apenas um porém, um portuga magruço e bárbaro, de enormes bigodões, que não me entrava nem jamais dera importância pra mim, estava assentado num monte de terra, afastado dos outros, ar de melancolia. Eu brincava por ali tudo, mas a solidão do homem me preocupava, quase me doía, e eu rabeava umas olhadelas para a banda dele, desejoso de consolar. Fui chegando com ar de quem não quer e perguntei o que ele tinha. O operário primeiro deu de ombros, português, bruto, bárbaro, longe de consentir na carícia da minha pergunta infantil. Mas estava com uns olhos tão tristes, o bigode caía tanto, desolado, que insisti no meu carinho e perguntei mais outra vez o que ele tinha. “Má sorte” ele resmungou, mais a si mesmo que a mim.

Eu porém é que ficara aterrado. Minha Nossa Senhora! aquele homem tinha má

sorte! aquele homem enorme com tantos filhinhos pequenos e uma mulher paralítica na cama!... E no entanto eu era feliz, feliz! e com três estrelinhas-do-mar pra me darem boa-sorte... É certo: eu pusera imediatamente as três estrelas no diminutivo, porque se houvesse de ceder alguma ao operário, já de antemão eu desvalorizava as três, todas as três, na esperança desesperada de dar apenas a menor. Não havia diferença mais, eram apenas três “estrelinhas”-do-mar. Fiquei desesperado. Mas a lei se riscara iniludível no meu espírito: e se eu desse boa-sorte ao operário na pessoa da minha menor estrelinha pequetitinha?... Bem que podia dar a menor, era tão feia mesmo, faltava uma das pontas, mas sempre era uma estrelinha-do-mar. Depois: operário não era bem-vestido como papai, não carecia de uma boa-sorte muito grande não. Meus passos tontos já me conduziam para o fundo do quintal fatalizadamente. Eu sentia um sol de rachar completamente forte. Agora é que as estrelinhas ficavam bem secas e davam uma boa-sorte danada, acabava duma vez a paralisia da mulher do operário, os filhinhos teriam pão e N. S. do Carmo, minha madrinha, nem se amolava de enxergar o pintinho deles. Lá estavam as três estrelinhas, brilhando no ar do sol, cheias de uma boa-sorte imensa. E eu tinha que me desligar de uma delas, da menorzinha estragada, tão linda! justamente a que eu gostava mais, todas valiam igual, porque a mulher do operário não tomava banhos de mar? mas sempre, ah meu Deus que sofrimento! eu bem não queria pensar mas pensava sem querer, deslumbrado, mas a boa mesmo era a grandona perfeita, que havia de dar mais boa-sorte pra aquele malvado de operário que viera, cachorro! dizer que estava com má sorte. Agora eu tinha que dar pra ele a minha grande, a minha sublime estrelona-do-mar!...

Eu chorava. As lágrimas corriam francas listrando a cara sujinha. O sofrimento era tanto que os meus soluços nem me deixavam pensar bem. Fazia um calor horrível, era preciso tirar as estrelas do sol, senão elas secavam demais, se acabava a boa-sorte delas, o sol me batia no coco, eu estava tonto, operário, má sorte, a estrela, a paralítica, a minha sublime estrelona-do-mar! Isso eu agarrei na estrela com raiva, meu desejo era quebrar a perna dela também pra que ficasse igualzinha à menor, mas as mãos adorantes desmentiam meus desígnios, meus pés é que resolveram correr daquele jeito, rapidíssimos, pra acabar de uma vez com o martírio. Fui correndo, fui morrendo, fui chorando, carregando com fúria e carícia a minha maiorzona estrelinha-do-mar. Cheguei pro operário, ele estava se erguendo, toquei nele com aspereza, puxei duro a roupa dele:

− Tome! eu soluçava gritado, tome a minha... tome a estrela-do-mar! dá... dá, sim, boa-sorte!...

O operário olhou surpreso sem compreender. Eu soluçava, era um suplício medonho.

− Pegue depressa! faz favor! depressa! dá boa-sorte mesmo!

Aí que ele entendeu, pois não me aguentava mais! Me olhou, foi pegando na estrela, sorriu por trás dos bigodões portugas, um sorriso desacostumado, não falou nada felizmente que senão eu desatava a berrar. A mão calosa quis se ajeitar em concha pra me acarinhar, certo! ele nem media a extensão do meu sacrifício! e a mão calosa apenas roçou por meus cabelos cortados.

Eu corri. Eu corri pra chorar à larga, chorar na cama, abafando os soluços no travesseiro sozinho. Mas por dentro era impossível saber o que havia em mim, era uma luz, uma Nossa Senhora, um gosto maltratado, cheio de desilusões claríssimas, em que eu sofria arrependido, vendo inutilizar-se no infinito dos sofrimentos humanos a minha estrela-do-mar.

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Fonte:
Mário de Andrade: Contos Novos. Projeto Livro Livre. São Paulo, 2016.

Mário de Andrade: "Nelson"

NELSON


 − Você conhece?

− Eu não, mas contaram ao Basílio o caso dele.

O indivíduo chamava a atenção mesmo, embora não mostrasse nada de berrantemente extraordinário. Tinha um ar esquisito, ar antigo, que talvez lhe viesse da roupa mal talhada. Mas que por certo derivava da cara também, encardida, de uma palidez absurda, quase artificial, como a cara enfarinhada dos palhaços. Olhos pequenos, claros, à flor da pele, quase que apenas aquela mancha cinzenta, vaga, meio desaparecendo na brancura sem sombra do rosto.
Deu uma olhadela disfarçada, bem de tímido, assuntando o ambiente mal iluminado do bar. Ainda hesitou, numa leve ondulação de recuo, mas acabou indo sentar no outro lado da sala vazia. Percebeu que os rapazes o examinavam, ficou inquieto, entre gestos inúteis. Pretendeu se acalmar e depôs as duas mãos, uma agarrando a outra, sobre a toalha. Mas como que se arrependeu de mostrá-las, retirou-as rápido pra debaixo da mesa. Se lembrou de repente que não tirara o chapéu, estremeceu, quis sorrir, disfarçando a encabulação. Mas corou muito, tirou num gesto brusco o chapéu, escondeu-o no banco em que sentara, ao mesmo tempo que lançava novo olhar furtivo, muito angustiado, meio implorante, aos rapazes. E estes fingiram que não o examinavam mais, envergonhados da curiosidade.

− Não parece brasileiro...

− Diz-que é. Mora só, numa daquelas casinhas térreas da alameda do Triunfo, perto de mim. Ele mesmo faz a comida dele...

Parou, gozando o interesse que causava. Era desses vaidosos que não contam sem martirizar o ouvinte com pausas de efeito, perguntas de adivinhação, detalhes sem eira nem beira. Continuou: “Vocês todos sabem onde que ele faz as compras dele!”... Nova pausa. Os rapazes se mexeram impacientes. Um arrancou:

− Você garante que ele é brasileiro, enfim você sabe ou não sabe alguma coisa sobre ele!

− Eu sei a história dele completinha!... − Olhou lento, imperial os três amigos. Sorriu. − Mas, puxa! que lerdeza de vocês!... Eu disse que ele mora no Triunfo, pertinho de mim... Então vocês não são capazes de imaginar onde ele compra as coisas!...

− Ora desembucha logo, Alfredo! que diabo de mania essa!...

Diva passava levando dois duplos escuros. Era visível que ambos pertenciam ao desconhecido, pois não havia mais ninguém no bar. Recebendo os duplos o homem ficou envergonhado, tornou a corar forte, mandando outro olho de relance aos rapazes. Falou qualquer coisa à garçonete, que ficou esperando. Então ele emborcou o primeiro chope com sofreguidão, bebeu tudo duma vez só, entregando o copo à moça. E Diva se retirou, sorrindo ao “muito obrigado” quente que o homem lhe dizia.

Os rapazes voltavam pensativos aos seus chopes, o desconhecido era de-fato um sujeito extravagante... Alfredo aproveitou a preocupação de todos, pra retomar importância. Mas agora “desembuchava” mais rápido.

− Pois ele compra tudo no Basílio, e o Basílio é que sabe a história dele bem. Põe tamanha confiança no vendeiro que até pede pra ele fazer compras na cidade, camisa, roupa de baixo... Diz-que foi até bastante rico. Ele é de Mato Grosso, possuía uma fazenda de criar no sul do Estado, não tinha parente nenhum depois que a mãe morreu. De vez em quando atravessava a fronteira que ficava ali mesmo, dava uma chegada em Assunção que é a capital do Paraguai...

− Não sabia! pensei que era Campinas!

−... ia lá só pra farrear, vivendo naquele jejum da fazenda... − Achou graça em si mesmo e quis tirar mais efeito: − Em Assunção desjejuava a valer. Mas um dia acabou trazendo uma paraguaia pra fazenda, com ele. Era uma moça lindíssima e ele tinha paixão por ela, dava tudo pra ela. Trabalhava e era pra ela; ia na cidade por um dia, imaginem pra quê!... Voltava carregado de presentes muito caros. Mesmo na fazenda ela só arrastava seda. Mas que ela merecesse, merecia porque também gostava muito dele e os dois viviam naquele amor. Mas a maior besteira dele, isso dava um doce se vocês imaginassem?

Quis parar, mas um dos companheiros percebendo asperejou irritado:

− Não dê o doce e continue, Alfredo! – Pois acabou passando a fazenda com gado e tudo e ainda umas casas que tinha em Cuiabá, passou tudo para o nome dela, porque ela já fizera operação, mocinha, e não podia ter filho que herdasse. Não sei se vocês sabem:... mesmo casada no juiz, se não tivesse filho e ele morresse, ela não herdava um isto. E agora é que estou vendo que o Basílio não me informou se eles eram casados, amanhã mesmo vou saber...

− Mas... me diga uma coisa, Alfredo: isso interessa pro caso!

− Quer dizer... interessar sempre interessa... Mas afinal aquela vida era chata pra moça tão bonita que não podia ser vista nem apreciada por ninguém, não durou muito ela principiou entristecendo. Ele vinha e perguntava, porém ela sempre respondia que não tinha nada e virava o rosto pra não dar demonstração que estava chorando. Ele fez tudo. Comprou uma vitrola, comprou um rádio e a casa se encheu de polcas paraguaias. Depois até principiou aprendendo o guarani com ela, o castelhano já falava muito bem. Era que ele imaginou ficar mais tempo junto da moça, em vez de passar o dia inteiro no campo, cuidando do gado.

− Mas também que sujeito mais besta − interrompeu um dos rapazes irritado. Ele era rico, não era?

− Era...

− Pois então por que não ia fazer uma viagem!

− Pois fez, mas aí é que foi a causa de tudo. Eles resolveram ir passear em Assunção, se divertiram tanto que passaram dois meses lá. Quando voltaram ela até parecia outra, de tão alegre outra vez, e fizeram projeto de todos os anos ir passear assim, se divertindo com os outros, o amor é que não havia meios de afrouxar. Já antes da viagem, no tempo da tristeza, ele assinara uma porção de revistas, até norte-americanas, pra ver se ela se distraía, ela nem olhava pras figuras. Pois agora de volta na fazenda, adivinhem pra o que ela deu!...

− Ora, deu para ler as revistas!

− Não.

− Deu pra ficar triste outra vez.

− Não!

− Se acostumou...

− Não!

− Ora foi ver se você estava na esquina, ouviu!

Os rapazes estavam totalmente desinteressados da história do Alfredo. Um deles olhou o homem, de quem a garçonete se aproximava outra vez, levando mais um chope. O homem, percebendo a moça, retirou brusco as mãos que descansavam na mesa, uma sobre a outra. Novo olhar angustiado aos rapazes.

− Parece que ele tem qualquer coisa na mão esquerda, o rapaz avisou interessado. Não! não virem agora que ele está olhando pra cá, mas nem bem Diva ia chegando com o chope, ele escondeu a mão. Diva!

A moça veio se chegando, familiar.

− Mais chope. Diga uma coisa... chegue mais pra cá.

A moça chegou contrafeita, depois de uma leve hesitação. Ela sabia que iam lhe falar do desconhecido, e quando o rapaz perguntou o que o homem tinha na mão, ela quase gritou um “Nada!” agressivo. E como o rapaz procurasse agarrá-la pelo braço, ainda perguntando se o homem não tinha um defeito qualquer, ela se desvencilhou irritada, murmurando “Não!”, “Não sei!”, partiu confusa. O contador interrompido pretendeu readquirir importância, afirmando apressado:
− É uma cicatriz medonha, não queiram saber! Foi numa briga, parece que até ele perdeu um dedo, só que isso eu não sei como foi, o Basílio...

O quarto rapaz, que se conservara calado, olhando com uma espécie de riso o sabetudo, murmurou vingativo:

− Eu sei.

− Você sabe!

− Quer dizer: sei... Sei o que me contaram. É o polegar que ele perdeu. Parece que nem é só o polegar que falta, mas quase toda a carne do braço, é tudo repuxado, sem pele... Foi piranha que comeu.

− Safa!

− Eu não sei bem... tudo no detalhe. Como o Alfredo, eu não sei... Foi na Coluna Prestes... nem tenho certeza se ele estava com o exército ou com os revolucionários. Devia ser com estes porque ele era rapaz, se vê que não tem trinta anos.

− Isso não! garanto que já passa dos quarenta.

− Você está doido!

− Não... − arrancou o Alfredo, meio contra a vontade. − Isso eu também sei garantido que ele é novo ainda, o Basílio viu a caderneta dele... Tem vinte e sete, vinte e oito anos.

− Mas conta como foi a piranha.
−... diz-que estava em Mato Grosso, um grupinho perseguido pelos contrários, desgarrado, pra uns nove homens quando muito. Tinham se arranchado na casinha dum caboclo que ficava perto dum rio, quando o inimigo deu lá, era de noite. Foi aquele tiroteio feroz, eles dentro da casa, os outros no cerco. Quando viram que não se aguentavam mais, a munição estava acabando, decidiram furar pra banda do rio, onde o bote do caboclo estava amarrado na maromba...

− O que é maromba?

− É assim um estrado grande, pra servir de chão dos bois, quando o rio enche.

− Qual! tudo isso é história! pois você não vê logo que os polícias já deviam estar tomando conta do bote!

− Você está com despeito de eu saber, quer me atrapalhar à toa: pois é isso mesmo! Deixe eu acabar, você vai ver. Já era de madrugadinha, mas estava escuro ainda. De repente eles deram uma descarga juntos, e saíram embolados, frechando pro rio. Ainda conseguiram passar, que os... contrários, eu não falei que era polícia que cercava! enfim, os... outros, só tinha dois amoitados no caminhinho que levava ao porto, se acovardaram. Eles passaram na volada, gritando, desceram o barranco aos pulos, mas quando chegaram lá, tinha pra uns dez, de tocaia, na maromba. Se atracaram uns com os outros, e esse um aí se abraçou com um inimigo e os dois rolaram no rio, afundando. Bem, mas quando voltaram à tona, sempre grudados um no outro, lutando, o diabo é o que tinham vindo parar bem debaixo... não sei se vocês sabem... lá, por causa de enchente, eles usam construir um cais flutuante pra embarcar e desembarcar. O desse porto por sinal que era bem-feito e mais grande, porque era por ali que a estrada do governo atravessava o rio: uma espécie de caixão grande bem chato, feito de pranchões. Pois foi justo debaixo disso que os dois vieram surgir e já estavam desesperados de vontade de respirar, não se aguentavam mais. Por cima era aquele barulhão de gente brigando, o caixão sacudia muito, mais outros caíam n’água... Os dois não queriam, decerto nem podiam se largar, mas não sei como foi, se uma das pranchas da parte inferior estava podre e cedeu, ou se havia o buraco mesmo... sei é que num balanço que o caixão fez com os homens que brigavam em cima deles, esse um ali sentiu que ia saindo fora d’água e pôde respirar. Mas estava com a cabeça enforcada dentro do caixão chato, até batendo no plano dos pranchões de cima, parece que estou vendo! quem me contou foi o Querino do gás... Mas ele respirou fundo, foi ganhando consciência e percebeu que os músculos do adversário afrouxavam. Se ele largasse, o outro afundava, ia sair lá mais no largo e denunciava o esconderijo dele, apertou mais. Por cima o inferno já estava diminuindo, o caixão sacudia menos, paravam com a gritaria dos insultos. Afinal ele percebeu que os inimigos tinham dominado a situação, eram muito mais numerosos. Um que mandava nos outros, dava ordens, afirmava que faltavam dois do grupo inimigo, um era ele, está claro. A manhã principiava branqueando o rio. Procuravam no largo pra ver se tinha alguém nadando...

Alguns foram mandados percorrer o matinho ralo da margem. Dois outros, no bote, se metiam pelas canaranas pra ver se descobriam os fugitivos. Foi quando deram pela falta de um chamado Faustino, gritavam “Faustino! Faustiiíiino!”, e ele percebeu que tinha matado um sujeito chamado Faustino. Mas quem disse largar o cadáver que agarrava pelo gasnete com a mão esquerda. O corpo era capaz que boiasse, saindo de baixo do caixão, haviam de desconfiar. Na margem e na maromba ao lado, o pessoal se acalmavam, era um dia claro. Não tinham achado nem os fugitivos nem Faustino, vinham contando os que voltavam da procura. Então o chefe mandou que dois ficassem de vigia na maromba, e o resto dos perseguidores foram lá na casa do caipira ver se faziam um café. Ele estava quase vestido, calça cáqui, botas. Mas não tivera tempo de vestir o dólmã, com a surpresa do ataque, e a camisa tinha se rasgado muito, justo no braço esquerdo que estava dentro d’água, agarrando o corpo do Faustino. Fazia já algum tempo que ele vinha percebendo uns estremeções esquisitos na cara do morto, pois súbito sentiu uma ferroada na mão. O rio não era de muita piranha, mas tinha alguma sim. Outra ferroada mais forte e logo ele conferiu que era piranha mesmo, não havia mais dúvida. E acudia cada vez mais piranha, o que ele não aguentou! As piranhas mordiam, arrancavam pedacinhos da mão dele e depois do braço também, mas ele ali, sem se mover. Lá em cima na maromba as duas sentinelas conversavam na calma. Ele percebeu, ia desfalecer na certa, porque já quase nem se aguentava mais, vista turvando. Então, com muito cuidado, muita lentidão pra os vigias não repararem, cuidou de enfiar mais que a mão direita, o braço inteiro no buraco dos pranchões porque assim, se desmaiasse, pelo menos ficava enganchado ali. Foi quando perdeu os sentidos. Até fica difícil garantir que perdeu os sentidos ou não perdeu, nem ele sabe, nem sabe o tempo que passou. Só que as forças acabaram cedendo, teve um momento em que ele foi chamado à consciência porque estava engolindo água, sem ar, se afogando. Mesmo fraco como estava, bracejou, voltou à tona, se agarrou nas canaranas, conseguiu chegar num chão mais firme e então desmaiou de verdade. Quando voltou a si, o sol estava bem alto já, devia ser pelo meio do dia. Os inimigos já tinham ido-se embora. Então o pobre, ainda ajuntando um resto de força que possuía, conseguiu se arrastar até próximo da casa do caboclo. Quando este voltou, mais a mulher, lá dum vizinho longe onde tinham se refugiado, encontraram o homem estendido no terreiro, moribundo. Trataram dele. É o que eu sei... o Querino é que anda contando porque até

eu vi, isso eu vi, ele conversando animado com esse homem, porque andou vários dias inda na casa dele pra fazer uma instalação de gás. Ele acabou sarando mas diz-que ficou meio amalucado... Se não ficou, parece.

Olharam o homem. Ele já estava no quarto ou quinto duplo, já agora como inteiramente esquecido de mais ninguém. Tinha o queixo no peito, se derreara no banco, olhando fixamente o chope escuro. A mão direita inquieta tamborilava sobre a mesa, mas a esquerda se escondera preventivamente no bolso da calça. Um dos rapazes se lembrou do caso que o Alfredo estava contando.

− Safa! mas que caso mais diferente do do Alfredo! Mas este, ríspido:

− Nnnnão... deve ser o mesmo...

− Mas o que foi que sucedeu com a mulher?

−... nnnnão tem importância.

− Ora deixa de besteira! Alfredo! que sujeito mais complicado, você!

− Não tenho nada de complicado não! Essa história de piranha comer braço de gente, eu nunca sube. O Basílio também me falou que o homem era de Mato Grosso, leu na caderneta de identidade... Mas ele ficou meio tantã não foi por causa de piranha não, foi a paraguaia. Quando ela voltou curada pra fazenda, como eu dizia, ela até às vezes acompanhava o marido a cavalo no campo, mas quando no geral ficava em casa, ficava ali, rádio aberto, lendo a quantidade de romances policiais e os outros livros que trouxera da cidade. E não tinha semana que um peão não trouxesse aquela quantidade de revistas que vinham do correio. Pois um dia, quando ele chegou em casa, a mulher estava fechada no quarto e não quis abir a porta. Ele bateu, chamou de todo jeito, ela gritava que não amolasse, até que ele perdeu a paciência e ameaçou arrombar a porta. Daí ela abriu e se percebia que tinha chorado muito. Olhou pra ele com ódio e gritou:

− O que você me quer! me deixa!

e coisas assim. Ele estava assombrado, perguntava, ela não respondia, foi no terraço e se atirou na rede, chorando feito louca. Mas isso?... ele que nem tocasse de leve nela com a mão, ela fugia o corpo como se ele fosse uma cobra. Não valeu carinho, não valeu queixa: ela estava muda, longe dele, olhando ele com ódio, e de repente falou que queria ir embora pra terra dela. Ele não podia entender, foi discutir, mas ela agarrou dando uns gritos, que ia-se embora mesmo, que não ficava mais ali, parecia uma doida, saltou da rede, desceu a escadinha do terraço e deitou correndo pelo pasto, como indo embora pro Paraguai. Foi um custo trazer ela pra casa, agarrada. Ele muito triste fazia tudo pra acalmar, jurava que no outro dia mesmo partiam pra Assunção, ela berrava que não! que havia de ir sozinha e não queria saber mais dele. Ninguém dormiu naquela casa. A moça acabou se fechando no quarto outra vez. Ele não quis insistir mais, imaginando que o passar da noite havia de acalmar aquela crise. Puxou uma cadeira e sentou bem na frente da porta, esperando. Não dormiu nada. Mas também a moça não dormiu, não vê! Toda a noite ele escutou ela remexendo coisas, era gaveta que abria, que fechava, móvel arrastando, coisas jogadas no chão.

Diva acabara de levar mais um chope ao homem. Veio se abraçar a um dos rapazes, perguntando se não pagavam um aperitivo. Dois dos rapazes se ajeitaram no banco em que estavam, cedendo o lugarzinho no meio onde ela se espalhou, encostando muito logo nos dois, pra ver se ao menos um mordia a isca. O homem do bar mesmo sem chamarem, muito acostumado, veio servir o vermute.

−... bem, mas como eu estava contando, no dia seguinte, ainda nem ficara bastante claro, que a paraguaia abriu a porta do quarto. Vinha simples, até estava ridícula e bem feia com aquele rosto transtornado, num vestidinho caseiro, o mais usado, e uma trouxinha de roupa debaixo do braço. E falou dura que ia-se embora. Foi tudo em vão e esse homem...

− Que homem? Diva perguntou meio inquieta.

Esse que está bebendo chope escuro.

− Santa Maria! mas será que vocês não podem deixar o pobre do homem em paz!

− Fica quieta aí, Diva!

− Mas...

− Tome seu vermute.

Diva se acomodou de má vontade, irritada, enquanto o contador continuava:

− Pois ele gostava tanto da paraguaia que acabou cedendo, imaginando que aquilo havia de passar se ela partisse como estava exigindo. Mandou um próprio acompanhá-la. Depois ele ia atrás, Assunção é pequena, e o camarada ia industriado pra ficar por lá, seguindo a moça de longe. E ela foi embora, só, com a trouxinha, sem uma despedida, sem olhar pra trás. Quando ele foi pra entrar no quarto quase nem se podia andar lá dentro, tudo aos montes jogado no chão. Os vestidos estavam estraçalhados de propósito, picados devagar com a tesourinha de unha. As joias arrebentadas, pedras caras, até o brilhante grande do anel, fora do aro, relumeando na greta do assoalho. E os livros, os objetos, as meias de seda, até as roupas dele, ela não poupou nada. E não tinha levado absolutamente nada. Até a roupa de cama, também picada com a tesourinha, não sobrara nada sem estrago. Mas agora é que vocês vão se assombrar!...

Só bem por cima dos dois travesseiros grandes, amontoados de propósito no meio da cama, um por cima do outro, tinha um livro. Esse não estava estragado como os outros. Imaginem que... bom, pra encurtar: era simplesmente uma História do Paraguai em espanhol, desses livros resumidos que a gente estudou no grupo. Folheando o livro, ele descobriu justamente na última página do capítulo que falava da guerra com o Brasil, está claro que tudo cheio de mentiras horríveis, ele descobriu naquela letrona dela que mal sabia assinar o nome: “Infames”!

− Quem que era infame?

− Safa, Diva, sua gente mesmo!

− Que “minha gente”?

− Os brasileiros, Diva!

− Eu não sou brasileira!

O rapaz sorrindo acarinhou os cabelos louros, frios dela. O contador ia comentando:

− Foi por causa da Guerra do Paraguai... O homem ficou feito doido, não podia mais passar sem ela, se botou atrás da moça, porém ela não houve meios de ceder. E pra não ser mais incomodada, acabou desaparecendo de Assunção, ninguém sabe pra onde. Foi uma trapalhada dos dianhos vocês nem imaginam, porque a fazenda, as propriedades não eram mais dele, e ela nunca reclamou nada, desapareceu pra sempre. Até andaram falando que ela suicidou-se, porque continuava apaixonadíssima pelo brasileiro, apesar. Mas isto nunca se conseguiu tirar a limpo. Ele é que vendeu o gado e ficou viajando por todo o Sul, sempre com pensão na amante. Quando foi da Revolução de 30, se meteu na revolução, sem gosto, sem acreditar em nada, só porque era revolução contra o Brasil. Diz-que ele ia ficando maníaco, odiava o Brasil e dava razão pra Solano Lopes que foi quem declarou a Guerra do Paraguai contra nós. Afinal conseguiu vender a fazenda e as casas de Cuiabá, mas dizem que na casa onde ele mora não tem nada. Só que ele prega na parede tudo quanto é notícia ofendendo o Brasil.

− Ah, não! isso não deve ser verdade senão o Querino me contava!

− Por que que só o Querino é que há-de saber!

− Ele entrou vários dias na casa pra instalar o gás, já falei!

− Uhm...

Diva não se conteve mais, arrancou:

− Tudo isso é uma mentira muito besta! Por que vocês não conversam noutra coisa!

− Você conhece ele, é?

Diva hesitou.

−... nnnão. Mas ele sempre vem aqui.

− Você já foi com ele?

− Não, ele não quis. Mas falou que eu desculpasse, é muito mais delicado que vocês todos juntos, sabem!

− Isso de delicadeza... Deve ser é algum viciado, vá ver que não é outra coisa.

A garçonete ficou indignada. Se ergueu com brutalidade.

− Arre que vocês também são uns... Ia insultar, enojada, mas se lembrou que era garçonete: Por favor, não olhem tanto pra ele assim! Ele vai sair...

De fato, o homem estava mexendo exagitadamente em dinheiro. Diva foi pra junto dele, achando jeito, com o corpo, de o esconder da curiosidade dos rapazes. Fingia procurar troco. Olhou-o com esperança tristonha:

− Por que o senhor não toma mais um chope... Está quente hoje...
Ele estremeceu muito, devorou-a com os olhos angustiados:

− Por que a senhora quer que eu tome mais chope hoje! Seis não é a minha conta de sempre! Estavam falando de mim naquela mesa, não!

E foi saindo muito rápido, escorraçado, sem olhar ninguém, sem esperar resposta nem troco. Era incontestável que fugia.

Na rua andava com muita pressa, apenas hesitante nas esquinas que acabava dobrando sempre, procurando desnortear perseguidores invisíveis. Afinal, seis

quarteirões longe, parou brusco. Estava ofegante, suava muito na noite abafada. Olhou em torno e não tinha ninguém. Certificou-se ainda se ninguém o perseguia, mas positivamente não havia pessoa alguma na rua morta, era já bem mais de uma hora da manhã. Enfim tirava a mão esquerda do bolso e enxugava com algum sossego o suor do rosto. A mão era mesmo repugnante de ver, a pele engelhada, muito vermelha e polida. E assim, justamente por ser o polegar que faltava, a mão parecia um garfo, era horrível.

Depois de se enxugar, olhou o relógio-pulseira e tornou a esconder a mão no bolso. Voltou a caminhar outra vez, e agora andava em passo normal, sem mais pressa nenhuma. Aos poucos foi se engolfando lá nos próprios pensamentos, o rosto readquiriu uma seriedade sombria enquanto o passo se mecanizava. Tomou aquele seu jeito de enfiar o queixo no pescoço, cabeça baixa, parecia numa concentração absoluta. Algum raro transeunte que passava, ele nem dava tento mais. Às vezes fazia gestos pequenos, gestos mínimos, argumentando, houve um instante em que sorriu. Mas se recobrou imediatamente, olhando em volta, apreensivo. Não estava ali ninguém pra lhe surpreender o riso – e era aquele sorriso quase esgar, apenas uma linha larga, vincando uma porção de rugas na face lívida.

Mas decerto perseverara o receio de que o pudessem descobrir sorrindo: principiou caminhando mais depressa outra vez. Lá na esquina em frente despontavam alguns rapazes que vinham da noite de sábado, conversando alto. O homem pretendeu parar, hesitou. Acabou atravessando apenas a rua, tomando o outro passeio pra não topar de frente com os rapazes. Enfim chegara na alameda do Triunfo. Três quarteirões mais longe devia ser a casa onde morava, pelo que afirmara o Alfredo. Na esquina era o botequim de seu Basílio, que estava fechando. O português chegou na última porta ainda entreaberta, pediu licença aos três operários, fechou a porta com um “boa-noite” malcriado. Mas os operários estavam mais falantes com a cerveja do sábado, chegaram até à beira da calçada e se deixaram ficar ali mesmo, naquela conversa.

O homem vinha chegando e aos poucos diminuía o andar, observando a manobra do botequim. Diminuiu o passo mais, dando tempo a que os operários se afastassem. Afinal parou. Os três homens tinham ficado ali conversando, e ele estacou, olhou pra trás, pretendendo voltar caminho, talvez. Depois ficou imóvel, aproveitando o tronco da árvore, disposto a esperar. Dali espiava os operários sem ser visto. Lhe dava aquela inquietação subitânea, voltava-se rápido. Parecia temer que alguém viesse pela calçada e o apanhasse escondido ali. Mas a rua estava deserta, não passava mais ninguém.

A situação durava assim pra mais de um quarto de hora e os operários não davam mostra de partir. O homem esperando sempre, só que a impaciência crescia nele. Olhava a todo instante o relógio, como se tivesse hora marcada, olhos pregados nos três vultos da esquina. Falavam alto, a conversa chegava até junto dele, uma conversa qualquer. Agora vinha lá do lado oposto da alameda, o rondante, na indiferença, bem pelo meio da rua, batendo o tacão da botina, no despoliciamento proverbial desta

cidade. O guarda, fosse pelo que fosse, ao menos pra mostrar força diante de gente na cerveja, resolveu enticar com os operários. E parou na esquina também, olhando franco os homens, rolando o bastão no pulso. Os operários nem se deram por achados.

De longe, meio esquecido do esconderijo, o homem, agora imóvel, devorava a cena, olhos escancarados sem piscar. O guarda, vendo que os operários não se intimidavam com a presença dele, resolveu fazer uma demonstração de autoridade. Se dirigiu calmo aos homens, que pararam a conversa, esperando o que o polícia ia falar. O homem chegou a sair com o corpo todo de trás do tronco, na ânsia de escutar o que o guarda dizia. Mas este falava baixo, resolvido a principiar pelo conselho, paternal. Nasceu uma troca de palavras mas pequena, acabou logo, porque os operários não estavam pra discutir com um rondante ranzinza. Resolveram obedecer. Aliás era tarde mesmo. Foram-se embora, ainda conversando mais alto de propósito, forçando a voz, só porque o guarda falara que eles estavam acordando quem dormia nas casas. O polícia percebeu, ficou com raiva, mas também não estava muito disposto a se incomodar, que afinal os operários eram três, bem fortes. Ficou olhando, mãos na cinta, ameaçador, quando os três já estavam bem longe, sacudiu a cabeça agressiva e dobrou a esquina, continuando o seu fingimento de ronda, batendo tacão.

O homem se viu só. Houve um relaxamento de músculos pelo corpo dele, os ombros caíram, veio o suspiro de alívio. Reprincipiou a andar devagarinho, calmo outra vez. Na esquina ainda parou, espiando se o guarda ia longe. Nem sombra de guarda mais. Atravessou mais rápido a rua, passou pelo boteco do português, e agora andava com precaução, tirando o molho volumoso de chaves do bolso. Chegado em frente duma porta, foi disfarçadamente se dirigindo para a beira da calçada. Parou sobre a guia, aproveitando a sombra da árvore pra se esconder. Virou os olhos para um lado e outro, examinando a alameda. Num momento, se dirigiu quase num pulo para a porta, abriu-a, deslizou pela abertura, fechou a porta atrás de si, dando três voltas à chave.
 
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Fonte:
Mário de Andrade: Contos Novos. Projeto Livro Livre. São Paulo, 2016.

Mário de Andrade: "Frederico Paciência"

FREDERICO PACIÊNCIA


Frederico Paciência... Foi no ginásio... Éramos de idade parecida, ele pouco mais velho que eu, quatorze anos.

Frederico Paciência era aquela solaridade escandalosa. Trazia nos olhos grandes bem pretos, na boca larga, na musculatura quadrada da peitaria, em principal nas mãos enormes, uma franqueza, uma saúde, uma ausência rija de segundas intenções. E aquela cabelaça pesada, quase azul, numa desordem crespa. Filho de português e de carioca. Não era beleza, era vitória. Ficava impossível a gente não querer bem ele, não concordar com o que ele falava.

Senti logo uma simpatia deslumbrada por Frederico Paciência, me aproximei franco dele, imaginando que era apenas por simpatia. Mas se ligo a insistência com que ficava junto dele a outros atos espontâneos que sempre tive até chegar na força do homem, acho que se tratava dessa espécie de saudade do bem, de aspiração ao nobre, ao correto, que sempre fez com que eu me adornasse de bom pelas pessoas com quem vivo. Admirava lealmente a perfeição moral e física de Frederico Paciência e com muita sinceridade o invejei. Ora em mim sucede que a inveja não consegue nunca se resolver em ódio, nem mesmo em animosidade: produz mas uma competência divertida, esportiva, que me leva à imitação. Tive ânsias de imitar Frederico Paciência. Quis ser ele, ser dele, me confundir naquele esplendor, e ficamos amigos.

Eu era o tipo do fraco. Feio, minha coragem não tinha a menor espontaneidade, tendência altiva para os vícios, preguiça. Inteligência incessante mas principalmente difícil. Além do mais, naquele tempo eu não tinha nenhum êxito pra estímulo. Em família era silenciosamente considerado um caso perdido, só porque meus manos eram muito bonzinhos e eu estourado, e enquanto eles tiravam distinções no colégio, eu tomava bombas.

Uma ficou famosa, porque eu protestei gritado em casa, e meu Pai resolveu tirar a coisa a limpo, me levando com ele ao colégio. Chamado pelo diretor, lá veio o marista, irmão Bicudo o chamávamos, trazendo na mão um burro de Virgílio em francês, igualzinho ao que me servira na cola. Meio que turtuviei mas foi um nada. Disse arrogante:

− Como que o sr. prova que eu colei!

Irmão Bicudo nem me olhou. Abriu o burro quase na cara de Papai, tremia de raiva: − Seu menino traduz latim muito bem!... mas não sabe traduzir francês!

Papai ficou pálido, coitado. Arrancou: − Seu padre me desculpe.

Não falou mais nada. Durante a volta era aquele mutismo, não trocou sequer um olhar comigo. Foi esplêndido mas quando o condutor veio cobrar as passagens no bonde, meu Pai tirou com toda a naturalidade os níqueis do bolsinho mas de repente ficou olhando muito o dinheiro, parado, olhando os níqueis, perdido em reflexões inescrutáveis. Parecia decidir da minha vida, ouvi, cheguei a ouvir ele dizendo “Não pago a passagem desse menino”. Mas afinal pagou.

Frederico Paciência foi minha salvação. A sua amizade era se entregar, amizade era pra tudo. Não conhecia reservas nem ressalvas, não sabia se acomodar humanamente com os conceitos. Talvez por isto mesmo, num como que instinto de conservação, era camarada de toda a gente, mas não tinha grupos preferidos nem muito menos amigos. Não há dúvida que se agradava de mim, inalteravelmente feliz de me ver e conversar comigo. Apenas eu percebia, irritado, que era a mesma coisa com todos. Não consegui ser discreto.

Depois da aula, naquela pequena parte do caminho que fazíamos juntos até o largo da Sé, puxando o assunto para os colegas, afinal acabei, bastante atrapalhado, lhe confessando que ele era o meu “único” amigo. Frederico Paciência entreparou num espanto mudo, me olhando muito. Apressou o passo pra pegar a minha dianteira pequena, eu numa comoção envergonhada, já nem sabendo de mim, aliviado em minha sinceridade. Chegara a esquina em que nos separávamos, paramos. Frederico Paciência estava maravilhoso, sujo do futebol, suado, corado, derramando vida. Me olhou com uma ternura sorridente. Talvez houvesse, havia um pouco de piedade. Me estendeu a mão a que mal pude corresponder, e aquela despedida de costume, sem palavra, me derrotou por completo. Eu estava envergonhadíssimo, me afastei logo, humilhado, andando rápido pra casa, me esconder. Porém Frederico Paciência estava me acompanhando!

− Você não vai pra casa já!

− Ara... estou com vontade de ir com você...

Foram quinze minutos dos mais sublimes de minha vida. Talvez que pra ele também. Na rua violentamente cheia de gente e de pressa, só vendo os movimentos estratégicos que fazíamos, ambos só olhos, calculando o andar deste transeunte com a soma daqueles dois mais vagarentos, para ficarmos sempre lado a lado. Mas em minha cabeça que fantasmagorias divinas, devotamentos, heroísmos, ficar bom, projetos de estudar. Só na porta de casa nos separamos, de novo esquerdos, na primeira palavra que trocávamos amigos, aquele “até-logo” torto.

E a vida de Frederico Paciência se mudou para dentro da minha. Me contou tudo o que ele era, a mim que não sabia fazer o mesmo. Meio que me rebaixava meu Pai ter sido operário em mocinho. Mas quando o meu amigo me confessou que os pais dele fazia só dois anos que tinham casado, até achei lindo. Pra que casar! é isso mesmo! O pior é que Frederico Paciência depusera tal confiança em mim, me fazia tais confissões

sobre instintos nascentes que me obrigava a uma elevação constante de pensamento. Uns dias quase o odiei. Me bateu clara a intenção de acabar com aquela “infância”. Mas tudo estava tão bom.

Os domingos dele me pertenceram. Depois da missa fazíamos caminhadas enormes. Um feriado chegamos a ir até a Cantareira a-pé. Continuou vindo comigo até a porta de casa. Uma vez entrou. Mas eu não gostava de ver ele na minha família, detestei até Mamãe junto dele, ficavam todos muito baços. Mas me tornei familiar na casa dele, eram só os pais, gente vazia, enriquecida à pressa, dando liberdade excessiva ao filho, espalhafatosamente envaidecida daquela amizade com o colega de “família boa”.

Me lembro muito bem que pouco depois, uns cinco dias, da minha declaração de amizade, Frederico Paciência foi me buscar depois da janta. Saímos. Principiava o costume daqueles passeios longos no silêncio arborizado dos bairros. Frederico Paciência falava nos seus ideais, queria ser médico. Adverti que teria que fazer os estudos no Rio e nos separaríamos. Em mim, fiz mas foi calcular depressa quantos anos faltavam para me livrar do meu amigo. Mas a ideia da separação o preocupou demais. Vinha com propostas, ir com ele, estudar medicina, ou ser pintor pois que eu já vivia desenhando a caricatura dos padres.

Fiquei de pensar e, dialogando com as aspirações dele, pra não ficar atrás, meio que menti. Acabei mentindo duma vez. Veio aquele prazer de me transportar pra dentro do romance, e tudo foi se realizando num romance de bom-senso discreto, pra que a mentira não transparecesse, e onde a coisa mais bonita era minha alma. Frederico Paciência então me olhava com os olhos quase úmidos, alargados, de êxtase generoso. Acreditava. Acreditou tudo. De resto, não acreditar seria inferioridade. E foi esse o maior bem que guardo de Frederico Paciência, porque uma parte enorme do que de bom e de útil tenho sido vem daquela alma que precisei me dar, pra que pudéssemos nos amar com franqueza.

No ginásio a nossa vida era uma só. Frederico Paciência me ensinava, me assoprava respostas nos momentos de aperto, jurando depois com riso que era pela última vez. A permanência dele em mim implicava aliás um tal ou qual esforço da minha parte pra estudar, naquele regime de estudo abortivo que, sem eu ainda atinar que era errado, me revoltava. Um dia ele me surpreendeu lendo um livro. Fiquei horrorizado mas imediatamente uma espécie de curiosidade perversa, que eu disfarçava com aquela intenção falsa e jamais posta em prática de acabar com “aquela amizade besta”, me fez não negar o que lia. Era uma História da prostituição na Antiguidade, dessas edições clandestinas portuguesas que havia muito naquela época. E heroico, embora sempre horrorizado, passei o livro a ele. Folheou, examinou os títulos do índice, ficou olhando muito o desenho da capa. Depois me deu o livro.

− Tome cuidado com os padres.

− Ah... está dentro da pasta, eles não veem.

− E se examinarem as pastas...

− Pois se examinarem acham!

Passamos o tempo das aulas disfarçando bem. Mas no largo da Sé, Frederico Paciência falou que hoje carecia ir já pra casa, ficando logo engasgadíssimo na mentira. Mas como eu o olhasse muito, um pouco distraído em observar como é que se mentia sem ter jeito, ele inda achou força pra esclarecer que precisava sair com a Mãe. E, já despedidos um do outro, meio rindo de lado, ele me pediu o livro pra ler. Tive um desejo horrível de lhe pedir que não pedisse o livro, que não lesse aquilo, de jurar que era infame. Mas estava por dentro que era um caos. Me atravessava o convulsionamento interior a ideia cínica de que durante todo o dia pressentira o pedido e tomara cuidado em não me prevenir contra ele. E dizer agora tudo o que estava querendo dizer e não podia, era capaz de me diminuir. E afinal o que o livro contava era verdade... Se recusasse, Frederico Paciência ia imaginar coisas piores. Na aparência, fui tirando o livro da mala com a maior naturalidade, gritando por dentro que ainda era tempo, bastava falar que ainda não acabara de ler, quando acabasse...

Depois dizia que o livro não prestava, era imoral, o rasgara. Isso até me engrandeceria... Mas estava um caos. E até que ponto a esperança de Frederico Paciência ter certas revelações... E o livro foi entregue com a maior naturalidade, sem nenhuma hesitação no gesto. Frederico Paciência ainda riu pra mim, não pude rir. Sentia um cansaço. E puro. E impuro.

Passei noite de beira-rio. Nessa noite é que todas essas ideias da exceção, instintos espaventados, desejos curiosos, perigos desumanos me picavam com uma clareza tão dura que varriam qualquer gosto. Então eu quis morrer. Se Frederico Paciência largasse de mim... Se se aproximasse mais... Eu quis morrer. Foi bom entregar o livro, fui sincero, pelo menos assim ele fica me conhecendo mais. Fiz mal, posso fazer mal a ele. Ah, que faça! ele não pode continuar aquela “infância”. Queria dormir, me debatia. Quis morrer.

No dia seguinte Frederico Paciência chegou tarde, já principiadas as aulas. Sentou como de costume junto de mim. Me falou um bom-dia simples mas que imaginei tristonho, preocupado. Mal respondi, com uma vontade assustada de chorar. Como que havia entre nós dois um sol que não permitia mais nos vermos mutuamente. Eu, quando queria segredar alguma coisa, era com os outros colegas mais próximos. Ele fazia o mesmo, do lado dele. Mas ainda foi ele quem venceu o sol.

No recreio, de repente, eu bem que só tinha olhos pra ele, largou o grupo em que conversava, se dirigiu reto pra mim. Pra ninguém desconfiar, também me apartei do meu grupo e fui, como que por acaso, me encontrar com ele. Paramos frente a frente. Ele abaixou os olhos, mas logo os ergue com esforço. Meu Deus! por que não fala! O olho, o procuro nos olhos, lhe devorando os olhos internados, mas o olho com tal ansiedade, com toda a perfeição do ser, implorando me tornar sincero, verdadeiro, digníssimo, que Frederico Paciência é que pecou. Baixou os olhos outra vez, tirando de nós dois qualquer exatidão. Murmurou outra coisa:

– Pus o livro na sua mala, Juca. Acho bom não ler mais essas coisas.

Percebi que eu não perdera nada, fiquei numa alegria doida. Ele agora estava me olhando na cara outra vez, sereno, generoso, e menti. Fui de uma sem-vergonhice grandiosa, menti apressadamente, com um tal calor de sinceridade que eu mesmo não chegava bem a perceber que era tudo mentira. Mas falei comprido e num momento percebi que Frederico Paciência não estava acreditando mais em mim, me calei. Fomos nos ajuntar aos colegas. Era tristeza, era tristeza sim o que eu sentia, mas com um pouco também de alegria de ver o meu amigo espezinhado, escondendo que não me acreditava, sem coragem pra me censurar, humilhado na insinceridade. Eu me sentia superior!

Mas essa tarde, quando saímos juntos no passeio, numa audácia firme de gozar Frederico Paciência não dizendo o que sentia, eu levava um embrulho bem-feitinho comigo. Quando Frederico Paciência perguntou o que era, ri só de lábios feito uma caçoada amiga, o olhando de lado, sem dizer nada. Fui desfazendo bem saboreado o embrulho, era o livro. Andava, olhava sempre o meu amigo, riso no beiço, brincador, conciliador, absolvido. E de repente, num gesto brusco, arrebentei o volume em dois. Dei metade ao meu amigo e principiei rasgando miudinho, folha por folha, a minha parte. Aí Frederico Paciência caiu inteiramente na armadilha. O rosto dele brilhou numa felicidade irritada por dois dias de trégua, e desatamos a rir. E as ruas foram sujadas pelos destroços irreconstituíveis da História da prostituição na Antiguidade. Eu sabia que ficava um veneno em Frederico Paciência, mas isso agora não me inquietava mais. Ele, inteiramente entregue, confessava, agora que estava liberto do livro, que ler certas coisas, apesar de horríveis, “dava uma sensação esquisita, Juca, a gente não pode largar”.

Diante de uma amizade assim tão agressiva, não faltaram bocas de serpentes. Frederico Paciência, quando a indireta do gracejo foi tão clara que era impossível não perceber o que pensavam de nós, abriu os maiores olhos que lhe vi. Veio uma palidez de crime e ele cegou. Agarrou o ofensor pelo gasnete e o dobrou nas mãos inflexíveis. Eu impassível, assuntando. Foi um custo livrar o canalha. Forcejavam pra soltar o rapaz daquelas mãos endurecidas numa fatalidade estertorante. Eu estava com medo, de assombro. Falavam com Frederico Paciência, o sacudiam, davam nele, mas ele quem disse acordar! Só os padres que acorreram com o alarido e um bedel atleta conseguiram apartar os dois. O canalha caiu desacordado no chão. Frederico Paciência só grunhia “Ele me ofendeu”, “Ele me ofendeu”. Afinal – todos já tinham tomado o nosso partido, está claro, com dó de Frederico Paciência, convencidos da nossa pureza

– afinal uma frase de colega esclareceu os padres. O castigo foi grande mas não se falou de expulsão.

Eu não. Não falei nada, não fiz nada, fiquei firme. No outro dia o rapaz não apareceu no colégio e os colegas inventaram boatos medonhos, estava gravíssímo, estava morto, iam prender Frederico Paciência. Este, soturno. Parecia nem ter coragem pra me olhar, só me falava o indispensável, e imediato afinei com ele, soturnizado também.

Felizmente não nos veríamos à saída, ele detido pra escrever quinhentas linhas por dia durante uma semana – castigo habitual dos padres. Mas no segundo dia o canalha apareceu. Meio ressabiado, é certo, mas completamente recomposto. Tinha chegado a minha vez.

Calculadamente avisei uns dois colegas que agora era comigo que ele tinha que se haver. Foram logo contar, e embora da mesma força que eu, era visível que ele ficou muito inquieto. Inventei uma dor-de-cabeça pra sair mais cedo, mas os olhos de todos me seguindo, proclamavam o grande espetáculo próximo. Na saída, acompanhado de vários curiosos, ele vinha muito pálido, falando com exagero que se eu me metesse com ele usava o canivete. Saí da minha esquina, também já alcançado por muitos, e convidei o outro pra descermos na várzea perto. Eu devia estar pálido também, sentia, mas nada covarde. Pelo contrário: numa lucidez gélida, imaginando jeito certo de mais bater que apanhar. Mas o rapaz fraquejou, precipitando as coisas, que não! que aquilo fora uma brincadeira besta dele, aí um soco nas fuças o interrompeu. O sangue saltou com fúria, o rapaz avançou pra cima de mim, mas vinha como sem vontade, descontrolado, eu gélido. Outro soco lhe atingiu de novo o nariz. Ele num desespero me agarrou pelo meio do corpo, foi me dobrando, mas com os braços livres, eu malhava a cara dele, gostando do sangue me manchando as mãos. Ele gemeu um “ai” flébil, quis chorar num bufido infantil de dor pavorosa. Não sei, me deu uma repugnância do que ele estava sofrendo com aqueles socos na cara, não pude suportar: com um golpe de energia que até me tonteou, botei o cotovelo no queixo dele, e um safanão o atirou longe. Me agarraram. O rapaz, completamente desatinado, fugiu na carreira.

Umas censuras rijas de transeuntes, nem me incomodei, estava sublime de segurança. Qualquer incerteza, qualquer hesitação que me nascesse naquele alvoroço interior em que eu escachoava, a imagem, mas única, exclusiva realidade daquilo tudo, a imagem de Frederico Paciência estava ali pra me mover. Eu vingara Frederico Paciência! Com a maior calma, peguei na minha mala que um colega segurava, nem disse adeus a ninguém. Fui embora compassado. Tinha também agora um sol comigo. Mas um sol ótimo, diferente daquele que me separa de meu amigo no caso do livro. Não era glória nem vanglória, nem volúpia de ter vencido, nada. Era um equilíbrio raro – esse raríssimo de quando a gente age como homem-feito, quando se é rapaz. Puro. E impuro.

Procurei Frederico Paciência essa noite e contei tudo. Primeiro me viera a vaidade de não contar, bancar o superior, fingindo não dar importância à briga, só pra ele saber de tudo pelos colegas. Mas estava grandioso por demais pra semelhante inferioridade. Contei tudo, detalhe por detalhe. Frederico Paciência me escutou, eu percebia que ele escutava devorando, não podendo perder um respiro meu. Fui heroico, antes: fui artista! Um como que sentimento de beleza me fez ajuntar muito pouca fantasia à descrição, desejando que ela fosse bem simples. Quando acabei, Frederico Paciência não disse uma palavra só, não aprovou, não desaprovou. E uma tristeza nos envolveu, a tristeza mais feliz de minha vida. Como estava bom, era quase sensual, a gente assim passeando os dois, tão tristes...

Mas de tudo isso, do livro, da invencionice dos colegas, da nossa revolta exagerada, nascera entre nós uma primeira, estranha frieza. Não era medo da calúnia alheia, era como um quebrar de esperanças insabidas, uma desilusão, uma espécie amarga de desistência. Pelo contrário, como que basofientos, mais diante de nós mesmos que do mundo, nasceu de tudo isso o nos aproximarmos fisicamente um do outro, muito mais que antes. O abraço ficou cotidiano em nossos bons-dias e até-logos.

Agora falávamos insistentemente da nossa “amizade eterna”, projetos de nos vermos diariamente a vida inteira, juramentos de um fechar os olhos do que morresse primeiro. Comentando às claras o nosso amor de amigo, como que procurávamos nos provar que daí não podia nos vir nenhum mal, e principalmente nenhuma realização condenada pelo mundo. Condenação que aprovávamos com assanhamento. Era um jogo de cabeças unidas quando sentávamos pra estudar juntos, de mãos unidas sempre, e alguma vez mais rara, corpos enlaçados nos passeios noturnos. E foi aquele beijo que lhe dei no nariz depois, depois não, de repente no meio duma discussão rancorosa sobre se Bonaparte era gênio, eu jurando que não, ele que sim. – Besta! – Besta é você! Dei o beijo, nem sei! parecíamos estar afastados léguas um do outro nos odiando. Frederico Paciência recuou, derrubando a cadeira. O barulho facilitou nosso fragor interno, ele avançou, me abraçou com ansiedade, me beijou com amargura, me beijou na cara em cheio dolorosamente. Mas logo nos assustou a sensação de condenados que explodiu, nos separamos conscientes. Nos olhamos olho no olho e saiu o riso que nos acalmou. Estávamos verdadeiros e bastantes ativos na verdade escolhida. Estávamos nos amando de amigo outra vez; estávamos nos desejando, exaltantes no ardor, mas decididos, fortíssimos, sadios.

– Precisamos tomar mais cuidado.

Quem falou isso? Não sei se fui eu se foi ele, escuto a frase que jorrou de nós. Jamais fui tão grande na vida.

Mas agora já éramos amigos demais um do outro, já o convívio era alimento imprescindível de cada um de nós, para que o cuidado a tomar decidisse um afastamento. Continuamos inseparáveis, mas tomando cuidado. Não havia mais aquele jogo de mãos unidas, de cabeças confundidas. E quando por distração um se apoiava no outro, o afastamento imediato, rancoroso deste, desapontava o inocente.

O pior eram as discussões, cada vez mais numerosas, cada vez porventura mais procuradas. Quando a violência duma briga, “Você é uma besta!”, “Besta é você!”, nos excitava fisicamente demais, vinha aquela imagem jamais confessada do incidente do beijo, a discussão caía de chofre. A mudez súbita corrigia com brutalidade o caminho do mal e perseverávamos deslumbradamente fiéis à amizade. Mas tudo, afastamentos, correções, discussões quebradas em meio, só nos fazia desoladamente conscientes, em nossa hipocrisia generosa, de que aquilo ou nos levava para infernos insolúveis, ou era o princípio dum fim.

Com a formatura do ginásio descobrimos afinal um pretexto para iniciar a desagregação muito negada, e mesmo agora impensada, da nossa amizade. Falo que era “pretexto” porque me parece que tinha outras razões mais ponderosas. Mas Frederico Paciência insistia em fazer exames ótimos aquele último ano. Eu não pudera me resolver a estudos mais severos, justo num ano de curso em que era de praxe os examinadores serem condescendentes. Na aparência, nunca nos compreendêramos tão bem, tanto eu aceitava a honestidade escolar do meu amigo, como ele afinal se dispusera a compreender minha aversão ao estudo sistemático. Mas a diferença de rumos o prendia em casa e me deixava solto na rua. Veio uma placidez.

Tinha outras razões mais amargas, tinha os bailes. E havia a Rose aparecendo no horizonte, muito indecisa ainda. Se pouco menos de ano antes, conhecêramos juntos para que nos servia a mulher, só agora, nos dezesseis anos, é que a vida sexual se impusera entre os meus hábitos. Frederico Paciência parecia não sentir o mesmo orgulho de semostração e nem sempre queria me acompanhar. Às vezes me seguia numa contrariedade sensível. O que me levava ao despeito de não o convidar mais e a existir um assunto importantíssimo pra ambos, mas pra ambos de importância e preocupações opostas. A castidade serena de meu amigo, eu continuava classificando de “infâncias”. Frederico Paciência, por seu lado, se escutava com largueza de perdão e às vezes certa curiosidade os meus descobrimentos de amor, contados quase sempre com minúcia raivosa, pra machucar, eu senti mais de uma vez que ele se fatigava em meio da narrativa insistente e se perdia em pensamentos de mistério, numa melancolia grave. E eu parava de falar. Ele não insistia. E ficávamos contrafeitos, numa solidão brutalmente física.

Mas ainda devia ter razões mais profundas para aquela desagregação sutil de amizade, desagregação, insisto, em que não púnhamos reparo. É que tínhamos nos preocupado demais com o problema da amizade, pra que a nossa não fosse sempre um objeto, é pena, mas bastante exterior a nós, um objeto de experimentação. De forma que passada em dois anos toda a aventura da amizade nascente, com suas audácias e incidentes, aquele prazer sereno da amizade cotidiana se tornara um “caso consumado”. E isso, para a nossa rapazice necessariamente instável, não interessava quase. Nos amávamos agora com verdade perfeita mas sem curiosidade, sem a volúpia de brincar com fogo, sem aprendizado mais. E fora em defesa da amizade mesma que lhe mudáramos a... a técnica de manifestação. E esta técnica, feita de afastamentos e paciências, naquele estádio de verdades muito preto e branco, era uma pequena, voluntária desagregação impensada. De maneira que adquiríamos uma convicção falsa de que estávamos nos afastando um do outro, por incapacidade, ou melhor: por medo de nos analisarmos em nossa desagregação verdadeira, entenda quem quiser. No colégio éramos apenas colegas. De-noite não nos encontrávamos mais, ele estudando. Mas que domingos sublimes agora, quando algum piquenique detestado mas aceito com prazer espetacular muito fingido, não vinha perturbar nosso desejo de estarmos sós. Era uma ventura incontável esse encontro dominical, quanta franqueza, quanto

abandono, quanto passado nos enobrecendo, nos aprofundando e era como uma carícia longa, velha, entediada. Vivíamos por vezes meia hora sem uma palavra, mas em que nossos espíritos, nossas almas entreconhecidas se entendiam e se irmanavam com silêncio vegetal.

Estou lutando desde o princípio destas explicações sobre a desagregação da nossa amizade, contra uma razão que me pareceu inventada enquanto escrevia, para sutilizar psicologicamente o conto. Mas agora não resisto mais. Está me parecendo que entre as causas mais insabidas, tinha também uma espécie de despeito desprezador de um pelo outro... Se no começo invejei a beleza física, a simpatia, a perfeição espiritual normalíssima de Frederico Paciência, e até agora sinto saudades de tudo isso, é certo que essa inveja abandonou muito cedo qualquer aspiração de ser exatamente igual ao meu amigo. Foi curtíssimo, uns três meses, o tempo em que tentei imitá-lo. Depois desisti, com muito propósito. E não era porque eu conseguisse me reconhecer na impossibilidade completa de imitá-lo, mas porque eu, sinceramente, sabei-me lá por quê! não desejava mais ser um Frederico Paciência!

O admirava sempre em tudo, mesmo porque até agora o acho cada vez mais admirável, até em sua vulgaridade que tinha muito de ideal. Mas pra mim, para o ser que eu me quereria dar, eu... eu corrigia Frederico Paciência. E é certo que não o corrigia no sentido da perfeição, sinceramente eu considerava Frederico Paciência perfeito, mas no sentido de uma outra concepção do ser, às vezes até diminuída de perfeições. A energia dele, a segurança serena, sobretudo aquela como que incapacidade de errar, aquela ausência do erro, não me interessavam suficientemente pra mim. E eu me surpreendia imaginando que se as possuísse, me sentiria diminuído.

E enfim eu me pergunto ainda até que ponto, não só para o meu ideal de mim, mas para ele mesmo, eu pretendera modificar, “corrigir” Frederico Paciência no sentido desse outro indivíduo ideal que eu desejara ser, de que ele fora o ponto-de-partida?...

É certo que ele sempre foi pra comigo muito mais generoso, me aceitou sempre tal como eu era, embora interiormente, estou seguro disso, me desejasse melhor. Se satisfazia de mim para amigo, ao passo que a mim desde muito cedo ele principiou sobrando. Assim: o nos afastarmos um do outro em nossa cotidianidade, o que chamei já agora erradamente, tenho certeza, de “desagregação”, era mas apenas um jeito da amizade verdadeira. Era mesmo um aperfeiçoamento de amizade, porque agora nada mais nos interessava senão o outro tal como era, em nossos encontros a sós: nos amávamos pelo que éramos, tal como éramos, desprendidamente, gratuitamente, sem o instinto imperialista de condicionar o companheiro a ficções de nossa inteira fabricação. Estou convencido que perseveraríamos amigos pela vida inteira, se ela, a tal, a vida, não se encarregasse de nos roubar essa grandeza.

Pouco depois de formados, ano que foi de hesitação pra nós, eu querendo estudar pintura mas “isso não era carreira”, ele medicina, mas os negócios prendendo a São Paulo a gente dele, uma desgraça me aproximou de Frederico Paciência: morreu-lhe o Pai. Me devotei com sinceridade. Nascera em mim uma experiência, uma... sim, uma paternidade crítica em que as primeiras hesitações de Frederico Paciência puderam se apoiar sem reserva.

Meu amigo sofreu muito. Mas, sem indicar insensibilidade nele (aliás era natural que não amasse muito um pai que fora indiferentemente bom) me parece que a dor maior de Frederico Paciência não foi perder o Pai, foi a decepção que isso lhe dava. Sentiu um espanto formidável essa primeira vez que deparou com a morte. Mas fosse decepção, fosse amor, sofreu muito. Fui eu a consolar e consegui o mais perfeito dos sacrifícios, fiquei muito mudo, ali. O melhor alívio para a infelicidade da morte é a gente possuir consigo a solidão silenciosa duma sombra irmã. Vai-se pra fazer um gesto, e a sombra adivinha que a gente quer água, e foi buscar. Ou de repente estende o braço, tira um fiapo que pegou na vossa roupa preta.

Dois dias depois da morte, ainda marcados pelas cenas penosas do enterro, a Mãe de Frederico Paciência chorava na saleta ao lado, se deixando conversar num grupo de velhas, quando ouvimos:

− Rico! (com erre fraco, era o apelido caseiro do meu amigo).

Fomos logo. De-pé, na frente da coitada, estava um homem de luto, plastron, nos esperando. E ela angustiada:

− Veja o que esse homem quer!

Viera primeiro apresentar os pêsames.

−... conheci muito o vosso defunto pai, coitado. Nobre caráter... Mas como a sua excelentíssima progenitora poderá precisar de alguém, vim lhe oferecer os meus préstimos. Orgulho-me de ter em nosso cartório a melhor clientela de São Paulo. Para ficar livre das formalidades do inventário (e mostrava um papel) é só a sua excelentíssima...

Não sei o que me deu, tive um heroísmo:

− Saia!

O homem me olhou com energia desprezadora. − Saia, já falei!

O homem era forte. Fiz um gesto pra empurrá-lo, ele recuou. Mas na porta quis reagir de novo e então o crivei, o crivamos de socos, ele desceu a escada do jardim caicaindo. Outra vez no quarto, era natural, estávamos muito bem-humorados. Contínhamos o riso pela conveniência da morte, mas foi impossível não sorrir com a lembrança do homem na escada.

− Deite pra descansar um pouquinho.

Ele deitou, exagerando a fadiga, sentindo gosto em obedecer. Sentei na borda da cama, como que pra tomar conta dele, e olhei o meu amigo. Ele tinha o rosto iluminado por uma frincha de janela vespertina. Estava tão lindo que o contemplei embevecido. Ele principiou lento, meio menino, reafirmando projetos. Iriam logo para o Rio, queria se matricular na Faculdade. O Rio... Mamãe é carioca, você já não sabia?... Tenho parentes lá. Com os lábios se movendo rubros, naquele ondular de fala propositalmente fatigada. Eu olhava só. Frederico Paciência percebeu, parou de falar de repente, me olhando muito também. Percebi o mutismo dele, entendi por que era, mas não podia, custei a retirar os olhos daquela boca tão linda. E quando os nossos olhos se encontraram, quase assustei porque Frederico Paciência me olhava, também como eu estava, com olhos de desespero, inteiramente confessado. Foi um segundo trágico, de tão exclusivamente infeliz. Mas a imagem do morto se interpôs com uma presença enorme, recente por demais, dominadora. Talvez nós não pudéssemos naquele instante vencer a fatalidade em que já estávamos, o morto é que venceu.

Depois de dois meses de preparativos que de novo afastaram muito Frederico Paciência de mim, veio a separação. A última semana de nossa amizade (não tem dúvida: a última. Tudo o mais foram idealismos, vergonhas, abusos de preconceitos), a última semana foram dias de noivado pra nós, que de carícias! Mas não quisemos, tivemos um receio enorme de provocar um novo instante como aquele de que o morto nos salvara. Não se trocou palavra sobre o sucedido e forcejamos por provar um ao outro a inexistência daquela realidade estrondosa, que nos conservara amigos tão desarrazoados mas tão perfeitos por mais de três anos. Positivamente não valia a pena sacrificar perfeição tamanha e varrer a florada que cobria o lodo (e seria o lodo mais necessário, mais “real” que a florada?) numa aventura insolúvel. Só que agora a proximidade da separação justificava a veemência dos nossos transportes. Não saíamos da casa dele, com vergonha de mostrar a um público sem nuanças, a impaciência das nossas carícias. Mudos, muitas vezes abraçados, cabeças unidas, naquele sofá trazido da sala-de-visitas, que ficara ali. Quando um dizia qualquer coisa, o outro concordava depressa, porque, mais que a complacência da despedida, nos assustava demais o perigo de discutir. E a única vez em que, talvez esquecido, Frederico Paciência se atirou sobre a cama porque o sono estava chegando, fiquei hirto, excessivamente petrificado, olhando o chão com tão desesperada fixidez, que ele percebeu. Ou não percebeu e a mesma lembraça feroz o massacrou. Foi levantando disfarçado. E de repente, quase gritando, é que falou:

– Mas Juca, o que você tem!

Eu tinha os olhos cheios de lágrimas. Ele sentou e ficamos assim sem falar mais. E era assim que ficávamos aquelas horas exageradamente brevíssimas de adeus. Depois um vulto imaterial de senhora, sacudindo a cabeça, querendo sorrir, lacrimosa, nos falava:

− Meus filhos, são onze horas!

Frederico Paciência vinha me trazer até casa. Sofríamos tanto que parece impossível sofrer com tamanha felicidade. E toda noite era aquilo: a boca rindo, os olhos cheios de lágrimas. Sucedeu até que depois de deixado, eu batesse de novo à porta, fosse correndo alcançar Frederico Paciência, e o acompanhasse à casa dele outra vez. E agora íamos abraçados, num desespero infame de confessar descaradamente ao universo o que nunca existira entre nós dois. Mas assim como em nossas casas agora todos nos respeitavam, enlutados na previsão dum drama venerável de milagre, nos deixando ir além das horas e quebrar quaisquer costumes, também os transeuntes tardos, farristas bêbados e os vivos da noite, nos miravam, não diziam nada, deixando passar.

Afinal a despedida chegou mesmo. Curta, arrastada, muito desagradável, com aquele trem custando a partir, e nós ambos já muito indiferentes um pelo outro, numa já apenas recordação sem presença, que não entendíamos nem podia nos interessar. O sorriso famoso que quer sorrir mas está chorando, chorando muito, tudo o que a vida não chorou. “Então? adeus?”; “Qual! até breve!”; “Você volta mesmo!...”; “Juro que volto!”. O soluço que engasga na risada alegre da partida, enfim livre! O trem partindo. Aquela sensação nítida de alívio. Você vai andando, vê uma garota, e já está noutro mundo. Tropeça num do grupo que sai da estação, “Desculpe!”, ele vos olha, é um rapaz, os dois riem, se simpatizam, poderia ser uma amizade nova. E as luzes miraculosas, rua de todos.

Cartas. Cartas carinhosíssimas fingindo amizade eterna. Em mim despertara o interesse das coisas literárias: fazia literatura em cartas. Cartas não guardadas que ficam por aí, tomando lugar, depois jogadas fora pela criada, na limpeza. Cartas violentamente reclamadas, por causa da discussão com a criadinha, discussões conscientemente provocadas porque a criadinha era gorda. Cartas muito pouco interessantes. O que contávamos do que estava se passando com nossas vidas, Rico na Medicina, eu na música e fazendo versos, o caso até chateava o outro. Sim: tenho a certeza que a ele também aporrinhava o que eu dizia. As cartas se espaçavam.

Foi quando um telegrama veio me contando que a Mãe de Frederico Paciência morrera. Não resistira à morte do marido, como um médico bem imaginara. É indizível o alvoroço em que estourei, foi um deslumbramento, explodiu em mim uma esperança fantástica, fiquei tão atordoado que saí andando solto pela rua. Não podia pensar: realidade estava ali. A Mãe de Rico, que me importava a Mãe de Frederico Paciência! E o que é mais terrível de imaginar: mas nem a ele o sofrimento inegável lhe importava: a morte lhe impusera o desejo de mim. Nós nos amávamos sobre cadáveres. Eu bem que percebia que era horrível. Mas por isso mesmo que era horrível, pra ele mais forte que eu, isso era decisório. E eu me gritava por dentro, com o mais deslavado dos cinismos conscientes, fingindo e sabendo que fingia: Rico está me chamando, eu vou. Eu vou. Eu preciso ir. Eu vou.

Desta vez o cadáver não seria empecilho, seria ajuda, o que nos salvou foi a distância. Não havia jeito de eu ir ao Rio. Era filho-família, não tinha dinheiro. Ainda assim pedi pra ir, me negaram. E quando me negaram, eu sei, fiquei feliz, feliz! Eu bem sabia que haviam de me negar, mas não bastava saber. Como que eu queria tirar de cima de mim a responsabilidade da minha salvação. Ou me tornar mais consciente da minha pobreza moral. Fiquei feliz, feliz! Mandei apenas “sinceros pêsames” num telegrama.

Foi um fim bruto, de muro. Ainda me lembrei de escrever uma carta linda, que ele mostrasse a muitas pessoas que ficavam me admirando muito. Como ele escreve bem! diriam. Mas aquele telegrama era uma recusa formal. Sei que em mim era sempre uma recusa desesperada, mas o fato de parecer formal me provava que tudo tinha se acabado entre nós. Não escrevi. E Frederico Paciência nunca mais me escreveu. Não agradeceu os pêsames. A imagem dele foi se afastando, se afastando, até se fixar no que deixo aqui.

Me lembro que uma feita, diante da irritação enorme dele comentando uma pequena que o abraçara num baile, sem a menor intenção de trocadilho, só pra falar alguma coisa, eu soltara:

– Paciência, Rico.

– Paciência me chamo eu!

Não guardei este detalhe para o fim, pra tirar nenhum efeito literário, não. Desde o princípio que estou com ele pra contar, mas não achei canto adequado. Então pus aqui porque, não sei... essa confusão com a palavra “paciência” sempre me doeu malestarentamente. Me queima feito uma caçoada, uma alegoria, uma assombração insatisfeita.
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Fonte:
Mário de Andrade: Contos Novos. Projeto Livro Livre. São Paulo, 2016.