quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Valdomiro Silveira: "Castigo do Céu"

CASTIGO DO CÉU
Ao Alarico Silveira


− Mas por que foi que você me ficou querendo tanto bem?

− A falar um pouco de verdade, nem sei: mas cuido que foi porque descobri nos seus  olhos a lealdade do seu coração. Você não se lembra que logo logo que tomei conhecimento  com você, já contei pra muita gente que ‘tava apaixonado?

 − Lembro muito, demais: até isso aconteceu numa festa do espírito santo que houve  em santa cruz; por sinal que você vinha montado num cavalo oveiro, muito feio, que pegou de  corcovos assim que os foguetes começaram a chiar.

− É isso mesmo, tal e qual. Você ia saindo da igreja co’a sua mãe, e vestida de chita de  ramos cor de rosa, pois não ia?

Ao  lusco-fusco  da  boca  da  noite,  debaixo  dum  çoita-cavalo  de  ramadas  enormes,  conversavam deste modo, sem tirar nem pôr, o Totico e a Rosinha. A voz dos dois era macia e  de segredo quase; tanto, que um casal de chanchãs que cutucava o tronco da árvore, nem deu  fé, sequer, de que em baixo havia duas pessoas: e não há quem não saiba que os chanchãs são  pássaros muito velhacos e mexeriqueiros.

O  Totico,  afamado  pela  sua  mão  de  rédea  para  acertar,  ganhara  fama  também,  na  Mandaçaia e redondezas, de bicho carpinteiro da alminha das moças. Ele próprio afirmava, a  quem quisesse aturar-lhe as gabolices, que, para mula chucra, basta passar a mão no fio do  lombo e montar; que tal mula talvez dê seus saltos, um pulo ou outro,  mas logo sossega e  pode levar-se pela sombra, que já não conta mais histórias: e que a diferença dûa mula chucra  para ûa mulher, não é lá tão grande coisa!

Depois  de  variadas  aventuras,  encontrou  no  caminho  de  suas  reinações  a  Rosinha,  a  criatura  mais  carinhosa  que  Deus  pôs  neste  mundo,  e  resolveu  enfeitiçá-la.  A  pobre,  que  morava  lá  por  aqueles  fundos  da  cachoeirinha  da  boa  vista  e  não  maliciava  de  ninguém,  vendo-o tão cheio de bondade e falando palavras tão doces como as que ele sabia, ficou logo  entregue.  E  as  coisas  foram-se  encaminhando  de  tal  jeito,  que  um  dia,  quando  ela  quis  precatar-se contra as tentações daquele demônio, já era tarde. Diz que cada um de nós tem seu  anjo  da  guarda,  que  ensina  a  estrada  certa  da  vida  e  livra  dos  precipícios:  o  da  Rosinha  na  certeza  cansou  por  então,  e  dormiu,  deixando-a  bem  acordada,  e  o  inimigo  do  inferno,  aproveitando-se da ocasião, tomou conta daquela criatura desprevenida. Sem dúvida é assim  que todas as outras erram o caminho e se perdem: um descuido, um sozinho qualquer do anjo  da guarda...

Notícia  má  corre  que  é  um  despropósito.  Em  poucos  dias  o  povo  da  Mandaçaia  foi  sabedor daqueles amores. Mulheres idosas aconselhavam à Rosinha que tivesse tento consigo,  porque o Totico era uma alma perdida: e mal sabiam que esses conselhos já chegavam tarde e  a  más  horas.  Ela,  então,  que  tiritava  de  susto  ao  pensar  no  futuro,  principiou  a  ficar  melancólica  e  distraída.  No  meio  da  melancolia  e  da  distração  em  que  se  abismava,  constantemente a viam tremer e agitar-se que nem varas verdes: e, se lhe perguntavam porque  tremia assim, respondia que eram nervos. A resposta contentava, e ela ia vivendo: e,   nem bem  o sol entrava, já seu vulto aparecia, à espera do Totico, no lugar marcado de véspera.

Tantos medos lhe pregaram, que entrou a cismar que o Totico podia desampará-la ao  Deus-dará,  de  uma  hora  para  outra.  E  como  não  tinha  arte  nem  uma  para  dissimular  os  pensamentos que a possuíam, um dia que o Totico desejou saber a razão de ela estar magoada,  logo lhe foi dizendo que se atemorizara por certas prosas que ouvira: e todas lhe repetiu.

O  Totico  faltou  só  bater-lhe:  ficou  irado,  com  os  olhos  em  ponto  de  fogo  e  a  boca  tremendo: chegou a dizer-lhe que, se não o acreditava, tratasse de se esquecer dele, que ele  faria o mesmo e jurava e trejurava que tudo aquilo era mentira. Quem vive namorado não põe  muita relutância em crer o que a pessoa predileta diz: a Rosinha, apesar de lhe fazer espécie o  semblante  enfurecido  do  rapaz,  já  estava  meio  cá,  meio  lá,  para  se  convencer.  O  que  não  conseguiram as palavras, um simples agradinho o conseguiu, porque o Totico pô-se a abraçá- la,  a  Rosinha  enterneceu-se,  e  a  discussão  não  foi  por  diante:  por  estas  e  outras  é  que  ele  assegurava que a diferença de ûa mula chucra para ûa mulher não é lá tão grande coisa...

Ora mais dia, menos dia, a Rosinha deu de ficar moleirona e mofina. A princípio sentia  umas  pontadas  de  banda,  que  muito  a  atormentavam;  depois  perdeu  a  fome  de  uma  vez,  chegava à mesa e nem bulia nos pratos; olheiras cor de violeta cercaram-lhe os olhos; perdeu a  coragem para todo e qualquer serviço; doíam-lhe as cadeiras. A mãe, que vivia na inocência,  balanceava  entre  preparar  algûa  mezinha  ou  mandar  fazer-lhe  qualquer  benzedura:  pensou,  pensou  bastante,  e  resolveu  chamar  para  consulta  uma  curiosa  de  muito  bom  renome,  a  Joaquina das Pedreiras.

A Joaquina das Pedreiras, tanto que soube da doença, já sentiu a pulga atrás da orelha.  Veio, apalpou a Rosinha, deu-lhe palmadas leves no ventre, passou-lhe a mão no pescoço, e  declarou, alto e bom som, que aquilo era moléstia de nove meses. A mãe da Rosinha pulou-lhe  à  goela,  chamando-lhe  os  piores  nomes  deste  mundo:  ordinária,  desgraçada,  caveira  do  demônio, e outros de maior porte, ao fim dos quais, e sob garras tão frenéticas, a mezinheira  começou  a  soluçar.  Abrandou-se  o  coração  da  mãe  da  Rosinha,  e  a  Joaquina  das  Pedreiras  logrou  sair,  praguejando  e  com  o  pescoço  a  correr  sangue.  E  daí  a  pouco  se  verificou  que  falara verdade...

O Totico fugiu às léguas, mal que soube do acontecido. Bem diziam que ele era uma  alma perdida, bem diziam! Ninguém lhe botou mais os olhos em cima: tornou-se num repente  sumidiço que nem bicho do mato. Apenas, de vez em quando, aparecia notícia que o tinham   visto para os lados do capivara, como capataz de porcada dum tal  Maneco de Lellis: até  que  enfim  o  silêncio  caiu  sobre  o  nome,  e  quem  continuou  a  ser  lembrada  e  a  padecer  foi  a  Rosinha.
    
E que padecimentos! As mães de família tratavam-na de resto, olhando-a sempre com  ares de pouco caso; as antigas companheiras evitavam-na sempre; aonde ela ia como que tudo  se desolava na mesma hora; os próprios homens erados a entristeciam, passando-lhe pitos e  dizendo indiretas que a pungiam como os espinhos da macaúba37 com que a gente esbarra à  sombra duma touceira, no emaranhado. Achava tão extraordinário o que lhe sucedia, que nem  dava tino das desfeitas e como que ficara meio idiota: após tanto choro e prantear, nada mais  lhe restava que pedir a Deus  lhe perdoasse e a recebesse na santa glória: e não tinha ânimo de  dirigir tais súplicas a aquele de quem se desviara pelo pecado.

Chegou o dia de adoecer. Foi no senhor menino. Meio mundo se preparava para ir à  missa  do  galo,  quando  ela  principiou  a  sentir  as  dores.  Chorava  que  era  uma  lástima,  queixava-se  da  sorte  e  amaldiçoava  o  momento  em  que  conhecera  o  Totico;  mas  apesar  de  tudo não o amaldiçoava, a ele que lhe dera tais e tantos sofrimentos, deixando-a sozinha com a  mágoa e com o desespero. A mãe, que de perto lhe ouvia os gemidos, tinha os olhos amarados  de lágrimas: e dava dó ver aquelas duas sofredoras assim.

Quando nasceu a criança, um menino miúdo e sadio, a Rosinha desmaiou na loucura da  febre;  os  olhos  pareciam-lhe  brasas  ardentes,  e  de  brasas  ardentes  se  lhe  afigurava  estarem  circuladas as fontes; o secume dos lábios era-lhe insuportável; o ofegar do peito doía-lhe: e  como um espectro que a perseguisse, a todo instante, vagava-lhe em torno o Totico, sem dizer  nada, com a expressão de semblante de um gira. Várias vezes ela disse, na tormenta do delírio:
    
− Nhá mãe, nhá mãe, tire o Totico daqui, porque ele ‘tá louco.
     
E a mãe, silenciosamente, rezava, rogando aos poderes do céu que afastassem da infeliz,  ao menos agora, aquele satanás que só lhe trazia torturas. Pouco a pouco, porém, serenou o  desafortunado espírito da moça: ela dormiu, num sossego semelhante ao da morte, pois mal se  lhe escutava a respiração −, e a mãe, aos pés da cama, ficou velando-lhe o sono até as horas  mais claras da madrugada.

Ao  acordar,  sobre  tarde,  a  Rosinha  pediu  o  filho.  Contemplou-o  largo  tempo:  e  uma  enxurrada quente de lágrimas deslisou por suas olheiras abaixo, até cair às faces e à boca da  criança, que lhe estranhou o amargor. A Rosinha então falou-lhe, como se a criança pudesse  entendê-la:
    
− Meu choro é muito amargo,  filhinho? Veja só quanto  aquele home’ de coiração de  pedra não me tem feito sofrer! Mas tomara que nada lhe aconteça, porque pode que inda sirva  de muito pra você, pra você que é tão desprotegido, meu filhinho!
       
Foi um inferno, a vida que a Rosinha levou, até que o menino engatinhasse. Vigiá-lo a  toda  hora,  quando  o  serviço  caseiro  queria  cuidados  contínuos,  quando era  preciso  contar  a  criação,  aprontar  as  rações  do  curral  e  do  chiqueiro,  fazer  o  almoço  e  a  janta,  remendar  as  roupas velhas, são coisas que só não pesam a quem traz o coração lavado e alegre. Fraca se  sentia, a coitada, assim que se deitava para conciliar o sono: e esse mesmo era interrompido  sempre pelo chorar noturno.
  
Pesadelos e maus sonhos apenas esperavam que ela cerrasse os olhos, para angustiá-la:  e sucediam-se um após do outro, noite fora, como uma singular penitência. De modo que os  olhos se lhe afundavam, as faces iam-lhe tomando a cor das velas de cera e a voz se lhe fazia  abafada e baça.
     
Afez-se  a  madrugar  demais.  Nem  bem  a  manhã  principiava  a  arraiar,  levantava-se;  muitas  vezes,  ao  depois  de  assear  a  criança,  chegava  ao  pátio,  sentava-se  a  um  banco  de  peroba, e punha-se a contemplar o filho, com uma tristeza que era também enternecimento e  apreensão: vendo bater os primeiros raios de sol naquele rosto mimoso, assustava-se, ideando que  um  fio  de  sangue  lhe  corria  pela  epiderme,  provindo  dalguma  grande  ferida:  erguia-se  então de pronto, caminhava para a faina.
       
Mandava nûa máquina de costura como ninguém; para botar uns pespontos, estava de  banda; lidava muito bem na feitura das rendas: e como atravessava quase o dia inteiro junto à  máquina, foi um dia remexer moldes antigos para fazer certo vestido. No meio dos panos e  papéis havia de tudo: dedais, agulhas de mão de todas as grossuras, linhas de todo número,  retalhos de chita, alfinetes. A brilhar e rebrilhar entre aquela trapizonga, apareciam vidrilhos  ao lado de carrretéis, contas de pérola espalhadas a parzinho de contas de celulóide. Através  da barafunda, movida e removida, tremeu alguma coisa que dava ares de nada valer: uma rosa  seca. Pois foi de admirar o estremecimento que a moça teve, ao tocar na triste flor, e ao vê-la  murcha assim: era de jurar que a pobre moça imaginava que a pobre rosa, amiga sua, padecia  o mesmo desespero que ela!
     
Rosa que tudo dizia! Uma vez, depois de olhares amorosíssimos trocados de esconso, na  igreja,  nos  pagodes,  ao  longo  das  estradas  da  Mandaçaia,  a  Rosinha  encontrou-se  com  o  Totico por debaixo dum çoita-cavalo, no pasto, e prosearam muito tempo... Foi dessa vez que  ela se sentiu entregue e sem defesa, e foi aí que recebeu aquela flor, que passara a suas mãos  de uns dedos trêmulos e como febris. Desde então não soubera nunca mais o que é descanso  de coração: e sentia-o agora avelhentado e sem esperanças, tal e qual aquela mesma flor, que  era impossível revivesse e corasse ainda.
    
Inclinou-se para a gavetinha onde se amontoavam os guardados; repousou o queixo na  mão  direita;  os  pensamentos,  cruzando-se-lhe  no  espírito  à  semelhança  de  um  bando  de  passarinhos  estonteados,  voaram,  voaram:  e  enquanto  eles  partiam  −  talvez  ficasse  saudosa  por vê-los partir, talvez medrosa de que voltassem −, de novo o ribeirão das lágrimas correu  por aquele rosto meigo, em dois galhos, sobre os leitos escuros das olheiras.

Já transmontara o sol, quando surgiu da abstração em que se embrenhara. Acumulavam-se nuvens extravagantes, ao longe, como se houvessem nascido do seio das montanhas e agora  crescessem  apavorantemente  na  meiga  luz  tristonha  do  crepúsculo.  Os  urutaus  gritavam  de  pedaço  a  pedaço,  os  xintãs  davam  os  derradeiros  pios.  O  ar  estava  carregado  de  um  cheiro  forte de cambarás-de-lixa. Os sabiás-unas cantavam cantigas apaixonadas.
    
Rosinha pôs-se em pé, serena que nem um fantasma: e por virem os últimos raios do sol  avermelhar  a  janela  a  que  se  recostara,  seu  rosto  ainda  inculcou  mais  sofrimentos,  dentre  o  fogo triunfal que a circundava. 

Mais tempo, menos tempo, ia passando pela estrada o Totico, algum tanto arrependido  da  feia  ação  que  praticara.  Vinha  montado  num  tobiano  uçu,  bracejador  e  engraçado  como  poucos: e como a estrada tinha muito estrepe, o tobiano dava muitas topadas: e como a alma  do Totico se achava deveras apreensiva, cada abalo do animal lhe era um abalo no fundo da  alma.

Ao chegar em frente à porteira do pátio, conheceu a Rosinha; conheceu-a, e ficou duro  no  socado,  tal  e  qual  como  se  tivesse  tido  um  acidente,  porque  a  viu  magrinha  e  pálida  a  causar  pena:  e  sentiu  forte  pena,  realmente,  acompanhada  às  surdas  de  um  remorso  muito  agudo, que ele ainda se não confessava, mas que o deixava todo amargurado.
 
Quis voltar por algum desvio, mas já não pôde, que a mão não teve forças para torcer a  rédea: e permaneceu larga temporada a vizinhar com a porteira, tendo os cabelos em pé e o   corpo  frio.  Não  lhe  vinha  uma  idéia  salvadora.  Botaria  o  tobiano  a  galope?  Faltava-lhe  coragem. Abriria a porteira? Não tinha modos de falar à Rosinha, à pobre a quem perdera, e de  cuja  existência  negra  tivera  notícias  lá  pelo  capivara.  Ela,  porém,  saiu  ao  pátio:  e  o  poente  desmaiava a pouco e pouco, no momento em que deu a mão ao Totico para ajudá-lo a apear. A  voz paralisava-se-lhes na garganta; o grito longínquo dos urutaus infundia um pavor indizível  à quietez da natureza sonolenta: − e podia-se pensar, olhando-os, que o que sobremodo lhes  tolhia a voz e os magoava tanto era o lamento sugestivo dos urutaus.
      
O Totico, de repente, montou de novo. Impulsava-o um sentimento desconhecido, talvez  o medo de si mesmo, da sua consciência pecadora e baixa. Cravou firme as chilenas nas ancas  do cavalo.

E enquanto Rosinha lhe perguntava:
      
 −  Pois  você  nem  ao  menos  quer  ver  o  filhinho,  desnaturado?  −  a  imagem  do  pampa  sumia  na  poeira  do  caminho,  clareada  do  luar  nascente.  O  Totico  soluçava;  seus  soluços,  levados pelo vento, confundiam-se com os dos curiangos: e não se sabia bem quais eram os  mais doloridos.

Ninguém  o  esperava  em  casa,  e  foi  uma  festa  o  verem-no  chegar  assim  de  surpresa.  Cercaram-no  todos  os  seus,  a  abraçá-lo;  mas,  reparando-lhe  nas  esquisitas  feições  do  rosto,  assustaram-se  e  murcharam  como  por  encanto.  Cada  qual  queria  saber  a  razão  de  tamanho  banzo: e as confidências apareceram na conversa, recatadas e segredosas. Explicava o Totico a  cena  acontecida,  e  seu  falar  parecia  nublar-se  de  um  nevoeiro  de  incertezas:  pois  dizia,  o  infeliz,  que  outras  mulheres  também  tinham  choramingado  um  eito,  mas  afinal  todas  se  consolaram e aí andavam pintando a moringuinha pelo mundo de Deus .
  
Todos  se  arrepiaram,  recordando-se  da  Rosinha:  que  essa,  qualquer  podia  jurá-lo  em  cima duns evangelhos, não procedera por tal forma.
    
E,  para  realçar  a  constância  da  roceira  da  Mandaçaia,  não  faltou  quem  narrasse  os  delírios que ela teve, e as frases que dissera através dos delírios. Foi repetida a história de que  ela falara à mãe, uma vez, lhe tirasse de perto o Totico, porque ele estava fora do juízo.

Mal  que  lhe  soaram  as  últimas  palavras  da  narrativa,  o  Totico  estremeceu  como  um  broto de assa-peixe à ventania; enveredou por um cogitar complicado e cheio de labirintos, do  qual só rompeu muito tarde depois, quando os galos já estavam amiudando.
 
Abriu a porta que dava para a estrada, e olhou a noite de lua.
    
Viam-se  bem  as  sinuosidades  das  serras  e  os  recortes  fantásticos  dos  caminhos,  por  onde, a quando e quando, avoaçavam os purrutuns, numa perseguição lasciva que falhava com  a sumidura das companheiras para o outro lado da aguada. O acertador sentia-se perturbado:  se aquilo saísse certo? Se ele ficasse doido, agora?
    
Aturdia-lhe as fontes e ouvidos em extraordinário fragor; ficaram-lhe as pernas bambas,  sem resistência, a badalejar uma contra outra; o coração galopava-lhe desesperado na caixa do  peito;  o  olhar  enchia-se-lhe  de  avassaladora  umidade...  Tornou-se  necessário  que  o  chamassem,  para  afastar-lhe  do  espírito  aquela  obsessão;  deitou-se,  dormiu  um  sono  entrecortado de pisadeiras e súbitos despertares, ao fim do qual viu-se fatigado como depois  de  um  serão  trabalhoso.  E  a  lembrança  do  delírio  da  Rosinha  voltava-lhe  à  mente,  a  todo  instante, com uma insistência vivíssima.

Perguntaram-lhe, à hora do almoço, porque não casava duma vez com a Rosinha, que  era tão boa, e lhe queria tanto, e lhe fora tão  fiel, e por ele topara tanto padecimento na vida?  Era  o  desejo  que  ele  tinha  agora,  mas  faltava-lhe  ânimo  para  mandar  um  recado  àquela  desditosa. Ir, bem podia ir sozinho, para ninguém presenciar a choradeira lastimosa que havia  de haver: ela por um lado, ele por outro. Mas, pensava, ao mesmo tempo, que seria até capaz  de ficar sufocado e não poder dizer coisíssima nem uma, por amor da comoção. E só a idéia do  quanto se lhe iria aumentar o remorso, ao pé da Rosinha, atenuava-lhe sobremaneira a força da  resolução. Por último, quase que se resolvia a ir em pessoa procurá-la.

Pensava no meio de se dirigir à malfadada criatura, quando viu em torno de si rodopiar   tudo à semelhança de milhares de piões; vergaram-lhe os joelhos; as mãos tactearam-lhe, em  desvario, o arredor: e caiu com os olhos em alvo e a boca espumante, num ataque convulsivo.
 
Escabujava como um possesso, arqueando e distendendo o corpo, tornando a arqueá-lo  e distendendo-o logo em seguida; agitavam-se-lhe, num frenesi tremendo, os cantos da boca,  donde  a  par  da  espuma,  rompiam  estrias  de  sangue  arrancado,  com  a  fúria  nervosa,  dos  rebordos da língua; os braços, que durante momentos apenas tinham acompanhado ao de leve  os  movimentos  de  todo  o  corpo,  barafustavam  desesperadamente,  dando  cotoveladas  e  punhadas terríveis pelos móveis.
   
Depois,  com  gradações  de  mais  em  mais  espaçadas,  foi  sossegando;  o  arquejar  acelerado do peito diminuiu, ao passo que o corpo se inteiriçava em decúbito dorsal; as mãos  caíram-lhe  sobre  o  ventre,  enclavinhadas  já  sem  crispações;  os  olhos  deixaram  de  tremer,  tomando ares de olhos de idiota; quietou a boca: − e um suspiro prolongado deslisou pelos  lábios cheios de espuma e de sangue.
  
De roda dele diziam que aquilo era um ataque de gota, feito os que o pai também tivera  em  vida,  tal  e  qual:  decerto  pelo  exagero  da  viagem.  As  vozes  eram  cochichadas  com  resguardo, sucediam-se os gestos e os sinais. E a mãe do Totico, aloucada de pavor, fizera-se  branca que nem um bugarim, dizendo que aquilo não passava de castigo do céu. Foi então que  apareceu  a  Rosinha,  chamada  às  carreiras:  aproximou-se  do  Totico,  pôs-lhe  a  mão  na  testa  suarenta, e, como ele fitasse nela um olhar assustado e longo, falou-lhe:
  
− O que é isso, Totico? Aqui ‘tou eu, a Rosinha, que te perdôo e te quero bem como  toda a vida!

Ele custou a erguer-se, mas ergueu-se. Pôs-se de joelhos, ali no chão mesmo, em frente  à  Rosinha,  com  os  membros  ainda  mordidos  de  tremuras  repentinas,  quase  calafrios.  E  enquanto ela se abaixava para abraçá-lo, febricitante e chorosa, o filhinho começou a brincar  com os cabelos de ambos, rindo perdidamente. 


---
Nota:
Valdomiro Silveira: "Mucufos" (1894-1905). Versão ortográfica do  apógrafo  de  Carmen  Lydia  de Souza  Dias, in: Alexandre de Oliveira Barbosa: "Edição anotada de Mucufos, coletânea de contos inédita de Valdomiro Silveira", da Universidade de São Paulo, 2007   

Nenhum comentário:

Postar um comentário