sábado, 14 de setembro de 2013

Florbela Espanca: "A Paixão de Manuel Garcia"

A PAIXÃO DE MANUEL GARCIA
  
Manuel Garcia, o pobre canteiro da Rua das Silvas, quando soube que Maria  del Pilar ia casar-se, matou-se.

Um drama encerrado em duas linhas, numa escassa dúzia de palavras, um  drama que levou anos e anos a desenrolar-se, que teve o seu primeiro capítulo  numa doce manhã de Maio e o seu epílogo num modestíssimo quarto de uma  casinha de pobres.

Como é difícil sondar os corações humildes, as histórias das vidas simples! E a  história de um coração que nunca se interrogou em desoladoras horas de  spleen, em inquietas noites de insônia, que nunca pretendeu perscrutar os  complicados mistérios do Além, é uma história simples, uma humilde história  que leva a contar uns rápidos minutos e cabe toda dentro de sete palmos de  pinho... bem medidos, que Manuel Garcia era um rapagão! Alto, moreno,  ombros largos, musculoso, tinha contudo um coração de colegial de quinze  anos; no forte arcabouço daquele operário inculto e simples vivia, não se sabe  porque estranhas transmigrações, a alma de um poeta romântico. Quem o  diria?!... Só a mãe, talvez... As mães adivinham sempre, não sei por que  miraculosa intuição, o mistério que no mistério das suas entranhas foi gerado,  e nunca se enganam! Quando, naquele úmido crepúsculo de Novembro, o  sangue salpicou a parede muito branca de cal, ao lado da cama, no  modestíssimo quarto da sua casinha de pobres, quando as morenas mãos  crispadas, que revolveram a chaga na angústia suprema da morte, foram  manchar de vermelho a pobre colcha branca, muito lavadinha, o seu orgulho  de dona de casa — quando ela entrou e viu* a história leu-a ela inteira, dentro  da sua triste alma de mãe dolorosa; foi como se a lesse toda, linha a linha,  capítulo por capítulo, naquele funesto segundo em que o destino lhe punha  diante dos olhos, brutalmente, para que ela o lesse, o seu sinistro epílogo de  morte.

O candeeiro aceso iluminava com a sua luz fria e clara o conhecido cenário do  pequeno quarto: duas cadeiras, uma coluna com um bustozinho de criança em  pedra, o lavatório de ferro, uma mesinha e, ao fundo, a cama revolta, o  revólver no chão, e o filho morto. Em cima da mesa, coberta com um  debotado pano de chita de ramagens, uma carta, e nessa carta um nome, um  lindo nome de mulher: Maria del Pilar.

Não gritou, não disse nada; os pobres não gritam. A morte faz parte do seu  lúgubre cortejo de amigos, tem um. cantinho no seu leito e um lugar à sua  mesa; quando chega, pode levar tudo; quando transpõe a porta, aberta de par  em par, com a sua presa, não vê à sua volta, a escoltar-lhe o fatídico vulto  negro, senão cabeças curvadas num gesto de resignação, braços caídos, braços  de quem deu tudo, de quem não tem mais nada para dar. A dor dos pobres é  resignada e calma; traz às vezes consigo as aparências da revolta mas, no  fundo, é cheia de um imenso, de um infinito desapego por tudo. Os pobres  vêm ao mundo já sem nada; o pouco que a vida lhes deixa é emprestado. Que  lhes hão de tirar que seja deles?! Aos pobres toda a gente chama desgraçados.   Havia muitos anos que aquela pobre, aquela desgraçada, sentia a morte  rondar-lhe a porta. Ouvira-lhe, por muitas vezes, os passos ao longe, depois  mais perto, mais perto ainda até pararem à porta... e a morte entrava. Levou- lhe a mãe, o pai, dois filhos pequeninos, uma filha de vinte anos, o marido, e  por último entrara-lhe assim em casa, de repelão, sem prevenir, e fizera-lhe do  coração um frangalho. A sua alma andara, como o seu corpo, sempre vestida  de crepes; não se lembrava de a ter visto de branco. E resignada, doce, trazia  no rosto fatigado, nas pálpebras sempre descidas sobre os olhos cansados de  chorar, na pálida boca dolorosa, o fatalismo dos que o destino marca para os  não poupar durante uma vida inteira. Adivinhara há muito o doido segredo do  filho, o segredo daquela paixão que o crucificara em vida, que o empurrara aos  vinte e dois anos para o negrume da cova. Nunca dissera nada a ninguém.  Para quê? Quando naquele aziago anoitecer de Novembro transpôs o limiar  do quarto e viu o filho morto, não gemeu, não gritou. Para quê?...

Olhou-o longamente, profundamente, sem se atrever a entrar; por fim, nuns  passos lentos e hirtos de sonâmbula, aproximou-se. Passou-lhe a mão pela  cara intacta, acariciou-lhe os cabelos, levantando-os, descobrindo-lhe a testa  num gesto de uma infinita doçura; depois, com um dedo, meigamente, seguiu- lhe os contornos da boca mole, a linha do nariz afilado, o queixo, como que  para gravar melhor na mente, e para sempre, a imagem carnal do que tinha  sido um filho, a bênção de um filho. Fechou-lhe bem os olhos, como quando  ele era pequenino e adormecia com os olhos entreabertos. Devagarinho,  devagarinho, não lhe fosse doer, num levíssimo gesto de piedade e amor,  tateou-lhe a ferida sangrenta no meio do peito como uma chaga. O sangue  tingiu-lhe os dedos; pôs-se a olhá-los, e só então as lágrimas, lágrimas  silenciosas, verdadeiras lágrimas de pobre, lhe correram em fio pelas rugas das  faces.

Ter um filho novo, robusto, belo, e vê-lo ir, vê-lo partir um dia para nunca  mais, romeiro perdido num caminho de desgraça! Ficar só, velha e pobre, sem  o calor de um afago — que triste sorte, mais triste que tudo neste mundo! O  filho das suas entranhas, que das suas dores nascera, que aos seus peitos se  criara, que ainda podia acalentar, deitar no colo, beijar, começava já a ser, na  solidão daquele quarto, uma saudade, uma recordação da sua vida solitária.  

Lavou-lhe as mãos ensanguentadas, vestiu-lhe, sozinha, com um jeito de mãe  que veste o filho pequenino, o seu fato novo, o seu bonito fato preto dos  domingos, calçou-o, penteou-o. Quando o avô chegou, o pobre velho de  setenta anos que queria àquele único neto, ao filho do seu filho morto, como  às meninas dos seus olhos, viu-o assim, já pronto a partir para a suprema  ausência, que não tem regresso Abanou a cabeça toda branca e desatou a  soluçar nuns soluços miudinhos de velho, num choro sem lágrimas que fazia  dó. A mãe, nos últimos arranjos, de um lado para o outro no quarto, parava  de vez em quando para enxugar com ,a ponta do avental de chita preta as  lágrimas que continuavam a cair-lhe em fio pela cara abaixo e que a cegavam.

A carta, em cima da mesa, atraiu-lhe o olhar com a sua brancura imóvel e fria;  a carta parecia o selo sem esperança daquele túmulo, o selo maldito que a  sorte aziaga imprimira a fechar, para a eternidade, aquela vida ardente e moça.  A mãe pegou nela docemente. Tremiam-lhe as mãos ao levantá-la de cima da  mesa como se não pudessem com ela, com aquele fardo, como se a carta fosse  assim como uma cruz de ferro onde o destino lhe crucificara o filho. Estava  fechada; e então a mãe, ao lindo nome de mulher que as mãos morenas do  filho tinham traçado na última hora da sua vida, acrescentou mentalmente o  resto do nome que lá não estava e que o seu triste coração de mãe adivinhara:  Calderon de Ataíde.

Sim, o louco segredo do filho, do pobre operário canteiro era aquele. A Maria  del Pilar, a quem gritara de longe o seu doido amor, a sua cega paixão de  romântico, não era, como à primeira vista poderia imaginar-se, a priminha  afastada que de terras de Espanha viera há meses e que por aqui ficara, presa  como andava a uns escuros olhos portugueses. Não era a costureirinha gentil  com quem poderia ter criado um lar, um doce lar de pobres, como um ninho   suspenso num beiral, a cabeça a tocar o teto, o teto quase ao pé do céu. Não,  não era a moreninha espanhol, não era a andaluza de rosto tostado como o de  uma gitana que andava pelas ruas com o xalinho traçado e os cabelos ao  vento. Era a outra, a outra Maria del Pilar, a filha de uma nobre espanhola e  de um grande fidalgo português, era a loira princesinha, a fada dos seus  sonhos de poeta, que um dia, dia aziago e fatal, avistara por entre as grades  doiradas do seu jardim distante.

Quando a viu, endoideceu. Preso, embriagado, arrastado por aquela delirante  paixão, nunca mais teve sossego nem descanso. A oficina de canteiro,  propriedade do avô, era ao canto da rua; de lá avistava-se todo o jardim, a  escadaria suntuosa, os amplos salões de baile no rés-do-chão, as inúmeras  janelas dos aposentos particulares no primeiro e no segundo andar. Tinha  ocasiões em que não tirava os olhos do palácio, via tudo quanto lá se passava,  estava ao facto das saídas e entradas de toda a gente, espiava as idas e vindas  dos criados e das visitas. Nas noites de baile, metia-se num canto sombrio do  amplo portão da oficina, e ali passava a noite inteira a olhar as sombras que  passavam ligeiras por detrás dos espessos cortinados de renda das janelas,  como uma borboleta que a luz atraísse implacavelmente; só quando, de  madrugada, via partir os últimos convidados, ou quando se apagava a última  luz, é que ele se resolvia a voltar para casa, a passos lentos, transido de frio e  com o coração num farrapo.

Outras vezes trabalhava, trabalhava febrilmente, sem descanso, o dia inteiro,  numa exaltação de todos os seus nervos, numa ânsia de todo o seu ser, como  se quisesse matar às marteladas qualquer ave de rapina que sentia roer-lhe as  entranhas. E então fazia da pedra tudo quanto queria! O granito duro e  informe parecia uma pasta mole, uma cera obediente, que ele talhava ao seu  bel-prazer. Nesses dias, alheado de tudo, sem levantar a cabeça, enquanto a  canção dos martelos ressoava alegre na oficina, fazia surgir de sob as suas  mãos privilegiadas de artista, animadas por um mágico sopro de prodígio, as  rendas mais subtis, as mais elegantes grinaldas, os mais complicados florões.  Na figura, então, era assombroso e os corpos eram uma maravilha de graça.  Ninguém dispunha com mais arte as pregas de um manto, ninguém era capaz  de enrolar com mais elegância as curvas caprichosas, as ondulações  envolventes das roupagens roçagantes, em volta de um corpo de mármore  cor-de-rosa. Todos os simbólicos vultos dos túmulos, a Saudade, a Fé, as  Musas e os Anjos, todos lhe saíam das mãos, não se sabia por que acaso, com  o mesmo perfil finíssimo, o mesmo sorriso sinuoso, os mesmos contornos  delicados de um rosto que o obcecava e que o trazia arredado do resto do  mundo, com os mesmos corpos esbeltos de adolescentes puros talhados em  linhas rígidas e hieráticas. Parecia que a pedra tinha a consciência da sua alta  missão, o orgulho de, bruta e informe, realizar um sonho, ser transformada,  por um raro prodígio de amor, numa Maria del Pilar que a paixão de um  pobre divinizara.

E assim passaram largos anos. O extraordinário é que ninguém deu por isso.  Os companheiros de oficina, embora o achassem bizarro e com uma grande  telha, como eles diziam, nunca imaginaram, nem por sonhos, uma coisa  daquelas. A sua grande paixão passou despercebida aos olhos de toda a gente.  

A não ser a mãe, que as mães nunca se enganam, porque têm os olhos no  coração, ninguém viu coisa alguma. Também o caso era de tal forma  extraordinário! Um Ruy Blas, canteiro!... Tão grande era a loucura, que só  outro louco a poderia conceber no seu cérebro delirante.

Quando Manuel Garcia viu pela primeira vez a princesinha loira, através das  grades doiradas do seu jardim distante, teria quando muito dezessete anos e  ela treze. Era uma rapariguita travessa e estouvada, alegre como um céu de  Abril; corria pelo jardim como uma corça selvagem, tranças loiras como uma  cascata de ouro pelas costas; dava uns gritos agudos como um pardalinho novo  que está contente com a vida mas que não sabe cantar; as suas gargalhadas  eram frescas como o riso de um regato a descer um monte. Aos olhos de  Manuel Garcia, Maria del Pilar, no seu jardim, no meio das amigas, era assim  como um sol a iluminar os seixos escuros e desprezíveis das estradas. Que  loucura!

E em tantos, tantos anos, nunca a loira fidalguinha olhara para ele. Não, ele  não se lembrava de um só olhar, de sentir poisados nos dele uma só vez, de  fugida, aqueles grandes olhos verdes-claros que o endoideciam de amor! Se ela  tivesse olhado para ele ao menos uma vez na sua vida! Mas não... no seu  mesquinho tesouro de apaixonado, não encontrava nada, por mais que  procurasse, por mais que remexesse, que se assemelhasse ao doce fulgor de  duas límpidas esmeraldas claras. Esse prodígio, esse milagre, não se dera  nunca! Um olhar! Mas se ele tivesse achado, no seu mesquinho tesouro de  apaixonado, um só olhar de Maria del Pilar, não estaria decerto ali rígido,  inerte, gelado!

O seu mesquinho tesouro continha apenas as parcelas de ouro do seu riso, o  encanto do seu alado pisar de alvéloa, a embriaguez do seu perfume, a cor dos  seus vestidos, o deslumbramento da sua presença, da sua recordação  intangível e sagrada, do seu ser, dela, Maria del Pilar, princesinha loira, que,  com as suas mãos de boneca, o empurrara para a cova sem o saber, fizera do  rapagão moreno e cheio de vida, que ele era, o trapo que ali jazia insensível e  inútil.

De tangível e concreto, apenas uma rosa que ela deixara cair uma manhã na  rua. Ia num grupo de rapazes e raparigas; vestida de branco, calçada de  camurça branca, os cabelos, de fartos caracóis loiros, cingidos por uma larga  fita branca, ia jogar o tênis a um palacete vizinho. Levava na mão uma soberba  bryce elian, de um lindo róseo acarminado, acabada de colher, de passagem,  no jardim. Com um golpe de raqueta atirou-a, de brincadeira, à cara de um  rapaz alto e loiro que, desastrado, a não conseguiu agarrar. Quando se  afastaram e o vestido dela não foi mais que uma mancha clara na estrada cheia  de sol, o pobre canteiro foi apanhá-la à rua com o carinho de quem levanta do  chão um bebê magoado, lavado em lágrimas e com o vestidinho sujo. Entrou  na loja e, delicadamente, com uma paciência infinita, com mil cuidados, lavou-
a pétala por pétala, tirou-lhe todo o pó, e guardou-a sem sequer se atrever a  beijá-la.

Maria del Pilar, tão perto, estava longe, mais longe que as terras longínquas de  além-mar, mais longe que uma estrela cadente, que nem o pensamento a pode  seguir pelos céus fora, mas estava ali; não era dele, não, meu Deus! não a  podia cobiçar sequer, mas não era de ninguém. Vaso sagrado por onde  nenhuma boca matara a sede, templo que nenhuns passos tinham profanado  ainda, torre de marfim do seu amor a que nenhum olhar subira, não era dele,  não, mas era a Pura, a Intangível, era A que não era de ninguém'.

E Manuel Garcia ia vivendo, talhando a pedra, sereno e mudo, numa  castidade absoluta, como um monge ascético dentro da sua Cartuxa de  sonhos, com a inconsciência de uma criança que vai, numa noite sem lua,  costeando um abismo a rir e a cantar.

Mas um dia — dia maldito aquele! — a notícia do casamento de Maria del  Pilar redopiou vertiginosa, como um súbito ciclone, arrastando tudo na sua  pobre existência de simples, cheia, a transbordar, das migalhas de um sonho.  Assombrou-o. Quando o soube, na oficina, ficou pregado ao chão, a tremer,  na desvairada tremura de uma árvore velhinha sacudida pela nortada. À volta,  os camaradas, o avô, comentavam tranquilamente o caso, continuando,  indiferentes, a sua tarefa. A filha do fidalgo tinha sido pedida em casamento  por aquele rapaz espanhol, D. João Manuel, que a acompanhava sempre por  toda a parte. Um casamento de estrondo! Fidalgos, novos, ricos, bonitos... que  lindo par! «Que lindo par!», repetiu uma estranha voz de sonâmbulo. E os  muros, as pedras, começaram a dançar-lhe, diante dos olhos esgazeados, a  dança macabra do seu destino perdido. Pobre poeta! Com o brutal encontrão,  acordou sobressaltado do êxtase de tantos anos e deu com os olhos na miséria  da vida! Tinha adormecido criança, despertou homem feito e, espavorido,  estendeu as mãos para agarrar toda a sua linda adolescência inverossímil e  quimérica que lhe fugia. As estátuas, os companheiros, os blocos de pedra,  tudo redopiava em volta numa vertigem que não conseguiu vencer. Apoiou-se  pesadamente à pedra que trabalhava, e, muito pálido, foi escorregando  devagarinho até cair como um boneco a quem um bebé, curioso e azougado,  tivesse cortado os fios da sua pobre existência de fantoche, que vivera de uma  mentira uma vida que não passara de ilusão.

Quando voltou a si, circunvagou os olhos pelo quarto e viu a mãe, encostada à  cabeceira da cama, fitando-o. Que estranho poder de videntes tem uns olhos  de mãe! Manuel Garcia compreendeu que o seu segredo não era só dele, mas  teve vergonha, corou, desviou os olhos. A mãe, com o pudor receoso de  quem surpreende um mistério inquietante, calou-se, abafando um suspiro.

E a vida continuou. Manuel, cada vez mais encerrado no seu gelado mutismo,  começara a viver uma vida desregrada. A sua casta mocidade afundava-se num  lodaçal de vícios. De olhos fitos no topo do seu calvário distante, onde numa  hora de suprema coragem encontraria a morte redentora, atolou-se, na  medonha subida, em todos os charcos do caminho. Há quem suba a descer.  Há almas privilegiadas e únicas que nada têm a ver com a lógica absurda das  leis humanas. As turbas inconscientes e boçais lançam, à face de certos entes,  anátemas que o céu, se o há, não deve perdoar. À gargalhada insultante deste  mundo responde a infinita serenidade do que fica para Além e que os olhos  míopes não veem. Manuel subia a descer...

Quando o que lhe ficou para trás não foi mais que um ponto perdido no  desapego de tudo a que chegara, quando conseguiu finalmente arrancar de si  os pedaços irreconhecíveis do seu sonho desfeito, Manuel Garcia olhou face a  face a vida, e sorriu. Oh, o sorriso de desdém dos que querem morrer! Quem  foi que se atreveu a dizer alguma vez, quem foi que ousou traçar num papel as  letras da palavra cobardia, falando de um suicida?! Oh, a medonha coragem  dos que vão arrancando de si, dia a dia, a doçura da saudade do que passou, o  encanto novo da esperança do que há de vir, e que serenamente,  desdenhosamente, sem saudades nem esperanças, partem um dia sem saber  para onde, aventureiros da morte, emigrantes sem eira nem beira, audaciosos  esquadrinhadores de abismos mais negros e mais misteriosos que todos os  abismos escancarados deste mundo! Quem foi que um dia ousou lançar a um  papel as letras ultrajantes da palavra cobardia, essa suprema afronta, esse  insultante escarro, à face dos que querem morrer?!

O que lhes foi preciso de coragem desdenhosa, de altiva serenidade, de  profundíssimo desprezo, às almas que partiram por querer!

Manuel Garcia lutou um ano, e conseguiu vencer a vida, vencendo-se. Ao  pavor do fim, ao medo do sofrimento, ao horror do gesto, daquele gesto que  é ainda consciente e que vai deixar de o ser, o gesto para além do qual a nossa  vontade, quebrada, não tem poder algum, que é o último antes do pavoroso  mistério, a tudo isto, a todos estes fantasmas contra quem lutara um ano  inteiro, respondeu ele, um dia, com um sorriso... e que sorriso!...

E foi assim que na penumbra fechada de um crepúsculo de Novembro,  Manuel Garcia meteu uma bala no peito, depois de escrever num papel frases  de amor a uma princesinha loira, depois de lhe ter traçado o nome, o lindo  nome que cheira a jardins de Espanha, num quadradinho branco, onde as  últimas lágrimas dos seus olhos caíram e secaram.

No quarto do morto, agora, só se ouviam os soluços miudinhos do velho,  sentado aos pés da cama. A mãe tornou a pegar na carta, cuja brancura, sobre  o vermelho do pano de ramagens, a hipnotizava. Pensativa, olhou-a  longamente, tornou a pousá-la. Foi à janela, abriu-a, e debruçou-se no abismo  da noite. A rua era um poço sem fundo. A chuva, que até ali caíra delgada  como uma bruma, começava a engrossar. O palácio dos Ataídes, lá em baixo,  na volta para a estrada, faiscava de luzes. Eram dez horas. Começava o baile, o  grande baile que os pais da noiva ofereciam a todos os grandes nomes da  capital, pelo casamento da filha. Maria del Pilar tinha casado, doze horas antes,  na capela do palácio.

A pobre mãe abafou um soluço, voltou-se, e olhou o morto. A débil chama  das velas, que o vento tornava movediça, traçava-lhe no rosto sombras e  clarões, tirando-o da imobilidade da morte para o lançar na animação fictícia  da vida; a olímpica serenidade dos libertados transformava-se: a boca parecia  sorrir num esgar de desdém, os olhos pareciam abrir-se e pestanejar como se  lá dentro as pupilas quisessem ver. Ver o quê, meu pobre adolescente que  morreste velho? Ver o quê?... A vida que numa grotesca ironia te fez nascer na  casinha de um pobre, a ti, a quem o destino cego dera a alma coroada de rosas  e verbenas de um grego doutros tempos?! Tudo em ti era beleza, poesia e  graça... e tudo isso a vida, miserável e trocista, vestiu com o cotim do teu  pobre fatinho da semana, com o teu ridículo e mesquinho fato novo dos  domingos! Quem dirá a estes troçados da vida o porquê do seu destino, a  razão do engano que os fez nascer pastores, filhos de reis!...

A mãe tornou a debruçar-se sobre o negrume da rua. A chuva, agora, caía em  enxurrada, como se o céu quisesse lavar o mundo de todos os seus maus   pensamentos e ações. Buzinas de automóveis... um grito... passos que se  esvaíam na sombra... Ao longe, um cão perdido uivava a miséria de ter  nascido sem dono. Com os olhos fitos nas luzes do palácio, na fila  ziguezagueante dos autos donde desciam sem cessar vultos negros, que se  sumiam no pórtico todo iluminado, como a entrada de um palácio de um  conto de fadas, a cabeça reclinada sobre o rebordo da janela, a mãe pôs-se a  cismar. Que dois mundos tão diferentes! A noite e o dia, a luz e as trevas...  Aos seus lábios resignados subiu a revolta de uma blasfêmia; o coração  esmagou-se-lhe, num arranco, de encontro ao seu magro peito de velha. Teve  vontade de uivar como aquele cão sem dono, de se deitar na lama da rua, de  bruços, com a boca na terra, rastejando, como um bicho, amortalhada na  frescura daquela chuva que continuava a encharcar tudo, como se para além  das quatro paredes daquele quarto o mundo acabasse num novo dilúvio. Ao  seu coração subiu de repente o desejo, tenaz como uma ideia fixa, de  catástrofes inauditas; os seus olhos traíram a visão de casas a desmoronar-se,  de labaredas a flamejar, de mãos de assassinos e de incendiários abrindo todas  as portas. As suas mãos estenderam-se também empunhando o facho  incendiário, brandindo o punhal assassino nas sombras da noite. Que não  ficasse pedra sobre pedra, que os campos fossem rasos, secos, rapados por  todas as pragas que sobre eles caíssem em maldição! E a última visão do seu  sonho criminoso e insensato foi a visão do mundo desaparecido, engolido  pela vastidão de enormes oceanos e, à tona de água, a boiar, o esquife onde o  filho dormia repousadamente, embalado em cadência pelo ritmo das ondas!  

Soltou um suspiro como se lhe arrancassem o coração. Todos os seus longos  anos de renúncia e sacrifício vieram em procissão, das sombras da noite,  acalmá-la, exorcizando os pássaros negros das suas trágicas alucinações,  abatendo o pendão sangrento da revolta. Passou a mão pela testa, pela cabeça  branca que a chuva molhara. De repente, lembrou-se da carta que estava em  cima da mesa, da carta que o filho tinha escrito a uma Maria del Pilar que  àquela hora, vestida de branco, dançava nos braços doutro. Pareceu-lhe ver  nos olhos do filho uma lágrima; olhou atentamente, estremeceu e, numa  súbita intuição, estendeu os braços para a cama onde o filho jazia,  murmurando:

«Não, meu filho, não... Eu sei. Que loucura! A carta... eu sei, a carta não é para  a Maria del Pilar que a esta hora dança, vestida de branco, nos braços doutro.  Não... Eu sei. A carta vai ser entregue à outra, à pobrezinha por quem tu  morreste. Eu sei. Cala-te. Não chores. Está sossegado.»

Pareceu-lhe então ver na boca do filho um eflúvio de sorriso. Sim, era isso,  não a enganara a sua intuição; era isso que ele queria. A carta era para a  costureirinha, para a morena andaluza, de rosto tostado de gitana; pois para  quem havia de ser? Ele não conhecia outra Maria del Pilar!...

E, devagarinho, sempre a olhar a boca do filho onde o sorriso se acentuava  mais luminoso e enternecido, foi à mesa, pegou na carta, tornou a pousá-la e, a  tremer, escreveu o resto do nome que lá faltava, o nome plebeu e obscuro de  uma triste costureirinha que passara a vida a amar sem nunca se julgar amada:  Sánchez.

Poisou a pena, olhou o morto com uns olhos onde havia ainda uma sombra  de inquietação, uns olhos interrogadores e tristes; a pouco e pouco, porém, o  olhar foi-lhe tomando uma grande expressão de serenidade, e a sua boca  pálida e triste de velhinha respondeu com um sorriso ao sorriso do filho.   


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Nota:
Florbela Espanca: "As Máscaras do Destino" (1931)

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