quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Valdomiro Silveira: "Amaldiçoada"

AMALDIÇOADA
  
Fazia  muito  tempo  que  a  noite  caíra,  uma  noite  de  assustar,  escura  e  cortada  de  relâmpagos;  a  ventania  gritava  pelo  meio  das  laranjeiras,  espalhando  as  flores  que  tinham  rebentado  aqueles  dias  mesmo;  o  rio,  que  de  costume  é  sossegado  ao  fundo  do  quintal  do  Furtuoso, buzinava de fúria, levantando montes de água que vinham quebrar-se no porto c’um grandioso  rumor:  e  escutava-se,  através  de  barulhada  toda,  como  se  fossem  gemidos  e  queixas, os mios duma coruja das grandes que andava desguaritada lá no alto do espigão que  vem verter pro rio perto da ponte.

Sá Chiquinha estava esperando o Tito, encostada à janela do lado direito: cerrara as  folhas  da  janela,  ficara  quieta  duma  vez,  segurando  a  suspiração,  de  puro  medo.  Agora,  ouvindo a matinada da coruja e reparando na escureza dos ares, teve uns repentes de tramelar  a janela, e deitar-se, e morrer: parecia-lhe adivinhar um infortúnio, em tanta coisa triste que  via. O Tito queria-lhe bem, decerto queria −, porque, pra um homem jurar contra sua alma,  como ele jurava, só tendo muita fiança no juramento: mas o futuro aparecia-lhe do mesmo  feitio que aquela noite denegrida.

− Como é que há de ser nhô pai? Pensava: e umas par de lágrimas garravam a correr- lhe pelo rosto abaixo. Na verdade, o Nico de Souza, pai de sá Chiquinha, não desejava nem  ver a sombra do Tito, nem ouvir falar-lhe no nome: ganhara-lhe ódio à toa, p’r amór de uns  ditérios de gentinha de pouco mais ou menos, dessa gentinha que murmura dos outros sem  mais que nem pra que. Desconfiado, isso o Nico de Souza vivia desde a festa de seo Batista,  porque bem pôs atenção nos olhos doces que sá Chiquinha fazia pro Tito e o Tito fazia pra  sá  Chiquinha.

A moça fechava-não-fechava a janela, quando lhe bateu nos ouvidos o som de um pio  de tico-tico: remancheou um bocadinho, como se estivesse resolvendo um bandão de coisas  num momento só, inzonou co’a mão direita em riba do coração que funcionava louco de tudo,  e  depois,  devagarzinho,  pouco  a  pouco,  afastou  de  junto  do  ombro  a  folha  esquerda:  seu  vestido era branco e sem peso, vestido de nem um resguardo, quase que só de calor, e o vento  aspro que veio de fora por um triz não a pinchou pra um canto do quarto.

Pregou  os  olhos  no  rumo  da  esquina,  ali  onde  pára  o  poste  de  um  lampião  velho,  divulgou  um  vulto  encapotado  que  caminhava  pra  ela,  viu-o  vir  chegando,  chegando,  até  rentear c’a parede da casa, tendo pulado um tirãozinho de cerca baixa que havia na linha da  frente: e daí, notando aquele vulto, já não sentiu mais o coração funcionar veloz e violento:  pelo contrário, o coração foi-lhe adormecendo de tal jeito, que logo desmaiou que nem um  passarinho,  assim  que  vê  frechar-se  sobre  ele  um  gavião  desses  quiris-quiris,  c’as       unhas  prontas e as asas espontadas e o bico aberto numa proporção.

Sá Chiquinha caía-não-caía, quando o Tito lhe falou umas palavras de animação e de  muita amizade: ora o que havia de ser, que tanto a amedrontava? A chegada de seu bem, ora o  que havia de ser. Ele pegava-lhe na mão direita, a mão que ainda lhe permanecia em cima de  seu peito, e ia dizendo certas prosas muito boas, muito mansinhas; no fim das contas, feito  carinhos  e  mimos,  ela  recobrou  a  voz  e  respondeu-lhe  no  mesmo  tom,  em  segredo,  cochichado,  um  dilúvio de  bonitezas.  E  já  nem sabiam  mais  que  a  trovoada  se  formava  ao  longe e a tempestade havia de se despenhar por força: namorado, olhando os relâmpagos, mas  porém perto da namorada,  a mó’ que está vendo fogo de estúcia.

De repente um redomoinho rompeu pela rua, abalando as guainxumas e os fedegosos,  rufando nas telhas, querendo quebrar as vidraças e arrombar as portas: o mio da coruja das  grandes, comprido como nunca, morreu c’a primeira abalroada do redomoinho, ao fundo do  covancão macota das terras do Ziquiel:  e sá Chiquinha, tapando os olhos, tonta de assombro e  de  terror,  ia  ter  uma  vertige,  se  o  Tito  não  a  amparasse,  dando-lhe  um  empuxão  forte  no  corpo. A chuvarada desencadeou-se, ver um rio que desce pela cachoeira, grossa e atroadora;  os relâmpagos riscavam toda a hora o céu, do nascente ao poente, cor de enxofre e sumindo  como por encanto.

A água das enxurradas soluçava de raiva, rasgando-se tal e qual farrapos de renda, nas  pedras e nos tijolos esparramados pela rua; o grito rouca dos trovões, correndo nas costas das  montanhas, acabava pela claridade dos coriscos, e a claridade dos coriscos acabava pelo grito  rouco dos trovões: e às vezes os coriscos, mostrando ares de zanga, davam pulos no meio das  nuvens,  amarelos  e  ligeiros,  semelhando  um  terno  de  caninanas.  Ao  depois  o  firmamento  voltava a ser feio que nem uma barra de chumbo sem fim.

De sopetão, num abrir e fechar d’olhos, a porta do quarto de sá Chiquinha escancarou-se:  a  luz  buliçosa  duma  candeia  apareceu,  tremendo  ainda  mais  p’r  amór  de  o  vento;  e  apareceu  a  cabeça  do  Nico  de  Souza,  branca,  meia  na  sombra,  adonde  os  olhos  brilhavam  como  os  dum  gato  escorraçado,  nhá  cesara,  passando  a  mão  pelos  óculos,  desatinada  de  espanto,  mostrava  as  feições  do  rosto  por  cima  do  ombro  do  marido:  e  enquanto  sumia  o  zunido  fino  da  arage  da  chuva  no  covancão  macota  da  outra  banda  do  rio,  e  o  rumor  da  tempestade assossegava seu pouco, também no quarto de sá Chiquinha se fez um silêncio de  quarto de defunto.

O Nico de Souza botou a candeia num mancebo, a par co’a porta; fechou os olhos e  tornou a abri-los, olhou e tornou a olhar, como se lhe parecesse impossível acontecer o que  etava acontecendo; encostou-se ao portal, bambo e sem corage, segurou a mão de nhá Cesara  e desatou a chorar; nhá cesara passou-lhe os braços em roda do pescoço e pranteou com feitio  de lhe ter morrido alguém.

Sá  Chiquinha  perdera  o  sentido,  e  o  Tito,  assim  que  os  velhos  principiaram  suas  lástimas, pulou p’r a janela, com água até os joelhos, e foi ficar sondando arretirado, junto do  poste do lampião. Tinha passado o mau tempo, a ventania sucumbira, apareceu a minguante  num  pedaço  denegrido  do  céu.  A  água  das  enxurradas,  rodando  mais  de  vagar,  com  mais  preguiça, murmurava baixico umas vozes de candonga. E a coruja das grandes, que se calara  um tanto de espaço, miava agora outra vez, esquisito e soturno.

Foi então que Nico de Souza pôde desafogar-se:

− Saia de tudo, filha maldita! Acompanhe  esse desgracionado que lhe  roubou o seu  coração! Nunca mais cruze os umbrais da porta desta casa! Saia d’ûa vez, filha maldiçoada!

Sá  Chiquinha,  como  acordando  dum  sono  de  muitas  horas,  por  efeito  de  um     pesadelo, saltou pro meio do quarto e pôs as mãos em forma de cruz:

− Não me toque, nhô pai: não me toque, porque eu não devo crime nem um!

E o Nico, sem dó e sem piadade, respondeu-lhe estas palavras:

− Saia, desgraçada, saia desta família que nunca viu ûa mancha como a que ‘tá vendo!

Nada puderam seus peditórios, nada conseguiram seus rogos; por derradeiro, quando  viu  que  não  podia  mais  esperar  cabida  naquela  casa,  foi  beijar  a  mão  da  mãe.  Nhá  Cesara  retraiu-se, pranteando. Sá Chiquinha chegou ao oratório, adonde morava uma Nossa Senhora  Aparecida de olhos cheios de bondade e capa azul trançada no corpo inteiro, ajoelhou-se, co’a  garganta  numa  sufocação,  tirou  do  oratório  um  ramo  de  palma  benta  e  um  arrelique  de  baetinha preta, e pegou a mexer a boca, rezando desanimadamente.

O Nico bradou-lhe espótico:

− Vá-se embora, juruveva da rua! Que ûa mulher como você nem pode e nem deve  rezar! Vá-se embora, maldiçoada!

Sá Chiquinha saiu. Esperava-a na esquina o Tito, que a chamou por assobio; mas antes  de se encontrar com ele, sá Chiquinha, que ar da noite a mó’ que animara de soco, rugiu uma  espécie de rugido horroroso que nem de fera, e disse:

− Maldiçoada é que eu não saio! Misericórdia!

Disparou no rumo do Rio Pardo, que lá em baixo, espumando e roncando, amostrava  estar pelas turinas: e foi por causa de tamanha espumarada e roncaria que não se pôde ouvir o  baque de sá Chiquinha naquele poção fundo do beco. A coruja das grandes remontara, miava  agora no chato do espigão, com seus mios mais compridos, cada vez mais esquisito e soturno;  e o pobre do Ziquiel, que há muito tempo está fora do juízo, veio a tão feias horas visitar a  tapera em que morou, e dava cada gargalhada tão alta, que subia até o chato do espigão e  descia até a última corredeira da segunda volta do rio.

Nem  bem  amanheceu,  já  saiu  gente  em  procura  do  corpo:  aprontaram  uma  gamela  c’uma  vela  dentro,    acenderam  a  vela,  e  aquilo  foi  descendo  feito  uma  pantasma  pelo  rio  afora. Quando deu meio dia na cadeia, pouco antes, pouco depois, a gamela girou duas vezes  perto dum canal que desemboca num mansão de quatro braças, pra cá um pouco do engenho,  e parou direitinho na vizinhança duns guapés. A canoa da procura chegou, os homes bateram  varejão pelos guapés, cutucaram as raízes, e depois, campeando bem por debaixo da gamela,  encontraram sá Chiquinha, que assim que surgiu à flor d’água assombrou a todos, por estar
tão desfigurada.

A canoa voltou, rio acima. Quando chegou ao porto do Nico e puseram a moça numa  rede pra conduzirem pra casa de morada, era só grito e choro que se ouvia por toda a parte, de  mulheres e crianças, gente que até não tinha nada c’o acontecido.

Tem daqui, tem dali, mais isto, mais aquilo, diziam mil coisas a respeito da finada; e o  que  maiormente  havia  de  doer  à  pobrezinha  (se  quando  se  morre  ainda  se  escura  o  que  os  mortais proferem), era dizerem que a morte não passava duma complicação. E rematavam por  esta maneira:

− Não podia apanhar chuva, apanhou; tomou umidade, o sangue subiu-lhe à cabeça, a  coitada por isso ficou demente...

O sol já estava a umas três braças pra mergulhar naquela morraria sem fim, quando  saiu o enterro. A tarde era uma tarde triste, sem canto de passarinho, sem voz de ninguém p’r  as ruas, sem vento que tremesse as árvores. Só uma tapena voava muito sereno em riba da vila, fazendo vagarosamente suas curvas duma banda pra outra, co’a cauda ora aberta e ora  fechada.

Um caminhante que tinha sabido da morte e olhava o enterro que ia passando, falou  pra um dos que vinham mais atrás:

− No meu tempo, uma gente que se matava não tinha lugar no çumitério, ficava pra  fora do sagrado. 

Mas ninguém disse nada, o que tinha recebido a fala mal apenas teve como resposta  um gesto de amargura e de sofrimento. E sobre a grande tristeza da tarde se foi cerrando o  grande desespero da noite.


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Nota:
Valdomiro Silveira: "Mucufos" (1894-1905). Versão ortográfica do  apógrafo  de  Carmen  Lydia  de Souza  Dias, in: Alexandre de Oliveira Barbosa: "Edição anotada de Mucufos, coletânea de contos inédita de Valdomiro Silveira", da Universidade de São Paulo, 2007   

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