sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Mário de Andrade: "O Poço"

O POÇO

Ali pelas onze horas da manhã o velho Joaquim Prestes chegou no pesqueiro. Embora fizesse força em se mostrar amável por causa da visita convidada para a pescaria, vinha mal-humorado daquelas cinco léguas de fordinho cabritando na estrada péssima. Aliás o fazendeiro era de pouco riso mesmo, já endurecido por setenta e cinco anos que o mumificavam naquele esqueleto agudo e taciturno.
O fato é que estorara na zona a mania dos fazendeiros ricos adquirirem terrenos na barranca do Moji pra pesqueiros de estimação. Joaquim Prestes fora dos que inventaram a moda, como sempre: homem cioso de suas iniciativas, meio cultivando uma vaidade de família — gente escoteira por aqueles campos altos, desbravadora de terras. Agora Joaquim Prestes desbravava pesqueiros na barranca fácil do Moji. Não tivera que construir a riqueza com a mão, dono de fazendas desde o nascer, reconhecido como chefe, novo ainda. Bem rico, viajado, meio sem quefazer, desbravava outros matos.
Fora o introdutor do automóvel naquelas estradas, e si o município agora se orgulhava de ser um dos maiores produtores de mel, o devia ao velho Joaquim Prestes, primeiro a se lembrar de criar abelhas ali. Falando o alemão (uma das suas “iniciativas” goradas na zona) tinha uma verdadeira biblioteca sobre abelhas. Joaquim Prestes era assim. Caprichosíssimo, mais cioso de mando que de justiça, tinha a idolatria da autoridade. Pra comprar o seu primeiro carro fora à Europa, naqueles  tempos em que os automóveis eram mais europeus que americanos. Viera uma “autoridade” no assunto. E. o mesmo com as abelhas de que sabia tudo. Um tempo até lhe dera de reeducar as abelhas nacionais, essas “porcas” que misturavam o mel com a samora. Gastou anos e dinheiro bom nisso, inventou ninhos artificiais, cruzou as raças, até fez vir umas abelhas amazônicas. Mas si mandava nos homens e todos obedeciam, se viu obrigado a obedecer às abelhas que não se educaram um isto. E agora que ninguém falasse perto dele numa inocente jeteí, Joaquim Prestes xingava. Tempo de florada no cafezal ou nas fruteiras do pomar maravilhoso, nunca mais foi feliz. Lhe amargavam penosamente aquelas mandaçaias, mandaguaris, bijuris que vinham lhe roubar o mel da Apis Meilifica.

E tudo o que Joaquim Prestes fazia, fazia bem. Automóveis tinha três. Aquela marmon de luxo pra levar da fazenda à cidade, em compras e visitas. Mas como fosse um bocado estreita para que coubessem à vontade, na frente, ele choferando e a mulher que era gorda (a mulher não podia ir atrás com o mecânico, nem este na frente e ela atrás) mandou fazer uma rolls-royce de encomenda, com dois assentos na frente que pareciam poltronas de hol, mais de cem contos. E agora, por causa do pesqueiro e da estrada nova, comprara o fordinho cabritante, todo dia quebrava alguma peça, que o deixava de mau humor.
Que outro fazendeiro se lembrara mais disso! Pois o velho Joaquim Prestes dera pra construir no pesqueiro uma casa de verdade, de tijolo e telha, embora não imaginasse passar mais que o claro do dia ali, de medo da maleita. Mas podia querer descansar. E era quase uma casa-grande se erguendo, quarto do patrão, quarto pra algum convidado, a sala vasta, o terraço telado, tela por toda a parte pra evitar pernilongos. Só desistiu da água encanada porque ficava um dinheirão. Mas a casinha, por detrás do bangalô, até era luxo, toda de madeira aplainada, pintadinha de verde pra confundir com os mamoeiros, os porcos de raça por baixo (isso de fossa nunca!) e o vaso de esmalte e tampa. Numa parte destocada do terreno, já pastavam no capim novo quatro vacas e o marido, na espera de que alguém quisesse beber um leitezinho caracu. E agora que a casa estava quase pronta, sua horta folhuda e uns girassóis na frente, Joaquim Prestes não se contentara mais com a água da geladeira, trazida sempre no forde em dois termos gordos, mandara abrir um poço.
Quem abria era gente da fazenda mesmo, desses camaradas que entendem um pouco de tudo. Joaquim Prestes era assim. Tinha dez chapéus estrangeiros, até um panamá de conto de réis, mas as meias, só usava meias feitas pela mulher, “pra economizar” afirmava. Afora aqueles quatro operários ali, que cavavam o poço, havia mais dois que lá estavam trabucando no acabamento da casa, as marteladas monótonas chegavam até a fogueira. E todos muito descontentes, rapazes de zona rica e bem servida de progresso, jogados ali na ceva da maleita. Obedeceram, mandados, mas corroídos de irritação.
Só quem estava maginando que enfim se arranjara na vida era o vigia, esse caipira da gema, bagre sorna dos alagados do rio, maleiteiro eterno a viola e rapadura, mais a mulher e cinco famílias enfezadas. Esse agora, se quisesse tinha leite, tinha ovos de legornes finas e horta de semente. Mas lhe bastava imaginar que tinha. Continuava feijão com farinha, e a carne-seca do domingo.
Batera um frio terrível esse fim de julho, bem diferente dos invernos daquela zona paulista, sempre bem secos nos dias claros e solares, e as noites de uma nitidez sublime, perfeitas pra quem pode dormir no quente. Mas aquele ano umas chuvas diluviais alagavam tudo, o couro das carteiras embolorava no bolso e o café apodrecia no chão.
No pesqueiro o frio se tornara feroz, lavado daquela umidade maligna que, além de peixe, era só o que o rio sabia dar. Joaquim Prestes e a visita foram se chegando pra fogueira dos camaradas, que logo levantaram, machucando chapéu na mão, bom-dia, bom-dia. Joaquim tirou o relógio do bolso, com muita calma, examinou bem que horas eram. Sem censura aparente, perguntou aos camaradas si ainda não tinham ido trabalhar.
Os camaradas responderam que já tinham ido sim, mas que com aquele tempo quem aguentava permanecer dentro do poço continuando a perfuração! Tinham ido fazer outra coisa, dando u’a mão no acabamento da casa.
— Não trouxe vocês aqui pra fazer casa. Mas que agora estavam terminando o café do meio-dia. Espaçavam as frases, desapontados, principiando a não saber nem como ficar de pé. Havia silêncios desagradáveis. Mas o velho Joaquim Prestes impassível, esperando mais explicações, sem dar sinal de compreender nem de desculpar ninguém. Tinha um era o mais calmo, mulato desempenado, fortíssimo, bem escuro na cor. Ainda nem falara. Mas foi esse que acabou inventando um jeito humilhante de disfarçar a culpa inexistente, botando um pouco de felicidade no dono. De repente contou que agora ainda ficara mais penoso o trabalho porque enfim já estava minando água. Joaquim Prestes ficou satisfeito, era visível, e todos suspiraram de alívio.
— Mina muito?
— A água vem de com força, sim senhor.
— Mas percisa cavar mais.
— Quanto chega?
— Quer dizer, por enquanto dá pra uns dois palmo.
— Parmo e meio, Zé.
O mulato virou contrariado para o que falara, um rapaz branco, enfezadinho, cor de doente.
— Ocê marcou, mano...
— Marquei sim.
— Então com mais dois dias de trabalho tenho água suficiente.
Os camaradas se entreolharam. Ainda foi o José quem falou:
— Quer dizer.., a gente nem não sabe, tá uma lama.., O poço tá fundo, só o mano que é leviano pode descer.
— Quanto mede?
— Quarenta e cinco palmo.
Papagaio! escapou da boca de Joaquim Prestes. Mas ficou muito mudo, na reflexão. Percebia-se que ele estava lá dentro consigo, decidindo uma lei. Depois meio que largou de pensar, dando todo o cuidado lento em fazer o cigarro de palha com perfeição. Os camaradas esperavam, naquele silêncio que os desprezava, era insuportável quase. O rapaz não conseguiu se aguentar mais, como que se sentia culpado de ser mais leve que os outros. Arrancou:
— Por minha causa não, Zé, que eu desço bem.
José tornou a se virar com olhos enraivecidos pro irmão. Ia falar, mas se conteve enquanto outro tomava a dianteira.
— Então ocê vai ficar naquela dureza de trabalho com essa umidade!
Si a gente pudesse revezar inda que bem.., murmurou o quarto, também regularmente leviano de corpo mas nada disposto a se sacrificar. E decidiu:
— Com essa chuvarada a terra tá mole demais, e si afunda!... Deus te livre...
Aí José não pôde mais adiar o pressentimento que o invadia e protegeu o mano:
— ‘cê besta, mano! e sua doença!...
A doença, não se falava o nome. O médico achara que o Albino estava fraco do peito. Isso de um ser mulato e o outro branco, o pai espanhol primeiro se amigara com uma preta do litoral, e quando ela morrera, mudara de gosto, viera pra zona da Paulista casar com moça branca. Mas a mulher morrera dando à luz o Albino, e o espanhol, gostando mesmo de variar, se casara mas com a cachaça. José, taludinho, inda aguentou-se bem na orfandade, mas o Albino, tratado só quando as colonas vizinhas lembravam, Albino comeu terra, teve tifo, escarlatina, desinteria, sarampo, tosse comprida. Cada ano era uma doença nova, e o pai até esbravejava nos janeiros: “Que enfermedade le falta, caramba!” e bebia mais. Até que desapareceu pra sempre.
Albino, nem que fosse pra demonstrar a afirmativa do irmão, teve um acesso forte de tosse. E Joaquim Prestes:
— Você acabou o remédio?
— Inda tem um poucadinho, sim sinhô.
Joaquim Prestes mesmo comprava o remédio do Albino e dava, sem descontar no ordenado. Uma vidraça que o rapaz quebrara, o fazendeiro descontou os três mil e quinhentos do custo. Porém montava na marmon, dava um pulo até a cidade só pra comprar aquele fortificante estrangeiro, “um dinheirão 1” resmungava. E eram mesmo dezoito mil-réis.
Com a direção da conversa, os camaradas perceberam que tudo se arranjava pelo milhor. Um comentou
— Não vê que a gente está vendo si o sol vem e seca um pouco, mode o Albino descer no poço.
Albino, se sentindo humilhado nessa condição de doente, repetiu agressivo:
— Por isso não que eu desço bem! já falei...
José foi pra dizer qualquer coisa mas sobres teve o impulso, olhou o mano com ódio. Joaquim Prestes afirmou:
— O sol hoje não sai.
O frio estava por demais. O café queimando, servido pela mulher do vigia, não reconfortava nada, a umidade corroía os ossos. O ar sombrio fechava os corações. Nenhum passarinho voava, quando muito algum pio magoado vinha botar mais tristeza no dia. Mal se enxergava o aclive da barranca, o rio não se enxergava. Era aquele arminho sujo da névoa, que assim de longe parecia intransponível.
A afirmação do fazendeiro trouxera de novo um som apreensivo no ambiente. Quem concordou com ele foi o vigia chegando. Só tocou de leve no chapéu, foi esfregar forte as mãos, rumor de lixa, em cima do fogo. Afirmou baixo, com voz taciturna de afeiçoado àquele clima ruim:
— Peixe hoje não dá.
Houve silêncio. Enfim o patrão, o busto dele foi se erguendo impressionantemente agudo, se endireitou rijo e todos perceberam que ele decidira tudo. Com má vontade, sem olhar os camaradas, ordenou:
— Bem... é continuar todos na casa, vocês estão ganhando.
A última reflexão do fazendeiro pretendera ser cordial. Mas fora navalhante. Até a visita se sentiu ferida. Os camaradas mais que depressa debandaram, mas Joaquim Prestes:
Você me acompanhe, Albino, quero ver o poço.
Ainda ficou ali dando umas ordens. Havia de tentar uma rodada assim mesmo. Afinal jogou o toco do cigarro na fogueira, e com a vista se dirigiu para a elevação a uns vinte metros da casa, onde ficava o poço.
Albino já estava lá, com muito cuidado retirando as tábuas que cobriam a abertura. Joaquim Prestes, nem mesmo durante a construção, queria que caíssem “coisas” na água futura que ele iria beber. Afinal ficaram só aquelas tábuas largas, longas, de cabreúva, protegendo a terra do rebordo do perigo de esbarrondar. E mais aquele aparelho primário, que “não era o elegante, definitivo”, Joaquim Prestes foi logo explicando à visita, servindo por agora pra descer os operários no poço e trazer terra.
— Não pise aí, nhô Prestes! Albino gritou com susto.
Mas Joaquim Prestes queria ver a água dele. Com mais cuidado, se acocorou numa das tábuas do rebordo e firmando bem as mãos em duas outras que atravessavam a boca do poço e serviam apenas pra descanso da caçamba, avançou o corpo pra espiar. As tábuas abaularam. Só o viram fazer o movimento angustiado, gritou:
— Minha caneta!
Se ergueu com rompante e sem mesmo cuidar de sair daquela bocarra traiçoeira, olhou os companheiros, indignado:
— Essa é boa!... Eu é que não posso ficar sem a minha caneta-tinteiro! Agora vocês hão de ter paciência, mas ficar sem minha caneta é que eu não posso! têm que descer lá dentro buscar! Chame OS outros, Albino e depressa! que com o barro revolvido como está, a caneta vai afundando!
Albino foi correndo. Os camaradas vieram imediatamente, solícitos, ninguém siquer lembrava mais de fazer corpo mole nem nada. Pra eles era evidente que a caneta tinteiro do dono não podia ficar lá dentro. Albino já tirava os sapatões e a roupa. Ficou nu num timo da cintura pra cima, arregaçou a calça. E tudo, num átimo, estava pronto, a corda com o nó grosso pro rapaz firmar os pés, afundando na escureza do buraco. José mais outro, firmes, seguravam o cambito. Albino com rapidez, pegou na corda, se agarrou nela, balanceando no ar. José olhava, atento:
— Cuidado, mano
— Vira.
— Albino...
— Nhô?
veja si fica na corda pra não pisar na caneta. Passe a mão de leve no barro...
— Então é melhor botar um pau na corda pra fincar os pé.
— Qual, mano! vira isso logo!
José e o companheiro viraram o cambito. Albino desapareceu no poço. O sarilho gemeu, e à medida que a corda se desenrolava o gemido foi aumentando, aumentando, até que se tornou num uivo lancinante. Todos estavam atentos, até que se escutou o grito de aviso do Albino, chegado apenas uma queixa até o grupo. José parou o manejo e fincou o busto no cambito.
Era esperar, todos imóveis. Joaquim Prestes, mesmo o outro camarada espiavam, meio esquecidos do perigo da terra do rebordo esbarrondar. Passou um minuto, passou mais outro minuto, estava desagradabilíssimo. Passou mais tempo, José não se conteve. Segurando firme só com a mão direita o cambito, os músculos saltaram no braço magnífico, se inclinou quanto pôde na beira do poço:
— Achooooou!
Nada de resposta.
— Achou, manoooo!...
Ainda uns segundos. A visita não aguentara mais aquela angústia, se afastara com o pretexto de passear. Aquela voz de poço, um tom surdo, ironicamente macia que chegava aqui em cima em qualquer coisa parecia com um “não”. Os minutos passavam, ninguém mais se aguentava na impaciência. Albino havia de estar perdendo as forças, grudado naquela corda, de cócoras, passando a mão na lama coberta de água.
— José...
— Nhô. Mas atentando onde o velho estava, sem mesmo esperar a ordem, José asperejou com o patrão:
— Por favor, nhô Joaquim Prestes, sai daí, terra tá solta! Joaquim Prestes se afastou de má vontade. Depois
continuou:
— Grite pro Albino que pise na lama, mas que pise num lugar só. José mais que depressa deu a ordem. A corda bambeou. E agora, aliviados, os operários entre- conversavam. O magruço, que sabia ler no jornal da vendinha da estação, deu de falar, o idiota, no caso do “Soterrado de Campinas”. O outro se confessou pessimista, mas pouco, pra não desagradar o patrão. José mudo, cabeça baixa, olho fincado no chão, muito pensando. Mas a experiência de todos ali, sabia mesmo que a caneta-tinteiro se metera pelo barro mole e que primeiro era preciso esgotar a água do poço. José ergueu a cabeça, decidido:
— Assim não vai não, nhô Joaquim Prestes, percisa secar o poço.
Aí Joaquim Prestes concordou. Gritaram ao Albino que subisse. Ele ainda insistiu uns minutos. Todos esperavam em silêncio, irritados com aquela teima do Albino. A corda sacudiu, chamando. José mais que depressa agarrou o cambito e gritou:
— Pronto!
A corda enrijou retesada. Mesmo sem esperar que o outro operário o ajudasse, José com músculos de amor virou sozinho o sarilho. A mola deu aquele uivo esganado, assim virada rápido, e veio uivando, gemendo.
— Vocês me engraxem isso, que diabo!
Só quando Albino surgiu na boca do poço o sarilho parou de gemer. O rapaz estava que era um monstro de lama. Pulou na terra firme e tropeçou três passos, meio tonto. Baixou muito a cabeça sacudida com estertor purrr! agitava as mãos, os braços, pernas, num halo de lama pesada que caía aos ploques no chão. Deu aquele disfarce pra não desapontar:
— Puta frio!
Foi vestindo, sujo mesmo, com ânsia, a camisa, o pulôver esburacado, o paletó. José foi buscar o seu próprio paletó, o botou silencioso na costinha do irmão. Albino o olhou, deu um sorriso quase alvar de gratidão. Num gesto feminino, feliz, se encolheu dentro da roupa, gostando.
Joaquim Prestes estava numa exasperação terrível, isso via-se. Nem cuidava de disfarçar para a visita. O caipira viera falando que a mulher mandava dizer que o almoço do patrão estava pronto. Disse um “Já vou” duro, continuando a escutar os operários. O magruço lembrou buscarem na cidade um poceiro de profissão. Joaquim Prestes estrilou. Não estava pra pagar poceiro por causa duma coisa à toa! que eles estavam com má vontade de trabalhar! esgotar poço de pouca água não era nenhuma áfrica. Os homens acharam ruim, imaginando que o patrão os tratara de negros. Se tomaram dum orgulho machucado. Foi o próprio magro, mais independente, quem fixou José bem nos olhos, animando o mais forte, e meio que perguntou, meio que decidiu:
Bamo!...
Imediatamente se puseram nos preparos, buscando o balde, trocando as tábuas atravessadas por outras que aguentassem peso de homem. Joaquim Prestes e a visita foram almoçar.
Almoço grave, apesar o gosto farto do dourado. Joaquim Prestes estava árido. Dera nele aquela decisão primária, absoluta de reaver a caneta-tinteiro hoje mesmo. Pra ele, honra, dignidade, autoridade não tinha gradação, era uma só: tanto estava no custear a mulher da gente como em reaver a caneta-tinteiro. Duas vezes a visita, com ares de quem não sabe, perguntou sobre o poceiro da cidade. Mas só o forde podia ir buscar o homem e Joaquim Prestes, agora que o vigia afirmara que não dava peixe, tinha embirrado, havia de mostrar que, no pesqueiro dele, dava. Depois, que diabo! os camaradas haviam de secar o poço, uns palermas! Estava numa desesperada. Botando a culpa nos operários, Joaquim Prestes como que distrai a culpa de fazê-los trabalhar injustamente.
Depois do almoço chamou a mulher do vigia, mandou levar café aos homens, porém que fosse bem quente. Perguntou si não havia pinga. Não havia mais, acabara com a friagem daqueles dias. Deu de ombros. Hesitou. Ainda meio que ergueu os olhos pra visita, consultando. Acabou pedindo desculpa, ia dar uma chegadinha até o poço pra ver o que os camaradas andavam fazendo. E não se falou mais em pescaria.
Tudo trabalhava na afobação. Um descia o balde. Outro, com empuxões fortes na corda, afinal conseguia deitar o balde lá no fundo pra água entrar nele. E quando o balde voltava, depois de parar tempo lá dentro, vinha cheio apenas pelo terço, quase só lama. Passava de mão em mão pra ser esvaziado longe e a água não se infiltrar pelo terreno do rebordo. Joaquim Prestes perguntou si a água já diminuíra. Houve um silêncio emburrado dos trabalhadores. Afinal um falou com rompante:
— Quá!...
Joaquim Prestes ficou ali, imóvel, guardando o trabalho. E ainda foi o próprio Albino, mais servil, quem inventou:
— Si tivesse duas caçamba...
Os camaradas se sobressaltaram, inquietos, se entreolhando. E aquele peste de vigia lembrou que a mulher tinha uma caçamba em casa, foi buscar. O magruço, ainda mais inquieto que os outros, afiançou
— Nem com duas caçambas não vai não! é lama por demais tá minando muito.
Ai o José saiu do seu silêncio torvo pra pôr as coisas às claras
— De mais a mais, duas caçambas percisa ter gente lá dentro, Albino não desce mais.
— Quê que tem, Zé! deixa de história! Albino meio que estorou.
De resto o dia aquentara um bocado, sempre escuro, nuvens de chumbo tomando o céu todo. Nenhum pássaro.
Mas a brisa caíra por volta das treze horas, e o ar curto deixava o trabalho aquecer os corpos movidos. José se virara com tanta indignação para o mano, todos viram:
mesmo com desrespeito pelo velho Joaquim Prestes, o Albino ia tomar com um daqueles cachações que apanhava quando pegado no truco ou na pinga. O magruço resolveu se sacrificar, evitando mais aborrecimento. Interferiu rápido
— Nós dois se reveza, José! Desta eu que vou.
O mulato sacudiu a cabeça, desesperado, engolindo raiva. A caçamba chegava e todos se atiravam aos preparativos novos. O velho Joaquim Prestes ali, mudo, imóvel. Apenas de vez em quando aquele jeito lento de tirar o relógio e consultar a claridade do dia, que era feito uma censura tirânica, pondo vergonha, remorso naqueles homens.
E o trabalho continuava infrutífero, sem cessar. Albino ficava o quanto podia lá dentro, e as caçambas, lentas, naquele exasperante ir e vir. E agora a sarilho deu de gritar tanto que foi preciso botar graxa nele, não se suportava aquilo. Joaquim Prestes mudo, olhando aquela boca de poço. E quando Albino não se aguentava mais o outro magruço o revezava. Mas este depois da primeira viagem, se tomara dum medo tal, se fazia lerdo de propósito, e era recomendações a todos, tinha exigências. Já por duas vezes falara em cachaça.
Então o vigia lembrou que o japonês da outra margem tinha cachaça à venda. Dava uma chegadinha lá, que o homem também sempre tinha algum trairão de rede pegado na lagoa.
Aí Joaquim Prestes se destemperou por completo. Ele bem que estava percebendo a má vontade de todos. Cada vez que o magruço tinha que descer eram cinco minutos, dez mamparreando, se despia lento. Pois até não se lembrara de ir na casinha e foi aquela espera insuportável pra ninguém! (E o certo é que a água minava mais forte agora, livre da muita lama. O dia passava. E uma vez que o Albino subiu, até, contra o jeito dele, veio irritado, porque achara o poço na mesma.)
Joaquim Prestes berrava, fulo de raiva. O vigia que fosse tratar das vacas, deixasse de invencionice! Não pagava cachaça pra ninguém não, seus imprestáveis! Não estava pra alimentar manha de cachaceiro
Os camaradas, de golpe, olharam todos o patrão, tomados de insulto, feridíssimos, já muito sem paciência mais. Porém Joaquim Prestes ainda insistia, olhando o magruço:
— É isso mesmo!... Cachaceiro!... Dispa-se mais depressa! cumpra o seu dever!..
E o rapaz não aguentou o olhar cutilante do patrão, baixou a cabeça, foi se despindo. Mas ficara ainda mais lerdo, ruminando uma revolta inconsciente, que escapava na respiração precipitada, silvando surda pelo nariz. A visita percebendo o perigo, interveio. Fazia gosto de levar um pescado à mulher, si o fazendeiro permitisse, ele dava um pulo com o vigia lá no tal de japonês. E irritado fizera um sinal ao caipira. Se fora, fugindo daquilo, sem mesmo esperar o assentimento de Joaquim Prestes. Este mal encolheu os ombros, de novo imóvel, olhando o trabalho do poço.
Quando mais ou menos uma hora depois, a visita voltou ao poço outra vez, trazia afobada uma garrafa de caninha. Foi oferecendo com felicidade aos camaradas, mas eles só olharam a visita assim meio de lado, nem responderam. Joaquim Prestes nem olhou, e a visita percebeu que tinha sucedido alguma coisa grave. O ambiente estava tensíssimo. Não se via o Albino nem o magruço que o revezava. Mas não estavam ambos no fundo do poço, como a visita imaginou.
Minutos antes, poço quase seco, o magruço que já vira um bloco de terra se desprender do rebordo, chegada a vez dele, se recusara descer. Foi meio minuto apenas de discussão agressiva entre ele e o velho Joaquim Prestes, desce, não desce, e o camarada, num ato de desespero se despedira por si mesmo, antes que o fazendeiro o despedisse. E se fora, dando as costas a tudo, oito anos de fazenda, curtindo uma tristeza funda, sem saber. E Albino, aquela mansidão doentia de fraco, pra evitar briga maior, fizera questão de descer outra vez, sem mesmo recobrar fôlego. Os outros dois, com o fantasma próximo de qualquer coisa mais terrível, se acovardaram. Albino estava no fundo do poço.
Agora o vento soprando, chicoteava da gente não aguentar. Os operários tremiam muito, e a própria visita. Só Joaquim Prestes não tremia nada, firme, olhos fincados na boca do poço. A despedida do operário o despeitara ferozmente, ficara num deslumbramento horrível. Nunca imaginara que num caso qualquer o adversário se arrogasse a iniciativa de decidir por si. Ficara assombrado. Por certo que havia de mandar embora o camarada, mas que este se fosse por vontade própria, nunca pudera imaginar. A sensação do insulto estourara nele feito uma bofetada. Si não revidasse era uma desonra, como se vingar!... Mas só as mãos se esfregando lentíssimas, denunciavam o desconcerto interior do fazendeiro. E a vontade reagia com aquela decisão já desvairada de conseguir a caneta-tinteiro, custasse o que custasse. Os olhos do velho engoliam a boca do poço, ardentes, com volúpia quase. Mas a corda já sacudida outra vez, agitadíssima agora, avisando que o Albino queria subir. Os operários se afobaram. Joaquim Prestes abriu os braços, num gesto de desespero, impaciente.
— Também Albino não parou nem dez minutos!
José ainda lançou um olhar de imploração ao chefe, mas este não compreendia mais nada. Albino apareceu na boca do poço. Vinha agarrado na corda, se grudando nela com terror, como temendo se despegar. Deixando o outro operário na guarda do cambito, José com muita maternidade ajudava o mano. Este olhava todos, cabeça de banda decepando na corda, boca aberta. Era quase impossível lhe aguentar o olho abobado. Como que não queria se desagarrar da corda, foi preciso o José, “sou eu, mano”, o tomar nos braços, lhe fincar os pés na terra firme. Aí Albino largou da corda. Mas com frio súbito do ar livre, principiou tremendo demais. O seguraram pra não cair. Joaquim Prestes perguntava se ainda tinha água lá embaixo.
— Fa... Fa...
Levou as mãos descontroladas à boca, na intenção de animar os beiços mortos. Mas não podia limitar os gestos mais, tal o tremor. Os dedos dele tropeçavam nas narinas, se enfiavam pela boca, o movimento pretendido de fricção se alargava demais e a mão se quebrava no queixo. O outro camarada lhe esfregava as costas. José veio, tirou a garrafa das mãos da visita, quis desarrolhar mas não conseguindo isso logo com aqueles dedos endurecidos, abocanlhou a rolha, arrancou. José estava tão triste... Enrolou, com que macieza! a cabeça do maninho no braço esquerdo, lhe pôs a garrafa na boca:
— Beba, mano.
Albino engoliu o álcool que lhe enchera a boca. Teve aquela reação desonesta que os tragos fortes dão. Afinal pôde falar:
— Farta... é só tá-tá seco.
Joaquim Prestes falava manso, compadecido, comentando inflexível
— Pois é, Albino: se você tivesse procurado já, decerto achava. Enquanto isso a água vai minando.
— Si eu tivesse uma lúiz.
— Pois leve.
José parou de esfregar o irmão. Se virou pra Joaquim Prestes. Talvez nem lhe transparecesse ódio no olhar, estava simples. Mandou calmo, olhando o velho nos olhos:
— Albino não desce mais.
Joaquim Prestes ferido desse jeito, ficou que era a imagem descomposta do furor. Recuou um passo na defesa instintiva, levou a mão ao revólver. Berrou já sem pensar
— Como não desce!
— Não desce não. Eu não quero.
Albino agarrou o braço do mano mas toma com safanão que quase cai. José traz as mãos nas ancas, devagar, numa calma de morte. O olhar não pestaneja, enfiando no do inimigo. Ainda repete, bem baixo, mas mastigando:
Joaquim Prestes, o mal pavoroso que terá vivido aquele instante... A expressão do rosto dele se mudara de repente, não era cólera mais, boca escancarada, olhos brancos, metálicos, sustentando o olhar puro, tão calmo, do mulato. Ficaram assim. Batia agora uma primeira escureza do entardecer. José, o corpo dele oscilou milímetros, o esforço moral foi excessivo. Que o irmão não descia estava decidido, mas tudo mais era uma tristeza em José, uma desolação vazia, uma semiconsciência de culpa lavrada pelos séculos.
Os olhos de Joaquim Prestes reassumiam uma vibração humana. Afinal baixaram, fixando o chão. Depois foi a cabeça que baixou, de súbito, refletindo. Os ombros dele também foram descendo aos poucos. Joaquim Prestes ficou sem perfil mais. Ficou sórdido.
— Não vale a pena mesmo...
Não teve a dignidade de aguentar também com a aparência externa da derrota. Esbravejou:
— Mas que diacho, rapaz! vista saia!
Albino riu, iluminando o rosto agradecido. A visita riu pra aliviar o ambiente. O outro camarada riu, covarde. José não riu. Virou a cara, talvez para não mostrar os olhos amolecidos. Mas ombros derreados, cabeça enfiada no peito, se percebia que estava fatigadíssimo. Voltara a esfregar maquinalmente o corpo do irmão, agora não carecendo mais disso. Nem ele nem os outros, que o incidente espantara por completo qualquer veleidade do frio.
Quer dizer, o caipira também não riu, ali chegado no meio da briga pra avisar que os trairões, como Joaquim Prestes exigia, devidamente limpos e envoltos em sacos de linho alvo, esperavam pra partir. Joaquim Prestes rumou prô forde. Todos o seguiram. Ainda havia nele uns restos de superioridade machucada que era preciso enganar. Falava ríspido, dando a lei com lentidão:
— Amanhã vocês se aprontem. Faça frio não faça frio mando o poceiro cedo. E... José...
Parou, voltou-se, olhou firme o mulato:
—... doutra vez veja como fala com seu patrão.
Virou, continuou, mais agitado agora, se dirigindo ao forde. Os mais próximos ainda o escutaram murmurar consigo: “...não sou nenhum desalmado...”
Dois dias depois o camarada desapeou da besta com a caneta-tinteiro. Foram levá-la a Joaquim Prestes que, sentado à escrivaninha, punha em dia a escrita da fazenda, um brinco. Joaquim Prestes abriu o embrulho devagar. A caneta vinha muito limpa, toda arranhada. Se via que os homens tinham tratado com carinho aquele objeto meio místico, servindo pra escrever sozinho. Joaquim Prestes experimentou mas a caneta não escrevia. Ainda a abriu, examinou tudo, havia areia em qualquer frincha. Afinal descobriu a rachadura.
— Pisaram na minha caneta! brutos...

Jogou tudo no lixo. Tirou da gaveta de baixo uma caixinha que abriu. Havia nela várias lapiseiras e três canetas-tinteiro. Uma era de ouro.


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Contos Paulistas - Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2015

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