REIS
O
melhor presépio que
se fez, esse
ano, em Lorena,
foi com certeza
o da casa
do João do Santo, um home que não
era rico mas arremediado, e tinha uma filha de mão boa de mais pra um serviço fino assim, chamada
Ginerosa. Já de longe, reparando no jeito em que estavam postas as flores, armada a arve de
bacupari, cheinha de frutas doiradas, e arranjados os três
reis e o
Senhor Menino (que
por sinal era
gordo e corado,
muito alegre) e
nossa senhora e S. José e a
jumentinha e o burrico, todos diziam:
− Qual! Pra estes perparos não há
mesmo outra que nem a Ginerosa!
Ela então
andava numa dobadoura,
vai pra aqui,
vai pra ali,
atendendo às visitas,
recebendo os presentes, dando as lembranças que cada um queria do natal,
e rindo, rindo, que era só aquela
alegria!
Quando foi sendo meia-noite, o
João do Santo repontou o povo todo pra missa do
galo: algum piá
que estava meio
morrinhento de sono,
saía um tanto
atropelado, que ele
assobiava no ouvido do tal, e não havia como o piá não levantasse; a nhá
Rita, mulher do dito João do Santo, redonda de graxa, a coitada, via-se
num tipiti, pra caminhar a par de tamanha
gentarada, e (com perdão da palavra!) ia bufando que nem um redomão que
acabou de tomar um galope decidido. A Ginerosa,
com sua saia de balão entusiasmada, estava de matar.
Assistiram à missa, que acabou
ali por volta de uma hora da madrugada, porque seo padre vigário, um velhinho já cata-cego e
rouco, mal podia enxergar as letras do livro santo e falava numa voz baixica mesmo. E já iam indo
de volta pra casa na virada de uma esquina...
... quando rebentou de uma outra
o bando dos cantadores de reis, pedindo esmolas
pra última festa do nascimento de Nosso Senhor. E que bando destorcido!
Não contando o povaréu do acompanhamento, que estava duro
deste feitio, lá se via bem à frente, todo concho c’a
sua viola marchetada,
em cuja cravelheira
tremia uma fita
vermelha comprida, o
Antoninho Cabo Verde, pisando em lã e em ovos, e o Chico Pintassilvo, c’o
machetinho na mão, olhando por cima de
tudo, serenando de contente.
Senão quando
o machetinho picou
e a viola
foi só rasgando,
ao passo que
aquele mundão de caboclada
cantava num coro alto:
“Ó de casa nobre gente,
escutai e ouvireis:
lá da parte do oriente
são chegados os três reis.”
E verso e mais verso, um em riba
de outro, numa cantoria tão bonita que, depois que o barulho tinha acabado, muito tempo, a gente
inda cuidava estar c’os ouvidos encantados de
tão linda toada!
Assim que o bando fronteou a casa
do João do Santo, o Chico Pintassilvo, que vivia numa paixa desapoderada pela Ginerosa,
percurou aproximar-se dela e, com todo o respeito, a bem
dizer até um
pouco enleado da
língua, pediu-lhe qualquer
cousa pra festa
de reis. A
Ginerosa, Cristo Deus − ficou atada dos pés e das mãos, naquele
instante: mas sossegou, mal e malzinho,
foi pra dentro,
voltou pra fora,
trouxe uma moeda
de ouro, das
de meia dobra
ainda, e disse-lhe estas palavras:
− Olhe, nhô Chico: a única coisa
que eu pissuo de meu é esta moedinha, que vai dada de coração.
Ele agardeceu, afastou-se cada
vez mais atrapalhado, deu adeus, foi-se embora.
E
o bando dos
cantadores ia pintando
o caneco pelas
ruas, fazendo um
rumor desesperado. Começava a
arruivar-se um ladinho do céu, que depois ficou vermelho, e depois amarelo, p’r amór de o sol. A rapaziada, que
estava tonta de sono, sumiu como por acaso: a
Lorena caiu logo num sossego, num sono também que, mal comparando,
parecia de ares de çumitério.
O peditório ia desde o Natal até
os Reis, todo dia. Formou-se aquele ano um terno que
então sabia folgar
direiro, com cada
peito limpo que
não tinha corage
de negar uma
dávida qualquer. Mas não podiam
receber dinheiro em
nota, porque, segundo
a voz geral
nunca houve notas lá por Belém; outra: quem não tinha de seu um vintém,
um quarenta, um cobre paraguaia,
entregava frangos, leitoas, frutas, bobages que servissem pra se venderem no dia último das festas.
Amanheceu o legítimo dia dos
Reis. Povo estava assim no largo da igreja. Nem bem foi
ouvida a missa,
já todos se
esparramaram por ali
fora, pra verem
o bando uçu
de cantadores. Seo padre vigário,
o pobre! - assim que passou entre eles, arcado por via da idade, murcho
do rosto, fraco
dos olhos, não
teve mão em
si que não
deixasse duas lágrimas
correrrem-lhe pelo rosto abaixo. Decerto seo vigário, no tempo de moço,
também foi do chifre urado com
argolinha na ponta,
decerto gostava bem
de suas patuscadas
e folias: agora,
acarcanhado e preso por aquele vestido preto, o único remédio que lhe
sobejava era mesmo chorar, o pobre!
O
machetinho gritou só
no fundo do
largo, e daí a
um baque a
viola repinicou buliçosa e sirigaita, acompanhando, e a
moçada reuniu-se perto do Antonio Cabo Verde e do Chico Pintassilvo. E lá foi o povão,
cantando.
Tinha umas moças que apareciam, de vez em vez, e pediam festas
por este modo, enjoadas de mais:
“Moço formoso e cortês,
eu quero o meu Reis.”
Quando o
sol estava querendo
morrer lá pra
umas serras grandes
que pareciam espetar o céu, de tão finas na ponta, a
moçada foi pras casas onde tinha presépios, porque era a hora de leilões de tudo quanto havia.
Vendia-se tudo: as folhages, as
flores, as frutas, os animais: só
a Santa Família, os Reis, a jumentinha e o burrico não se vendiam, ficavam
pro presépio do ano que vinha. Apareciam
uns ovos da ascenção, enfeitados de fitas, e o leiloeiro gritava, a mó’ que esbaforido até:
− Afronta faço que mais não acho!
Um ovo da ascenção, ovo que não apodrece, que
dá felicidade, que traz fortuna! Dou-lhe uma, dou-lhe duas! E lá vai o
ovo da ascenção por vinte mil réis!
E
ia às vezes
por mais, cada
ovo! Também, quem
arrematava um daqueles,
guardava-o bem, com todo o carinho, porque é certo que faz ventura e tem
o cheiro perfeito do benjoim com que a
pecadora banhou os pés de nosso senhor, quando ele já era home e ela era morena muito fermosa, conforme dizem
aqueles livros que têm a vida de Nosso Senhor.
Chegou a hora da casa do João do
Santo; pra lá se dirigiu a rapaziada, que levava um cesto macota de dinheiro e quanta criação e
coisa de mesa se pode imaginar. Foi o presépio
arrematado, pedaço por pedaço:
e a Ginerosa, que já se acostumara com
ele e beijava toda hora o
Menino Deus (porque
contam que quem
tem fé c’o
Menino Deus consegue
tudo quanto quer) viu ir saindo
tudo: os carneiros, a graminha da manjadoura, os jasmins de um lado, os cajus de outro, e os anjinhos
pendurados das folhas de caeté com flor que ali faziam figura, tão engraçados com suas asas de cor!
Por derradeiro, assim que tudo se entregou aos lançadores, no leilão, o capataz do
bando que era
o Antonio Cabo
Verde, foi mandar
fazer a ceia
co’aquela dinheirama, e
aprontar quanto pato e marreco e veado e paca tinham ganhado.
O Chico Pintassilvo, esse não
quis saber de mais nada: folgar por
folgar, antes ali perto da
Ginerosa, seu tanto escondido, confessando tudo que sentia por ela, tal e qual
um que está aos pés do padre, em
segredo. E a Ginerosa, que lhe percebeu o jogo, logo-logo achou talho
de conversar com
ele, junto da
arvinha de bacupari
que inda balançava
a um canto.
Quanta coisa não
conversaram, quanta! E
foi depois de
muitas horas, quando
já estava roncando na sala dum vizinho o realejo do
baile pra depois da ceia, que o Chico, assim c’a voz quase presa, receoso, contou pra
Ginerosa:
− Ginerosa, amanhã, se vancê me der
licença e Deus me ajudar, eu vou falar
pra seu pai no casamento.
− Fale, nhô Chico − ela
respondeu: fale, e fique na certeza que a melhor festa que vancê me podia dar é esta mesmo.
Depois, assim que não se via mais
viv’alma na sala do João do Santo, além do Chico, e o baile inda não tinha principiado, a
Ginerosa foi pro quarto, puxou o Menino Deus da caixa dos
vestidos, abraçou-o, uniu-o
bem aos peitos,
e pegou a
murmurar como se
fosse às orelhinhas dele:
− Bem se diz, meu abençoado
Menino Deus , que quem se apega com vós consegue o que deseja. Bem se diz!
E como já a tinham chamado umas
par de vezes, saiu do quarto cantando.
O
realejo roncava na
casa do vizinho.
Daí a pouco
principiaram a dançar
o baile, c’um estrépito danado. E o Chico Pintassilvo,
distraído na sala do João do Santo, fazia que
estava olhando as flores doiradas do bacupari, mas o que estava o que
estava era olhando a porta da varanda
pra não peder nem um pouco de tempo de contemplar a Ginerosa.
Ela apareceu, daí a bocado, e
tanto que entraram no baile (isso é que foi a gana das moças e dos moços!) deram logo nas vistas, de
tão jeitosos que iam. Seo padre vigário, que se
sentara um momento ali na sala, por comprazer aos donos da casa, foi logo
pra perto deles: e com a mão aberta,
explicando não se sabe o que, aos dois, parecia estar já abençoando-os...
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Nota:
Valdomiro Silveira: "Mucufos" (1894-1905). Versão ortográfica do apógrafo de Carmen Lydia de Souza Dias, in: Alexandre de Oliveira Barbosa: "Edição anotada de Mucufos, coletânea de contos inédita de Valdomiro Silveira", da Universidade de São Paulo, 2007
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