quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Valdomiro Silveira: "Soneira Brava"

SONEIRA BRAVA
  
A Lidubina abriu um chale no ombro, pegou o chapéu de sol, um que é cor de rosa e   tem rendas nas pontas, e saiu. Ventava por demais, porque vinha chegando mesmo o tempo  dos frios. A Lidubina, toda receosa e vergonhosa, ora punha o chapéu de sol por diante, ora  segurava co’as duas mãos os lados da saia: nesses momentos o chale dava de cair, e ela não  sabia ao certo se havia de atender ao chale ou à saia.

Era hora de jantar de cedo. Adonde então se atirava tão linda criatura? Adonde! Pois  adonde podia ser? Lá pros lados das pedras, por ter notícia que seu galheiro, o Nicolau das  Brotas, andava fazendo pé de alferes a uma tal abobrinha, rapariga de compridas histórias que  estava na ponta, por ser nova e conhecer feitiçarias, segundo metade do povo afiançava.  A  Lidubina  era  moça  do  Nicolau,  toda  a  gente  não  desconhecia:  como  então  o  Nicolau  tinha  corage de fazer uma beleza assim de chá de canela?

Levava pressa, ia quase correndo. A umas par de mulheres que encontrava na rua e  lhe davam adeus, só respondia à saudação e pedia pelo amor de Deus  que não a estrovassem,  que  não  a  estrovassem.  As  mulheres  ficavam  c’a  pedra  no  sapato,  pois  bicho  pra  ter  curiosiadade  como  mulher  até  não  há  na  terra  –,  e  principiavam  a  reparar  no  rumo  que  a  Lidubina tomava. E de pouco em pouco foi-se engrossando o terno das tais, até o ponto de  serem umas quinze, que também ganhavam a direção das pedras.

A viage era  curta,  a  Lidubina chegou logo.  Fez  chão na linha da mandingueira.  A  chamada  Abobrinha  morava  no  alto,  na  última  casa,  onde  esteve,  não  faz  muito  tempo,  a  Cesara.  Era  dia  de  domingo,  e  o  povo  estava  duro  pelo  caminho.  A  Lidubina  não  punha  atenção no povo, nem olhava pra trás: ia só c’os olhos acesos naquela casa amaldiçoada. Foi  chegar, meu dito, meu feito! – e ver já o Nicolau sentado num tamborete a par c’a tiriba, numa  prosa cerrada.

A  Lidubina  apareceu  à  porta,  salvou  a  todos,  com  toda  a  cortesia,  porque  ela  é  mesmo ûa morena de sola e vira pra essas coisas, e pediu um particular ao Nicolau. O Nicolau  não tinha altura, de tão passado; não achou resposta pra dar à companheira: só sim saiu pra  um  lado,  conversou  lá  suas  conversas  c’a  Lidubina,  e  voltou  pra  campear  o  chapéu  na  varanda.  Trouxe  o  chapéu,  despidiu-se  dos  mais,  e  garrou  estrada  junto  c’a  Lidubina.  A  Abobrinha nem piou.

Quando chegaram ao rancho, a Lidubina falou estas poucas palavras ao Nicolau:

Nicolau,  você  teve  muita  moda  pra  me  seduzir  e  me  deixar  neste  estado;  agora  esquece  de  mim  p’r  amór  de  as  outras...  Apesar  de  tudo  eu  não  me  queixo:  se  eu  tivesse  cabeça,  não  tinha  largado  meus  parentes  por  seu  respeito.  E  agora,  que  vejo  que  você  não  soube reconhecer o que eu fiz, vou-me embora, mas porém não quero sair escondida e fugida  como saí da casa da minha gente.

Como o chale se lhe via mesmo no ombro, afastou-se, depois de encostar à parede da  frente o chapéu de sol, que era um presente do Nicolau. Afastou-se, afastou-se, desapareceu  na volta da rua.

O  Nicolau  das  brotas  murchou  de  repente:  ficou,  mal  comparando,  que  nem  boi  alongado no ermo, assim que o sol vai entrando.

É  de  rezão  falarem  que  a  gente  só  sabe  o  bem  que  possui,  depois  que  o  perde:  o  Nicolau não gostou nem um pouco daquele abandono. Espairecia a princípio, rindo e folgando co’a Abobrinha, que era uma formiga saracutinga, de tão alegre e buliçosa; divertia-se, aos  domingos e dias santos, em ir a um pavoeiro na mata do Bernardino, escuitando a berraria dos  pavões e espichando-lhes fumaça, a todo o risco; trabalhador como sempre foi, de dia andava  esquecido no serviço de oficina de carpinteiro, e estava tudo direito: mas assim que a barra do  dia começava a sumir no encontro do céu co’a cabeça dos espigões, o pobre vinha sentar-se à  porta da casa, matutando nas suas tristuras, encarangado como se sofresse grande frio.

Já  se  ia  arrependendo  das  asneiras  que  tinha  feito  p’r  amór  de  a  Abobrinha:  um  homem que tem sua companhia e sente sangue aqui, não se enleva sem mais aquela c’uma  ventena  do  facho.  Mas  bem  se  diz  que  se  eu  soubesse  sempre  anda  atrás:  agora,  que  a  Lidubina  cansara  de  aturar  semelhante  traidoria  e  o  deixara  duma  vez,  pegou  às  voltas  c’o  remorso. Remorso fora do tempo, vindo tarde e a más horas, que só lhe servia pra aumentar  mais a dor da separação.

Largou a abobrinha de cabo a rasto: arre! Que pra fazer figura triste não é que um  filho  de  Deus  vem  ao  mundo!  Largou-a,  fechou-se  consigo  mesmo,  não  campeou  mais conversa  nem  treta  com  pessoa  alguma,  senão  pra  receber  ou  entregar  qualquer  serviço,  agarrou-se c’o Jesus Menino e c’a Virge Maria, dos quais era muito devoto, rogando-lhes, de  quanto jeito havia,  fizessem que a  Lidubina voltasse. Mal  e mal, sempre escrevia coisinha:  rabiscou umas orações esquisitas, que aprendera com seu Galdino, por esta maneira: − Senhor  Jesus Menino, determinai que aquela ingrata volte pra minha companhia! Santa Virge Maria,  intercedei  junto  de  Deus  por  mim!  –  este  peditório  era  feito  três  vezes  em  seguida,  c’as  mesmas palavras. Outro papel trazia a promessa de dar duas velas pro altar do Senhor Menino  e uma reza da Virge, se lhe saísse o desejo realizado.

Transformou-se, o Nicolau das brotas: de muita graxa que tinha, ficou chupado das  bochechas e do cangote, desmereceu dum modo que nem que tivesse estado doente. Chegou a  ponto, uma vez, de passar certa mulher por perto dele e dizer: − seu Nicolau, não foi à toa que  eu lhe falei que não mexesse tanto pra aquelas bibocas da Guamixama, que há lugares ali bem  maleiteiros. O resulttado mecê ‘tá vendo! – ele  ameaçou um sorriso, como resposta, mas o  sorriso saiu amarelo e desconsolado. E a tal dona deu de contar a quanta gente havia que, se o  Nicolau não bebesse raiz de tomba ou de maricá e não comesse uns dois quilos de sulfato,  rodava pela água abaixo.

O  freguês  principiou  a  rondar  as  vizinhanças  da  Lidubina,  dia  e  noite:  disfarçava  como quem estivesse a procurar um morador da rua, um morador que sumira por tal forma  que nunca mais podia ser encontrado. Ora, nesse pedaço de tempo o Zeca Lorindo, moço de  peito e presença, enfeitiçou-se pela cabocla. O Zeca Lorindo é um sujeito que não tem medo  de tomar um compromisso, por maior que seja, porque sabe que se desenleia com facilidade.  Tirar a Lidubina era uma coisa, a bem dizer, impossível, porque ela não havia de querer outra  vez cair no mesmo laço; atirou o anzol, mas a isca voltou sem nenhum belisco; botou contas à  vida, remexeu na cabeça, pôs o dedo no queixo, um dia, pensou, pensou – e assentou de casar.  Falassem, dissessem dele o diabo, nada lhe importariam as prosas do mundo, pois não vivia  almoçando  e  jantando  na  mesa  dos  mais.  Afinal...  E  aquilo  ficou  mesmo,  lá  na  cachola  do  manata, firme que nem rocha de pedra.

Se bonito cuidou, mais bonito contou. A vila inteira foi logo senhora da notícia que   Zeca Lorindo ia mandar seo promotor notar uma carta pedindo casamento pra Lidubina. Uns  intentavam  trelar  co’a  nova,  cortar  na  casaca  do  outro  murmurando:  e  na  horinha  barganhavam de tenção, só de se lembrarem que o tal, sabendo dos cortes, não cochilaria pra  se  desobrigar.  Paga  a  pena  ser  moço  de  respeito  assim!  Até  essas  velhas  gaiteiras,  que  só  vivem de casa em casa bulindo c’os segredos alheios, não tinham ânimo de se ocuparem do  nome dele!

Assim  que  chegou  aos  ouvidos  dos  pais  da  lidunbina  aquele  rumor,  foi  um  festão  pros pobres dos velhos: achavam que o Zeca Lorindo estava nas condições de fazer uma linda  vida  co’a  rapariga,  arranjaram  seus  planos,  trataram  de  ajuntar  umas  economias  pro  divertimento, puseram-se em dia c’os serviços atrasados, afim de os serviços renderem algum  pouco, e esperaram a carta. A carta não tardou: receberam-na um dia de sábado, ali pela boca  da noite, levada pelo pai do dito moço, escrita c’ûa mão de pena boa que dava gosto. Só a   Lidubina  mesmo  era  quem  lia  por  cima,  de  todos  da  familiage:  foi  ela,  pois,  quem  leu  as  letras. No fim os velhos falaram que ali a pessoa mais interessada acabara de ver o pedido;  por isso que respondesse bocalmente. A  Lidubina foi  até  a varanda,  apegou-se um instante  co’a Senhora Aparecida, e veio c’o sim na ponta dos beiços.

Houve um barulhão na vila. A mó’ que sempre que ûa moça vai casar todas as outras  têm um defeito pra pôr na noiva: assim aconteceu, inda mais com quem! – c’uma coitada que  tinha  telhado  de  vidro!  O  guaiú  foi  bater  nas  orelhas  do  Nicolau  das  Brotas;  não  havia  remédio como não batesse; ele ficou pras pontas dos dedos e, se se sentia amagoado, mais  amagoado se sentiu daí por diante, quase sem juízo, a falar verdade. E uma vez se queixava de  a antiga companheira o largar e se amarrar c’um estranho, houve um destrocido que se saiu  com esta:

− O que, Nicolau? Você pensava antão que a Lidubina é brejo pra porco fuçar? 

Esteve  em  ares  de  enlouquecer,  o  Nicolau.  Não  enlouqueceu,  de  certo,  porque  um  cristão meio avariado não tem realmente grandes esp’ritos pra perder c’os baques que a sorte  lhe dá. Apenas, que depois do aludido casamento, garrou a viver uma vida diferente do resto  dos homens: não queria mais saber de gente de saia, derretia-se meses e meses pelas matas e  pelas furnas, rebuscando plantas e raízes de medicina − cipó-sumo, sussuauá, sessenta-feridas,  cipó-caboclo, perogaia, japecangas – e virou um curador de primeira qualidade, os caçadores  muitas vezes topavam na ribanceira do rio c’um vulto arcado pro chão, segurando uma faca e  algum talo de erva ou algum ramo de trepadeira; aravam pra fazer que ele provasse o virado  da pândega ou molhasse a garganta co’aquela agüinha que gato não bebe: tempo escusado,  porque o Nicolau só se enchia de coqueiros e mel que ele mesmo derrubava ou furava, tudo  mexido e comido no guatapé, e nada mais punha na boca.

Recomendava  a  banha  da  capivara  pra  curar  essas  roncuras  de  constipado  meio  estuporado; o óleo do cacho da anta pro reumatismo; a gordura do cuatí pra fazer crescer o  cabelo  e  curar  as  mataduras  dos  animais;  a  enxúndia  do  jacu  pra  botar  nos  ouvidos,  como  remédio pra surdez; a carne do pica-pau chanchã pros mudos mamparem e recuperarem a voz  ou  aprenderem  a  falar;  o  moquém  de  bugio  ou  de  mono,  como  fortalecente,  por  serem  de  muita  sustância;  os  xarques  da  onça  pintada  ou  saçuarana,  pra  esses  caroços  que  dão  no  pescoço da gente, escrófulas: e um chuveiro de graxas e banhas e óleos e carnes do sertão pra  diversos incômodos.

Ganhou  fama.  Vinha  povo  de  longe,  atraído  pelo  nome  do  Nicolau,  buscar  umas  garrafadas  que  ele  aprontava  e  eram  danadas  pras  boubas;  um  vinho  macota  de  bom  pra  desinchar as pernas de quem andava com hidropisia; um xarope que era um porrete pra acabar  co’a catarreira dessa doença que tem aparecido, a influência: e, fosse porque mais vale a fé  que o pau da barca ou porque as drogas fossem virtuosas, todos se diziam sastifeitos co’elas.  Despois,  o  Nicolau  não  especulava  co’as  curas  e  c’os  remédios:  isso  inda  mais  servia  pra  aumentar o merecimento do curador.

Um dia de sábado, remexendo o Nicolau uma capoeirinha rala que tem ali perto da  Maria Alves, em procura de uma tal planta chamada traquá, que dizem ser truco-fecha pros  hernes, ouviu gritarem-lhe o nome umas par de vezes, com teima e com ânsia.

 Virou-se no rumo do chamado, abaixou-se um pouco rente c’o chão, pras folhas das  arvinhas não lhe estrovarem os ouvidos, e percebeu que a voz rompia da estrada-mestra da  fazenda,  mais  ou  menos  por  ali  assim  pelo  café  novo  do  Batista  Severo.  Saiu  da  capoeira,  c’um  dilúvio  de  ramos  debaixo  do  braço  direito  e  a  faca  na  mão  esquerda,  apareceu  na  estrada.  Nem  bem  botou  a  cara  no  limpo,  já  um  cavaleiro  correu  de  longe  os  garfos  nas  paletas da mula saina, em que estava montado, e aproximou-se à toda.

− Seu Nicolau, foi logo falando o supradito cavaleiro: venha ra vila acudir ûa mulher  que ‘tá pra uma dependura, se Deus   abaixo de Deus  vancê não lhe der alguma volta!

− Mas quem é? − perguntou o Nicolau.

− Home, eu não sei: venho de favor, não indaguei de nada.

− Mas adonde mora a doente?

− Ela assiste ali na virada da Vila Velha pra Vila Nova.

O Nicolau matutou um instante. Não se recordava de ninguém nas condições de se  ver  doente  morre-não-morre,  pra  aqueles  lados,  duma  hora  pra  outra.  E  o  recadeiro  foi-lhe  pedindo, já no sufragante, lhe montasse à garupa da mula, que era um raio, e daí a coisinha  estariam chegando.

O  curandeiro  fez  um  maço  da  ramalhada,  que  entafulhou  num  saco  de  picuá:  amarraram-no ao rabicho da mula, o curandeiro largou um pulo, sentou na garupa, e a saina  descanhotou-se numa retirada de mil demônios, ligeira que nem tinha altura. 

Daquele  lugar  até  a  vila  tinha  quindau,  não  há  dúvida,  mas  a  pressa  encurtou  a  distância:  não  gastaram  mais  que  uma  hora  pequena  pra  chegar.  Logo  na  porta  da  casa  o  Nicolau teve um estremeção, porque encontrou um homem que lhe era muito conhecido, mas  muito mesmo: o Zeca Lorindo, sem mais um ponto, sem mais uma linha. E pegou a pensar e a  estudar lá consigo:

− Ora quer ver que a Lidubina é que ‘tá nas últimas, ora quer ver?

Aquela  idéia  fazia-lhe  uma  dor  endemoninhada:  a  cabo  de  tantos  dias,  de  tantos  meses, de tantos anos, vir topar c’a dona do seu coração no fundo duma cama, vai-não-vai!  Isso era um desespero! Mas no mesmo momento dava de cuidar outras coisas: qual! Havia de  ser  alguma  conhecida,  alguma  parenta  do  Zeca  Lorindo.  A  Lidubina,  essa  inda  há  pouco  tempo  ele  tinha  sabido  que  estava  residindo  pros  lados  do  Piraju,  onde  o  Zeca  abrira  um  cultivado, na fazenda do Douradão.

Também,  graças  a  Deus,  ninguém  o  conheceu  na  casa.  Foi  entrando,  a  pedido  do  próprio Zeca Lorindo, pela morada a dentro, até o quarto onde se achava a doente, quase já  com  pérca  de  fala,  segundo  logo  lhe  contaram.  O  quarto  era  pequetito,  mal  apenas  tinha  cabimento  pra  um  catre  novo,  onde  a  Lidubina  (era  ela,  era  a  Lidubina!)  padecia  em  demasiado  há  quase  um  mês.  Ele  vizinhou  c’o  dito  catre,  olhou  pra  moça,  que  a  mó’  que  estava  meia  fraca  do  juízo,  de  tamanho  febrão  que  andava  tendo,  e  ficou  distraído  uma  temporada, c’os olhos pregados naquele sembrante, sumido e cheio de tristeza.

Tristeza,  então,  foi  a  do  Nicolau  das  Brotas  nessa  horinha!  Mas  não  disse  coisa  alguma: segurou a mão da outra, estendeu-a numa das suas, pra ver o sangue que a moça inda  tinha no corpo, como despois explicou, apalpou-lhe o pulso, que estava longe como aquela  serra da fartura, foi o que despois disse: e abriu-lhe a boca de vagarzinho, pra ver a língua,  que estava seca e branca que nem o pedregulho do palmital, contou também despois.

E falou bem compassado, pra ninguém não perceber o sofrimento que ele sofria:

−  Acho  que  esta  dona  ‘tá  c’uma  febre  das  fortes  e  c’um  pleuriz  daqueles  mais  apertados. O que é que ela tem bebido?

A dona tinha bebido muita coisa: um pozinho claro que seu Maneco Alvim perparou,  pra  misturar  no  café;  um  remédio  de  vidro  que  seu  capitão  Baltazar  tinha  mandado;  umas  pílulas que seu capitão Negrão aprontara: e, por derradeiro, quando entrou em ficar cada vez  mais  ruim,  um  vinho  muito  escuro  e  muito  amargo  que  seu  doutor  Chiquinho  receitou  na  véspera. E ficou sempre daquele jeito!

A  tarde  vinha  caindo,  serena  e  quieta,  ver  o  sono  duma  criancinha  de  berço.  O  Nicolau encostou-se à janela do quarto, que fazia esguelha pra mata do Pio, nas terras de São  Domingos, e pôs-se a olhar um montão de nuvens cor de ouro vivo que foi formando castelo  em riba das árvores. Largava de olhar pra aquelas nuvens doiradas, olhava pro sol vermelho  que ia afundando na lonjura dos morros: e de repente viu que lhe aparecia (não foi nada mais  que uma visão)  a  Lidubina entre as nuvens  e o sol no espaço livre, linda como os amores,  vestida de branco, de chinelinhas cor de rosa, c’uma flor avermelhada no cabelo e os olhos  mostrando amor.

Se ela  estivesse morrendo? Aproximou-se do catre: a suspiração chegava de longe  em longe, o sembrante parecia sumir cada vez mais, o nariz ficava cada vez mais fino e os  olhos cada vez mais amagoados. Foi aí que ele mandou buscar o picuá, pediu que todos se  retirassem, porque ninguém não podia ver o remédio que a moça tinha de beber, ele mesmo  juntou uma folharada, botou numa chocolateira aquela folharada toda, e fez um chá que foi  dando pra doente, de instantinho a instantinho.

Por volta das oito da noite a Lidubina puxou uma suspiração bem do fundo do peito,  com todo o sossego, pendeu a cabeça pra um travesseiro menor e mais baixo, e principiou a  dormir descansada que nem uma pomba rola. O Zeca Lorindo, de tresnoitado que andava, e  de alegre que se viu, logo teve jeito de conciliar o sono perdido: e o Nicolau ficou fazendo  quarto pra Lidubina, sozinho de tudo, lembrando coisas de rir e coisas de chorar, na viração  do passado...

A  primeira  notícia  que  o  Zeca  Lorindo  teve,  na  meia  sombra  do  sono  ainda  ao  romper da manhã, foi o próprio chamador do Nicolau das Brotas quem lhe deu:

− A sua dona sarou duma vez, patrão.

Ele não teve mão em si, correu como um louco pro quarto:

− Morreu?

− Não, seu Zeca, foi roubada.

− Como é que foi roubada, seu maldiçoado do inferno?

− Foi bem: aquele Nicolau já me contaram que é o Nicolau das Brotas: vancê não  pôs reparo no home? Foi a soneira braba que voltou, despois de tanto tempo: na certeza inté  levou nhá Lidubina carregada.

Um itapicuru passou por cima da casa, fazendo um barulhão desapoderado. O Zeca  Lorindo trouxe pra porta do quintal a espingarda troxada alcançadeira, e disse ûa ameaça:

− Canta, filho do diabo! Canta, que eu te mato e mato por igual aquele desordeiro!

Mas o Nicolau das Brotas aprendeu, na sua vida de monge, o que faz viver e o que  faz morrer, decorou rezas tiranas, tivera caborge e corage: nunca mais o Zeca Lorindo lhe pôs  a vista em riba, porque ele foi pro Guaíra, mais a Lidubina, e só Deus sabe onde é que eles  fizeram  a  arranchação  perigosa,  na  terra  da  bugraria.  Agora,  quando  se  fala  naqueles  dois  sertanistas e se toca no nome do Zeca Lorindo, não falta quem não diga:

− Quem planta na capoeira é como quem lambe osso. Capoeira é sempre capoeira,  não paga o trabalho que dá...


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Nota:
Valdomiro Silveira: "Mucufos" (1894-1905). Versão ortográfica do  apógrafo  de  Carmen  Lydia  de Souza  Dias, in: Alexandre de Oliveira Barbosa: "Edição anotada de Mucufos, coletânea de contos inédita de Valdomiro Silveira", da Universidade de São Paulo, 2007   

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