SONEIRA BRAVA
A Lidubina abriu um chale no
ombro, pegou o chapéu de sol, um que é cor de rosa e tem rendas nas pontas, e saiu. Ventava por
demais, porque vinha chegando mesmo o tempo
dos frios. A Lidubina, toda receosa e vergonhosa, ora punha o chapéu de
sol por diante, ora segurava co’as duas
mãos os lados da saia: nesses momentos o chale dava de cair, e ela não sabia ao certo se havia de atender ao chale
ou à saia.
Era hora de jantar de cedo.
Adonde então se atirava tão linda criatura? Adonde! Pois adonde podia ser? Lá pros lados das pedras,
por ter notícia que seu galheiro, o Nicolau das
Brotas, andava fazendo pé de alferes a uma tal abobrinha, rapariga de
compridas histórias que estava na ponta,
por ser nova e conhecer feitiçarias, segundo metade do povo afiançava. A
Lidubina era moça
do Nicolau, toda
a gente não
desconhecia: como então
o Nicolau tinha
corage de fazer uma beleza assim de chá de canela?
Levava pressa, ia quase correndo.
A umas par de mulheres que encontrava na rua e
lhe davam adeus, só respondia à saudação e pedia pelo amor de Deus que não a estrovassem, que
não a estrovassem.
As mulheres ficavam
c’a pedra no
sapato, pois bicho
pra ter curiosiadade
como mulher até
não há na
terra –, e principiavam a
reparar no rumo
que a Lidubina tomava. E de pouco em pouco foi-se
engrossando o terno das tais, até o ponto de
serem umas quinze, que também ganhavam a direção das pedras.
A viage era curta,
a Lidubina chegou logo. Fez
chão na linha da mandingueira.
A chamada Abobrinha
morava no alto,
na última casa,
onde esteve, não
faz muito tempo,
a Cesara. Era
dia de domingo,
e o povo
estava duro pelo
caminho. A Lidubina
não punha atenção no povo, nem olhava pra trás: ia só
c’os olhos acesos naquela casa amaldiçoada. Foi
chegar, meu dito, meu feito! – e ver já o Nicolau sentado num tamborete
a par c’a tiriba, numa prosa cerrada.
A
Lidubina apareceu à
porta, salvou a
todos, com toda
a cortesia, porque
ela é mesmo ûa morena de sola e vira pra essas
coisas, e pediu um particular ao Nicolau. O Nicolau não tinha altura, de tão passado; não achou
resposta pra dar à companheira: só sim saiu pra
um lado, conversou
lá suas conversas
c’a Lidubina, e
voltou pra campear
o chapéu na
varanda. Trouxe o
chapéu, despidiu-se dos
mais, e garrou
estrada junto c’a
Lidubina. A Abobrinha nem piou.
Quando chegaram ao rancho, a
Lidubina falou estas poucas palavras ao Nicolau:
Nicolau, você
teve muita moda
pra me seduzir
e me deixar
neste estado; agora
esquece de mim
p’r amór de
as outras... Apesar
de tudo eu
não me queixo:
se eu tivesse
cabeça, não tinha
largado meus parentes
por seu respeito.
E agora, que
vejo que você
não soube reconhecer o que eu
fiz, vou-me embora, mas porém não quero sair escondida e fugida como saí da casa da minha gente.
Como o chale se lhe via mesmo no
ombro, afastou-se, depois de encostar à parede da frente o chapéu de sol, que era um presente
do Nicolau. Afastou-se, afastou-se, desapareceu
na volta da rua.
O
Nicolau das brotas
murchou de repente:
ficou, mal comparando,
que nem boi
alongado no ermo, assim que o sol vai entrando.
É
de rezão falarem
que a gente
só sabe o
bem que possui,
depois que o
perde: o Nicolau não gostou nem um pouco daquele abandono.
Espairecia a princípio, rindo e folgando co’a Abobrinha, que era uma formiga
saracutinga, de tão alegre e buliçosa; divertia-se, aos domingos e dias santos, em ir a um pavoeiro
na mata do Bernardino, escuitando a berraria dos pavões e espichando-lhes fumaça, a todo o
risco; trabalhador como sempre foi, de dia andava esquecido no serviço de oficina de carpinteiro,
e estava tudo direito: mas assim que a barra do
dia começava a sumir no encontro do céu co’a cabeça dos espigões, o
pobre vinha sentar-se à porta da casa,
matutando nas suas tristuras, encarangado como se sofresse grande frio.
Já se
ia arrependendo das
asneiras que tinha
feito p’r amór
de a Abobrinha:
um homem que tem sua companhia e
sente sangue aqui, não se enleva sem mais aquela c’uma ventena
do facho. Mas
bem se diz
que se eu
soubesse sempre anda
atrás: agora, que
a Lidubina cansara
de aturar semelhante
traidoria e o
deixara duma vez,
pegou às voltas
c’o remorso. Remorso fora do
tempo, vindo tarde e a más horas, que só lhe servia pra aumentar mais a dor da separação.
Largou a abobrinha de cabo a
rasto: arre! Que pra fazer figura triste não é que um filho
de Deus vem ao
mundo! Largou-a, fechou-se
consigo mesmo, não
campeou mais conversa nem
treta com pessoa
alguma, senão pra
receber ou entregar
qualquer serviço, agarrou-se c’o Jesus Menino e c’a Virge
Maria, dos quais era muito devoto, rogando-lhes, de quanto jeito havia, fizessem que a Lidubina voltasse. Mal e mal, sempre escrevia coisinha: rabiscou umas orações esquisitas, que
aprendera com seu Galdino, por esta maneira: − Senhor Jesus Menino, determinai que aquela ingrata
volte pra minha companhia! Santa Virge Maria,
intercedei junto de
Deus por mim!
– este peditório
era feito três
vezes em seguida,
c’as mesmas palavras. Outro papel
trazia a promessa de dar duas velas pro altar do Senhor Menino e uma reza da Virge, se lhe saísse o desejo
realizado.
Transformou-se, o Nicolau das
brotas: de muita graxa que tinha, ficou chupado das bochechas e do cangote, desmereceu dum modo
que nem que tivesse estado doente. Chegou a
ponto, uma vez, de passar certa mulher por perto dele e dizer: − seu
Nicolau, não foi à toa que eu lhe falei
que não mexesse tanto pra aquelas bibocas da Guamixama, que há lugares ali
bem maleiteiros. O resulttado mecê ‘tá
vendo! – ele ameaçou um sorriso, como
resposta, mas o sorriso saiu amarelo e
desconsolado. E a tal dona deu de contar a quanta gente havia que, se o Nicolau não bebesse raiz de tomba ou de
maricá e não comesse uns dois quilos de sulfato, rodava pela água abaixo.
O
freguês principiou a
rondar as vizinhanças
da Lidubina, dia e noite:
disfarçava como quem estivesse a
procurar um morador da rua, um morador que sumira por tal forma que nunca mais podia ser encontrado. Ora,
nesse pedaço de tempo o Zeca Lorindo, moço de
peito e presença, enfeitiçou-se pela cabocla. O Zeca Lorindo é um
sujeito que não tem medo de tomar um
compromisso, por maior que seja, porque sabe que se desenleia com
facilidade. Tirar a Lidubina era uma
coisa, a bem dizer, impossível, porque ela não havia de querer outra vez cair no mesmo laço; atirou o anzol, mas a
isca voltou sem nenhum belisco; botou contas à
vida, remexeu na cabeça, pôs o dedo no queixo, um dia, pensou, pensou –
e assentou de casar. Falassem, dissessem
dele o diabo, nada lhe importariam as prosas do mundo, pois não vivia almoçando
e jantando na
mesa dos mais.
Afinal... E aquilo
ficou mesmo, lá
na cachola do
manata, firme que nem rocha de pedra.
Se bonito cuidou, mais bonito
contou. A vila inteira foi logo senhora da notícia que Zeca Lorindo ia mandar seo promotor notar
uma carta pedindo casamento pra Lidubina. Uns
intentavam trelar co’a
nova, cortar na
casaca do outro
murmurando: e na
horinha barganhavam de tenção, só
de se lembrarem que o tal, sabendo dos cortes, não cochilaria pra se
desobrigar. Paga a
pena ser moço
de respeito assim!
Até essas velhas
gaiteiras, que só
vivem de casa em casa bulindo c’os segredos alheios, não tinham ânimo de
se ocuparem do nome dele!
Assim que
chegou aos ouvidos
dos pais da
lidunbina aquele rumor,
foi um festão
pros pobres dos velhos: achavam que o Zeca Lorindo estava nas condições
de fazer uma linda vida co’a
rapariga, arranjaram seus
planos, trataram de
ajuntar umas economias
pro divertimento, puseram-se em
dia c’os serviços atrasados, afim de os serviços renderem algum pouco, e esperaram a carta. A carta não
tardou: receberam-na um dia de sábado, ali pela boca da noite, levada pelo pai do dito moço,
escrita c’ûa mão de pena boa que dava gosto. Só a Lidubina
mesmo era quem
lia por cima,
de todos da
familiage: foi ela,
pois, quem leu
as letras. No fim os velhos
falaram que ali a pessoa mais interessada acabara de ver o pedido; por isso que respondesse bocalmente. A Lidubina foi
até a varanda, apegou-se um instante co’a Senhora Aparecida, e veio c’o sim na
ponta dos beiços.
Houve um barulhão na vila. A mó’
que sempre que ûa moça vai casar todas as outras têm um defeito pra pôr na noiva: assim
aconteceu, inda mais com quem! – c’uma coitada que tinha
telhado de vidro!
O guaiú foi
bater nas orelhas
do Nicolau das
Brotas; não havia
remédio como não batesse; ele ficou pras pontas dos dedos e, se se
sentia amagoado, mais amagoado se sentiu
daí por diante, quase sem juízo, a falar verdade. E uma vez se queixava de a antiga companheira o largar e se amarrar
c’um estranho, houve um destrocido que se saiu
com esta:
− O que, Nicolau? Você pensava
antão que a Lidubina é brejo pra porco fuçar?
Esteve em
ares de enlouquecer,
o Nicolau. Não
enlouqueceu, de certo,
porque um cristão meio avariado não tem realmente
grandes esp’ritos pra perder c’os baques que a sorte lhe dá. Apenas, que depois do aludido casamento,
garrou a viver uma vida diferente do resto
dos homens: não queria mais saber de gente de saia, derretia-se meses e
meses pelas matas e pelas furnas,
rebuscando plantas e raízes de medicina − cipó-sumo, sussuauá,
sessenta-feridas, cipó-caboclo,
perogaia, japecangas – e virou um curador de primeira qualidade, os caçadores muitas vezes topavam na ribanceira do rio
c’um vulto arcado pro chão, segurando uma faca e algum talo de erva ou algum ramo de
trepadeira; aravam pra fazer que ele provasse o virado da pândega ou molhasse a garganta co’aquela
agüinha que gato não bebe: tempo escusado,
porque o Nicolau só se enchia de coqueiros e mel que ele mesmo derrubava
ou furava, tudo mexido e comido no
guatapé, e nada mais punha na boca.
Recomendava a
banha da capivara
pra curar essas
roncuras de constipado
meio estuporado; o óleo do cacho
da anta pro reumatismo; a gordura do cuatí pra fazer crescer o cabelo
e curar as
mataduras dos animais;
a enxúndia do
jacu pra botar
nos ouvidos, como
remédio pra surdez; a carne do pica-pau chanchã pros mudos mamparem e
recuperarem a voz ou aprenderem
a falar; o
moquém de bugio
ou de mono,
como fortalecente, por
serem de muita
sustância; os xarques
da onça pintada
ou saçuarana, pra
esses caroços que
dão no pescoço da gente, escrófulas: e um chuveiro
de graxas e banhas e óleos e carnes do sertão pra diversos incômodos.
Ganhou fama.
Vinha povo de
longe, atraído pelo
nome do Nicolau,
buscar umas garrafadas
que ele aprontava
e eram danadas
pras boubas; um vinho macota
de bom pra
desinchar as pernas de quem andava com hidropisia; um xarope que era um
porrete pra acabar co’a catarreira dessa
doença que tem aparecido, a influência: e, fosse porque mais vale a fé que o pau da barca ou porque as drogas fossem
virtuosas, todos se diziam sastifeitos co’elas.
Despois, o Nicolau
não especulava co’as
curas e c’os
remédios: isso inda
mais servia pra
aumentar o merecimento do curador.
Um dia de sábado, remexendo o
Nicolau uma capoeirinha rala que tem ali perto da Maria Alves, em procura de uma tal planta
chamada traquá, que dizem ser truco-fecha pros
hernes, ouviu gritarem-lhe o nome umas par de vezes, com teima e com ânsia.
Virou-se no rumo do chamado, abaixou-se um
pouco rente c’o chão, pras folhas das
arvinhas não lhe estrovarem os ouvidos, e percebeu que a voz rompia da
estrada-mestra da fazenda, mais
ou menos por
ali assim pelo
café novo do
Batista Severo. Saiu
da capoeira, c’um
dilúvio de ramos
debaixo do braço
direito e a
faca na mão
esquerda, apareceu na
estrada. Nem bem
botou a cara
no limpo, já
um cavaleiro correu
de longe os
garfos nas paletas da mula saina, em que estava montado,
e aproximou-se à toda.
− Seu Nicolau, foi logo falando o
supradito cavaleiro: venha ra vila acudir ûa mulher que ‘tá pra uma dependura, se Deus abaixo de Deus vancê não lhe der alguma volta!
− Mas quem é? − perguntou o
Nicolau.
− Home, eu não sei: venho de
favor, não indaguei de nada.
− Mas adonde mora a doente?
− Ela assiste ali na virada da
Vila Velha pra Vila Nova.
O Nicolau matutou um instante.
Não se recordava de ninguém nas condições de se
ver doente morre-não-morre, pra
aqueles lados, duma
hora pra outra.
E o recadeiro
foi-lhe pedindo, já no
sufragante, lhe montasse à garupa da mula, que era um raio, e daí a
coisinha estariam chegando.
O
curandeiro fez um
maço da ramalhada,
que entafulhou num
saco de picuá:
amarraram-no ao rabicho da mula, o curandeiro largou um pulo, sentou na
garupa, e a saina descanhotou-se numa
retirada de mil demônios, ligeira que nem tinha altura.
Daquele lugar
até a vila
tinha quindau, não
há dúvida, mas
a pressa encurtou
a distância: não
gastaram mais que
uma hora pequena
pra chegar. Logo
na porta da
casa o Nicolau teve um estremeção, porque encontrou
um homem que lhe era muito conhecido, mas
muito mesmo: o Zeca Lorindo, sem mais um ponto, sem mais uma linha. E
pegou a pensar e a estudar lá consigo:
− Ora quer ver que a Lidubina é
que ‘tá nas últimas, ora quer ver?
Aquela idéia
fazia-lhe uma dor
endemoninhada: a cabo
de tantos dias,
de tantos meses, de tantos anos, vir topar c’a dona do
seu coração no fundo duma cama, vai-não-vai!
Isso era um desespero! Mas no mesmo momento dava de cuidar outras
coisas: qual! Havia de ser alguma
conhecida, alguma parenta
do Zeca Lorindo.
A Lidubina, essa
inda há pouco
tempo ele tinha
sabido que estava
residindo pros lados
do Piraju, onde
o Zeca abrira
um cultivado, na fazenda do
Douradão.
Também, graças
a Deus, ninguém
o conheceu na
casa. Foi entrando,
a pedido do
próprio Zeca Lorindo, pela morada a dentro, até o quarto onde se achava
a doente, quase já com pérca
de fala, segundo
logo lhe contaram.
O quarto era
pequetito, mal apenas
tinha cabimento pra
um catre novo,
onde a Lidubina
(era ela, era
a Lidubina!) padecia
em demasiado há
quase um mês.
Ele vizinhou c’o
dito catre, olhou
pra moça, que a mó’
que estava meia
fraca do juízo,
de tamanho febrão
que andava tendo,
e ficou distraído
uma temporada, c’os olhos
pregados naquele sembrante, sumido e cheio de tristeza.
Tristeza, então,
foi a do Nicolau
das Brotas nessa
horinha! Mas não
disse coisa alguma: segurou a mão da outra, estendeu-a
numa das suas, pra ver o sangue que a moça inda
tinha no corpo, como despois explicou, apalpou-lhe o pulso, que estava
longe como aquela serra da fartura, foi
o que despois disse: e abriu-lhe a boca de vagarzinho, pra ver a língua, que estava seca e branca que nem o pedregulho
do palmital, contou também despois.
E falou bem compassado, pra
ninguém não perceber o sofrimento que ele sofria:
−
Acho que esta
dona ‘tá c’uma
febre das fortes
e c’um pleuriz
daqueles mais apertados. O que é que ela tem bebido?
A dona tinha bebido muita coisa:
um pozinho claro que seu Maneco Alvim perparou,
pra misturar no café; um
remédio de vidro
que seu capitão
Baltazar tinha mandado;
umas pílulas que seu capitão
Negrão aprontara: e, por derradeiro, quando entrou em ficar cada vez mais
ruim, um vinho
muito escuro e
muito amargo que
seu doutor Chiquinho
receitou na véspera. E ficou sempre daquele jeito!
A
tarde vinha caindo,
serena e quieta,
ver o sono
duma criancinha de
berço. O Nicolau encostou-se à janela do quarto, que
fazia esguelha pra mata do Pio, nas terras de São Domingos, e pôs-se a olhar um montão de
nuvens cor de ouro vivo que foi formando castelo em riba das árvores. Largava de olhar pra
aquelas nuvens doiradas, olhava pro sol vermelho que ia afundando na lonjura dos morros: e de
repente viu que lhe aparecia (não foi nada mais
que uma visão) a Lidubina entre as nuvens e o sol no espaço livre, linda como os
amores, vestida de branco, de
chinelinhas cor de rosa, c’uma flor avermelhada no cabelo e os olhos mostrando amor.
Se ela estivesse morrendo? Aproximou-se do catre: a
suspiração chegava de longe em longe, o
sembrante parecia sumir cada vez mais, o nariz ficava cada vez mais fino e
os olhos cada vez mais amagoados. Foi aí
que ele mandou buscar o picuá, pediu que todos se retirassem, porque ninguém não podia ver o
remédio que a moça tinha de beber, ele mesmo
juntou uma folharada, botou numa chocolateira aquela folharada toda, e
fez um chá que foi dando pra doente, de
instantinho a instantinho.
Por volta das oito da noite a
Lidubina puxou uma suspiração bem do fundo do peito, com todo o sossego, pendeu a cabeça pra um
travesseiro menor e mais baixo, e principiou a
dormir descansada que nem uma pomba rola. O Zeca Lorindo, de tresnoitado
que andava, e de alegre que se viu, logo
teve jeito de conciliar o sono perdido: e o Nicolau ficou fazendo quarto pra Lidubina, sozinho de tudo,
lembrando coisas de rir e coisas de chorar, na viração do passado...
A
primeira notícia que
o Zeca Lorindo
teve, na meia
sombra do sono
ainda ao romper da manhã, foi o próprio chamador do
Nicolau das Brotas quem lhe deu:
− A sua dona sarou duma vez,
patrão.
Ele não teve mão em si, correu
como um louco pro quarto:
− Morreu?
− Não, seu Zeca, foi roubada.
− Como é que foi roubada, seu
maldiçoado do inferno?
− Foi bem: aquele Nicolau já me
contaram que é o Nicolau das Brotas: vancê não
pôs reparo no home? Foi a soneira braba que voltou, despois de tanto
tempo: na certeza inté levou nhá
Lidubina carregada.
Um itapicuru passou por cima da
casa, fazendo um barulhão desapoderado. O Zeca
Lorindo trouxe pra porta do quintal a espingarda troxada alcançadeira, e
disse ûa ameaça:
− Canta, filho do diabo! Canta,
que eu te mato e mato por igual aquele desordeiro!
Mas o Nicolau das Brotas
aprendeu, na sua vida de monge, o que faz viver e o que faz morrer, decorou rezas tiranas, tivera
caborge e corage: nunca mais o Zeca Lorindo lhe pôs a vista em riba, porque ele foi pro Guaíra,
mais a Lidubina, e só Deus sabe onde é que eles
fizeram a arranchação
perigosa, na terra
da bugraria. Agora,
quando se fala
naqueles dois sertanistas e se toca no nome do Zeca
Lorindo, não falta quem não diga:
− Quem planta na capoeira é como
quem lambe osso. Capoeira é sempre capoeira,
não paga o trabalho que dá...
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Nota:
Valdomiro Silveira: "Mucufos" (1894-1905). Versão ortográfica do apógrafo de Carmen Lydia de Souza Dias, in: Alexandre de Oliveira Barbosa: "Edição anotada de Mucufos, coletânea de contos inédita de Valdomiro Silveira", da Universidade de São Paulo, 2007
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