CAPIANGO
Nhá Tereza
apareceu indignada, com os olhos
a afuzilarem vivíssimas
cintilas de fúria,
em casa de
seo Virgínio, delegado
de polícia que
estava de jurisdução.
Foi entrar à
porta, e desfiar logo um rosário de queixas, a qual mais entremeada de
vocativos injuriosos e praguentos: que
de há muito lhe andavam rondando o casinholo, gente que ela não conhecia, nem atinava com quem fosse, tal lhe faziam de
pura malvadez, porque ela, a bem dizer, nada
tinha que tentasse
aos outros –
era uma pobre
coitada sem eira,
nem beira, nem
ramo de figueira, como lá diz o outro.
A cada objurgação mais forte,
dirigida ao gatuno ou gatunos ignorados, oscilava-lhe maciamente
no pescoço, dir-se-ia
congestionado de ira,
um formidável papo
de corda que
bojava logo ao de sobre o cabeção da camisa, forcejando por patentear-se
à luz meridiana. As mãos, essas
já não paravam
mais, iam e
vinham em paralelas
da direita para
a esquerda, paralelas que ora minguavam, chegando quase à
distância de um gêmeo, ora se faziam largas,
tomando a extensão do corpo gordanchudo da oradora.
Seo Virgínio, que, por ser o dia
de festa e ele capitão da guarda nacional, vestia o uniforme
respectivo, no qual
estava, pode-se dizer
letralmente sufocado, e
não sabia o
que fazer do rico boné, seo
Virgínio já se via desanimado ao rumor de tamanho falario, chegando a pedir a nhá Tereza dissesse de uma vez ao
que vinha, o que lhe haviam furtado, quem fora o autor da tramóia, e tudo o mais que é mister
nestes autos. Nhá Tereza engrolou novos xingos,
agora mais puxados
à sustância, acabando
por dizer que
lhe haviam passado
os quatro soldados
e um sargento
em meia dúzia
de frangos, um
patureba, um casal
de pombos camboteiros, cinco ovos de perua,
de um jacá no meio do galinheiro.
Impava deveras, nhá Tereza,
quando concluía a lista, mais de zanga que de cansaço – pois de pequena se afizera a esgoelar por
qualquer dá-cá-aquela-palha, e bastas camarinhas de suor lhe escorriam da testa, juntando-se a
outros que previamente haviam brotado das faces, as quais, todas reunidas e quiçá refrescadas
por uma senhora ventania que passava, fluíam na
direitura do queixo, como a buscarem o rumo do papo, que, de certo,
iriam refrigerar. E seo Virgínio, que
tirara por instantes o boné e o pusera em cima da mesa de perova, depois de
o haver passeado de norte a sul, de uma
fonte a outra, da coroa da cabeça ao toutiço, olhava para a querelante com uns olhos de todo em
todo abertos, ou pela exigüidade do delito, ou do temor que sentia de ouvir em segunda edição,
mais incorreta e pavorosamente aumentada, a
narrativa do caso,
inclusive os doestos
e os baldões.
Chamou então a
ordenança e mandou
buscar a força, recomendando a nhá Tereza retirasse para casa, onde não
devia bulir em nada, para não estorvar a
vistoria da justiça. (Falou assim.)
Nhá Tereza
saiu de feito,
gungunando ainda no
fundo da garganta,
como se o
silêncio fosse alguma coisa que lhe fizesse espantoso mal: e assim que
se achou na cancha e atirou para
a cama o chale
que a apoquentava,
de pesado e
quente, abriu-se em
frases consoladas diante da
filha, a Quiterinha, mostrando-se assaz confiante na boa diligência do seo capitão Virgínio, um homem de ponderação,
que sabia receber os precisados de auxílio da
autoridade. A Quiterinha escutava-a de olhos baixos: e em verdade se
diga que as palavras da mãe lhe entravam
por um ouvido e saíam por outro.
Ninguém será
capaz de saber
porque é que
a tal Quiterinha
dava tão grande
sorte nesta Casa
Branca cheia de
moças bonitas, quando
não era lá
essas coisas de
formosura e tinha as feições meio caídas para o queixo,
sob o qual se viam duas papadas vermelhas de
uma gordura entretida a fartas refeições de feijão guando, angu de fubá
grosso e carne de vaca mal assada.
Ninguém será capaz, a não ser que lhe tenha reparado, em tempo oportuno, em
as ancas
roliças e bamboleantes
e no gracioso
andar, que mais
as faziam tremer
com arte e
segurança. Dava sorte,
a Quiterinha, cobiçavam-na
uns tantos cata-fechos,
que gandaiavam dias áfios rebuscando jeito de lhe falarem,
mas o que é certo é que ela não deixava de ser bem esperta e continha-os à lonjura, insaciados e
sempre desejosos. Destes se diz isto: e outro tanto não se podia dizer do Chico Marceneiro...
Nhá Tereza
compôs a casa
por dentro, mandou
à filha que
se aprontasse, não
na fossem ver esses homens
desarranjada assim, puxou uma mesinha de costura para o meio da varanda, onde pudessem fazer as escritas
precisas, e ficou à espera.
Não esperou muito tempo. Daí a
nada chegava seo Virgínio, cada vez mais sumido
nas suas roupas afogantes, ladeado de um meirinho e seguido de seis
praças. Depois de pedida a necessária
vênia, com o máximo respeito, dirigiram-se todos ao quintal onde se dera o
furto, durante a
noite, segundo a
exposição da queixosa,
que ainda agora
se desentranhava no
reconto do caso, já outra vez tomada de furor mal contido.
Examinado o quintal, verificou-se
que havia passadas recentes, de pés grandes, desde a cerca pauapicada até uns canteiros de grama
que morriam debaixo da janela da Quiterinha;
naquela direção, realmente,
viam-se pegadas humanas,
imprimidas no chão,
ao que parecia
pelo tamanho, por
gente macha. No
galinheiro, porém, nada
se observava extraordinário, fazendo-se exceção de um jacá de galinha
botadeira atirado abaixo, naquele flagrante, por um galo
brigador que se
aterrorizara à chegada
do delegado, do
meirinho, e dos
guardas. Reparava-se, mais,
que um cateto
manso, que se
aquentava ao sol,
também não ficou
satisfeito com aquela
invasão, e foi-se
deitar mais longe,
rente de umas
taiobas, à beira
da fonte.
Seo Virgínio, com quanto zelo
deve ter uma autoridade, devassou todos os recantos, e nada encontrou anormal, fazendo ver a nhá
Tereza que, se não se notassem aqueles sinais de pés
até os canteiros
de grama, poderia
jurar-se que no
quintal não entrara
ninguém, muito menos no galinheiro. E nhá Tereza tornou-lhe:
− Qual, seo capitão! Isto é
capiango que sabe fazer as coisas bem feitas, que conhece muito a minha casa, na certeza.
Como quer, porém, que ela fosse
olhar um cesto velho, ao canto do galinheiro, qual não foi o seu espanto ao achar ali os ovos de
perua que cuidava terem sido tirados! E por ser
justamente à hora do sol ficar mais bravo, a que as criações iam beber,
emboladas, à fonte, nhá Tereza
descobriu, com alta admiração, a meia dúzia de frangos transviados, e o
patureba, e o casal de pombos
camboteiros. Pediu desculpas a seo Virgínio, muito avexada, dobrando as pontas do lenço entre as duas mãos convulsas.
Seo Virgínio, entretanto, que
atentara na Quiterinha, vira-lhe os olhos afundados nas órbitas,
as feições meio
pálidas e chupadas
de noites mal
dormidas, e, principalmente, a
turvação dos modos, respondeu a nhá Tereza, saindo, entre risonho e
sentencioso:
− Ora, nhá Tereza, afinal o que
lhe furtaram, o que lhe poderiam ter furtado, não hai justiça na terra que lhe o possa dar outra
vez!
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Nota:
Valdomiro Silveira: "Mucufos" (1894-1905). Versão ortográfica do apógrafo de Carmen Lydia de Souza Dias, in: Alexandre de Oliveira Barbosa: "Edição anotada de Mucufos, coletânea de contos inédita de Valdomiro Silveira", da Universidade de São Paulo, 2007
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