quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Valdomiro Silveira: "Capiango"

CAPIANGO
  
Nhá  Tereza  apareceu  indignada,  com  os  olhos  a  afuzilarem  vivíssimas  cintilas  de  fúria,  em  casa  de  seo  Virgínio,  delegado  de  polícia  que  estava  de  jurisdução.  Foi  entrar  à  porta, e desfiar logo um rosário de queixas, a qual mais entremeada de vocativos injuriosos e  praguentos: que de há muito lhe andavam rondando o casinholo, gente que ela não conhecia,  nem atinava com quem fosse, tal lhe faziam de pura malvadez, porque ela, a bem dizer, nada  tinha  que  tentasse  aos  outros  –  era  uma  pobre  coitada  sem  eira,  nem  beira,  nem  ramo  de  figueira, como lá diz o outro.

A cada objurgação mais forte, dirigida ao gatuno ou gatunos ignorados, oscilava-lhe  maciamente  no  pescoço,  dir-se-ia  congestionado  de  ira,  um  formidável  papo  de  corda  que  bojava logo ao de sobre o cabeção da camisa, forcejando por patentear-se à luz meridiana. As  mãos,  essas  já  não  paravam  mais,  iam  e  vinham  em  paralelas  da  direita  para  a  esquerda,  paralelas que ora minguavam, chegando quase à distância de um gêmeo, ora se faziam largas,  tomando a extensão do corpo gordanchudo da oradora.

Seo Virgínio, que, por ser o dia de festa e ele capitão da guarda nacional, vestia o  uniforme  respectivo,  no  qual  estava,  pode-se  dizer  letralmente  sufocado,  e  não  sabia  o  que  fazer do rico boné, seo Virgínio já se via desanimado ao rumor de tamanho falario, chegando  a pedir a nhá Tereza dissesse de uma vez ao que vinha, o que lhe haviam furtado, quem fora o  autor da tramóia, e tudo o mais que é mister nestes autos. Nhá Tereza engrolou novos xingos,  agora  mais  puxados  à  sustância,  acabando  por  dizer  que  lhe  haviam  passado  os  quatro  soldados  e  um  sargento  em  meia  dúzia  de  frangos,  um  patureba,  um  casal  de  pombos camboteiros, cinco ovos de perua, de um jacá no meio do galinheiro.

Impava deveras, nhá Tereza, quando concluía a lista, mais de zanga que de cansaço –  pois de pequena se afizera a esgoelar por qualquer dá-cá-aquela-palha, e bastas camarinhas de  suor lhe escorriam da testa, juntando-se a outros que previamente haviam brotado das faces,  as quais, todas reunidas e quiçá refrescadas por uma senhora ventania que passava, fluíam na  direitura do queixo, como a buscarem o rumo do papo, que, de certo, iriam refrigerar. E seo  Virgínio, que tirara por instantes o boné e o pusera em cima da mesa de perova, depois de o  haver passeado de norte a sul, de uma fonte a outra, da coroa da cabeça ao toutiço, olhava  para a querelante com uns olhos de todo em todo abertos, ou pela exigüidade do delito, ou do  temor que sentia de ouvir em segunda edição, mais incorreta e pavorosamente aumentada, a  narrativa  do  caso,  inclusive  os  doestos  e  os  baldões.  Chamou  então  a  ordenança  e  mandou  buscar a força, recomendando a nhá Tereza retirasse para casa, onde não devia bulir em nada,  para não estorvar a vistoria da justiça. (Falou assim.)

Nhá  Tereza  saiu  de  feito,  gungunando  ainda  no  fundo  da  garganta,  como  se  o  silêncio fosse alguma coisa que lhe fizesse espantoso mal: e assim que se achou na cancha e  atirou  para  a  cama  o  chale  que  a  apoquentava,  de  pesado  e  quente,  abriu-se  em  frases  consoladas diante da filha, a Quiterinha, mostrando-se assaz confiante na boa diligência do  seo capitão Virgínio, um homem de ponderação, que sabia receber os precisados de auxílio da  autoridade. A Quiterinha escutava-a de olhos baixos: e em verdade se diga que as palavras da  mãe lhe entravam por um ouvido e saíam por outro.

Ninguém  será  capaz  de  saber  porque  é  que  a  tal  Quiterinha  dava  tão  grande  sorte  nesta  Casa  Branca  cheia  de  moças  bonitas,  quando  não  era  lá  essas  coisas  de  formosura  e  tinha as feições meio caídas para o queixo, sob o qual se viam duas papadas vermelhas de  uma gordura entretida a fartas refeições de feijão guando, angu de fubá grosso e carne de vaca  mal assada. Ninguém será capaz, a não ser que lhe tenha reparado, em tempo oportuno, em as  ancas  roliças  e  bamboleantes  e  no  gracioso  andar,  que  mais  as  faziam  tremer  com  arte  e  segurança.  Dava  sorte,  a  Quiterinha,  cobiçavam-na  uns  tantos  cata-fechos,  que  gandaiavam  dias áfios rebuscando jeito de lhe falarem, mas o que é certo é que ela não deixava de ser bem  esperta e continha-os à lonjura, insaciados e sempre desejosos. Destes se diz isto: e outro tanto  não se podia dizer do Chico Marceneiro...

Nhá  Tereza  compôs  a  casa  por  dentro,  mandou  à  filha  que  se  aprontasse,  não  na  fossem ver esses homens desarranjada assim, puxou uma mesinha de costura para o meio da  varanda, onde pudessem fazer as escritas precisas, e ficou à espera.

Não esperou muito tempo. Daí a nada chegava seo Virgínio, cada vez mais sumido  nas suas roupas afogantes, ladeado de um meirinho e seguido de seis praças. Depois de pedida  a necessária vênia, com o máximo respeito, dirigiram-se todos ao quintal onde se dera o furto,  durante  a  noite,  segundo  a  exposição  da  queixosa,  que  ainda  agora  se  desentranhava  no  reconto do caso, já outra vez tomada de furor mal contido.

Examinado o quintal, verificou-se que havia passadas recentes, de pés grandes, desde  a cerca pauapicada até uns canteiros de grama que morriam debaixo da janela da Quiterinha;  naquela  direção,  realmente,  viam-se  pegadas  humanas,  imprimidas  no  chão,  ao  que  parecia  pelo  tamanho,  por  gente  macha.  No  galinheiro,  porém,  nada  se  observava  extraordinário,  fazendo-se exceção de um jacá de galinha botadeira atirado abaixo, naquele flagrante, por um  galo  brigador  que  se  aterrorizara  à  chegada  do  delegado,  do  meirinho,  e  dos  guardas.  Reparava-se,  mais,  que  um  cateto  manso,  que  se  aquentava  ao  sol,  também  não  ficou  satisfeito  com  aquela  invasão,  e  foi-se  deitar  mais  longe,  rente  de  umas  taiobas,  à  beira  da  fonte.

Seo Virgínio, com quanto zelo deve ter uma autoridade, devassou todos os recantos,  e nada encontrou anormal, fazendo ver a nhá Tereza que, se não se notassem aqueles sinais de  pés  até  os  canteiros  de  grama,  poderia  jurar-se  que  no  quintal  não  entrara  ninguém,  muito  menos no galinheiro. E nhá Tereza tornou-lhe:

− Qual, seo capitão! Isto é capiango que sabe fazer as coisas bem feitas, que conhece  muito a minha casa, na certeza.

Como quer, porém, que ela fosse olhar um cesto velho, ao canto do galinheiro, qual  não foi o seu espanto ao achar ali os ovos de perua que cuidava terem sido tirados! E por ser  justamente à hora do sol ficar mais bravo, a que as criações iam beber, emboladas, à fonte,  nhá Tereza descobriu, com alta admiração, a meia dúzia de frangos transviados, e o patureba,  e o casal de pombos camboteiros. Pediu desculpas a seo Virgínio, muito avexada, dobrando as  pontas do lenço entre as duas mãos convulsas.

Seo Virgínio, entretanto, que atentara na Quiterinha, vira-lhe os olhos afundados nas  órbitas,  as  feições  meio  pálidas  e  chupadas  de  noites  mal  dormidas,  e,  principalmente,  a  turvação dos modos, respondeu a nhá Tereza, saindo, entre risonho e sentencioso:

− Ora, nhá Tereza, afinal o que lhe furtaram, o que lhe poderiam ter furtado, não hai  justiça na terra que lhe o possa dar outra vez!

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Nota:
Valdomiro Silveira: "Mucufos" (1894-1905). Versão ortográfica do  apógrafo  de  Carmen  Lydia  de Souza  Dias, in: Alexandre de Oliveira Barbosa: "Edição anotada de Mucufos, coletânea de contos inédita de Valdomiro Silveira", da Universidade de São Paulo, 2007   

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