OS GUAXES
Naquele tempo o laranjal da
Serrinha não estava no ermo, como agora, que não vale uma
pitada de rapé:
tinha bem boa
casa de morada
pra uma banda,
perto d’água, criação
grande, e dali a pedaço, longe umas cem braças da casa, a gente via a
roça de cinco alqueires, onde os milhos
já embonecravam, prometendo uma colheita e tanto. O ano era de fartura, lá isso era, em todas as coisas, até nos
próprios arvoredos do mato.
Foi situante
no lugar um tal Chico
Marzulão, sojeito estimado
e bem visto
dos vizinhos, casado
c’ûa mulher das
melhores deste sertão,
não desfazendo nas
outras. Mas o
merecimento de mais porte que seu Chico tinha, pra dizer uma certeza
certa, era ser pai da moça mais chibante
que se tem conhecido até hoje por aqui em roda. Nhá Lina se chamava aquele
anjo, segundo o
esquisito apelido que
lhe botou o
Reimundo, que lhe queria tanto
como a sombra quer ao sol: porque, afinal, onde é que já se viu heresia
assim, dar nome de morador de céu pra
uma criatura do mundo dos pecadores?
O Reimundo, que sempre foi um
ventana pra vida, trabalhador que nem alimal (com perdão da palavra), ficou embeiçado por ela,
desde que a viu uma tarde, passando por ali e
pedindo por acauso uma xicra de café: ela, nhá Lina, trouxe o café em
pessoa, enquanto a mãe o hospedava,
proseando co’ele, e o Reimundo sentiu-se logo quente das orelhas, e de
olhos turvos como
quem firma a
vista em qualquer
luz muito forte.
Ela era destrocida,
não se avexava a dois arrancos: veio lá de fora,
onde as mulheres são desembaraçadas como quê, e
também entrava direito na conversa, até rindo, quando chegava a casião.
Daí por diante, já se sabe, o
Reimundo ‘garrou por ela um rabicho em demasiado: ê! rabicho! Cortava na subida e na descida, e
dava só aquelas ânsias! Percurou saber quem era a moça, o pai e a mãe da moça: colheu logo que o pai foi sempre dos
que não admitem que ninguém lhe pisasse
no ponche; e a mãe, de respeito a conta inteira. Morava lá pros fundos da Pedra
Branca, e pegou
a tecer pela
Serrinha, fazendo como
quem vinha pra
vila, voltando quaji em seguida, feito um andante de
costume.
A princípio nhá Lina pouca
atenção pôs no rapaz: mourejando todo o santo dia, ela não tinha um pequeno tempo de seu pra bispar
as pessoas que mexiam pela estrada; despois,
por ele às
vezes parar muitas
horas nas proximidades
da casa, c’uma
espingarda troxada a
tiracol, observou que tal parada devera de ser coisa: e, reparando que o
tal senhor dão era bem parecido, pensou
o que pensam
as da mesma
idade que ela,
até agora, e
foi ficando triste,
como reza a
história, até reconhecer
consigo mesma que
se ia tornando
dele de tudo.
Sea Maria Rita, ûa mulher de
muito tino, que sabe da vida de meio mundo pra esses centros de sítios todos, diz que é mesmo deste feitio
que o diabo tenta os outros; ela, que diz, é porque tem expriência, e a expriência é a mestra da
vida: remate que põe sempre em suas prosas, e é
verdade.
O Reimundo achou lado de visitar
a familiage de seu Chico Marzulão, com desculpa
de ofrecer ûas marrãs e
uns capadetes gordos:
chegou à porta,
preguntou pelo velho,
arengaram muitas horas, pechincharam de mais, e por fim tramaram uma
berganha, soltando o Reimundo dois
capadetes por um poldro castanho redomão, que era uma pintura, de estampa linda, cola e crina compostas, tábua do
pescoço e ancas bem feitas, escanelado, ardoroso que nem o demo. No sábado que veio, trouxe os
porcos, tomou um café, mais um isto, mais um
aquilo, e foi-se embora no romper da lua, levando o cavalo adestro, e
sentindo o rumor louco do coração dentro
do peito.
Passados meses, negócio vai,
negócio vem, deu um vomitório pra mãe da namorada, afim
de ver se
saía ou não
o casamento: a
velha remancheou, gaguejou,
fez mesuras, fez
rodeios, e ele contemplou-se despachado. Tem daqui, tem dali, achou de
talho a nhá Lina, um dia, e falou-lhe de
vereda se queria ser a companheira dele: a nhá Lina arrespondeu que sim, que queria, − era só pedir pro pai.
E agora.
Topou no
outro dia com
o Chico perto
do monjolo, trançou
as pernas em
riba do selim, que a égua sabina em que estava montado
era um cachorro, de mansa, e conduziu o
intento da conbersação até fazer o pedido. Seu Chico pode-se dizer que
enfiou. Não: enfiar, não enfiou, mas
embatucou, que é quaji, tanto faz dá na cabeça, como na cabeça dá.
Vira, mexe,
vira, mexe, acabou
seu Chico por
explicar que decerto
não cabia a
proposta, não havia
arrumação, porque a moça era
de santo, por
uma promessa que
ele Marzulão e a dona fizeram,
duma intendência que ela, menina ainda, se achou às portas da morte, por via dum sarampo arrenegado.
E quem é de santo, não hai quem
não saiba, tem sempre desastre na vida, e morre por desastre.
O Reimundo, nem bem seo Chico lhe
deu adeus, chegou os garfos à catirina, e saiu
ventando pela estrada
a fora, c’uma
zunideira nos ouvidos
e um peso
na cabeça, que
até mostravam jeito de doença.
Arrebentou na vila, quando menos esperava, navegou que nem um mantecato pelas ruas, sem apear em parte
alguma, e fez chão pelo escurecer, aborrido, já sem altura.
Mas daí a uns par de dias,
pilhando outra vez a nhá Lina de talho, foi-lhe fazendo suas queixas e exclamações: e a nhá Lina, que
pissuía um coração mole e vivia pendurado dos
olhos dele, jurou,
no fim de
contas, que havia
de ter toda a firmeza;
e pediu-lhe que
a esperasse, com firmeza por
igual, porque a gente deve de acreditar piamente no ditado: não hai bem que sempre ature, nem mal que nunca
se acabe.
Sea Maria Rita não é à toa que dá
a entender que os namorados, quando chegam a
este ponto, vão descendo, descendo, de tentação em tentação, até ficaram
c’um pé na terra e outro no
inferno. Mas qual,
seo Maria! Inferno
é aqui mesmo
na terra: pois
vassuncê quer maior pena e mais grande sofrimento que estar
um pobre coitado c’a boca n’água e morrendo
à sede, ver uma canoa?
O
partido conservador estava
de cima, e
o seo Chico
Marzulão era um
chimango peitudo. Os liberais cá
do mato arreceberam cartas lá de baixo contando por notícia que mais mês menos mês, o imperador ia chamá-los pro
poder: de maneiras que as eleições desse tempo
iam ser brabas.
Assim que elas foram vesprando, o
afamado Chico Dia mandou avisar aos daqui que
havia de trazer um ajutório que servisse direito; Marzulão, que era
colega do Chico Dia, meio irmão de
criação dele, até, ficou entusiasmado, que gaguejava e chorava quando vnha de
jeito falar-se na
subida dos seus.
E chegou muitas
vezes a bufar,
inchando o papo
que nem um
arurá assanhado.
− Deixe correr o aço, que esses
saquaremas hão de ver de que pau é a canoa, quando eu
tiver voz ativa
e for sobdelegado
aqui no distrito!
Esses danados cuidam
que batuque é
reza, imaginam que marimbau é gaita. Eles hão de encontrar forma pro pé!
Veio o falado dia. Regulando seis
da manhã, ou pouco mais, a gente do Chico Dia
passou pelo alto das três ilhas. Cada qual dos caboclos trazia
bandeirinha branca nûa mão e bacamarte
na outra, e garrucha dum lado da cintura, e faca do outro lado, − e
caminhavam alegres, numa pagodeira. O
Chico Dia, amontado num saino de oito pés, ia na frente do povo: e se porventura o saino queria descair na
balança, relava-lhe no sofragante as chilenas pras paletas
que era um regalo.
Seo Chico Marzulão, já de
conchavo antigo, perparara a matula de noite, porque era vindouro
na terra e
não tinha casa
pra assistir no
povoado. Ao clarear,
arreou seu macho,
esperto que era um raio, e foi-se encontrar co’a caboclada do Chico Dia
na volta do caminho. No instante em que
rompeu juntico deles, como por um milagre, todo o povaréu gritou que parecia uma demência:
− Aí, companheiro sacudido! C’uma
parceirada em que tenha muitos desse calibre é
que os cascudos verão bóia! Viva o Marzulão! Fogo no Marzulão!
E
umas par de
garruchas afloresceram de
pólvora queimada, arriba
das cabeças de
todos. Aquilo eram salvas ao seo Chico e aviso à liberalada da vila:
ouvidos os tiros, passada a
primeira impressão, houve
um reboliço pras
ruas, que não
acabava mais, e
só asserenou quando apareceu no alto, pra lá da igreja,
aquele mundão de gente.
Êta! Eleições brabas! Até hoje
são faladas!
Ora por essa casião as laranjas
estavam que era uma calda, muito maduras e muito doces.
E no laranjal
da Serrinha, pegado
c’o quintal de
seo Chico Marzulão,
juntava uma guaxaria
que nem se
podia contar. Mal
e malzinho que
apontava o sol,
já se ouviam
pela capoeirama a fora os pios
chupados e o rumor das asas de semelhantes pass’os.
O Reimundo, logo que viu seo
Chico passar o morro que ia acabar na estrada real, veio devagar, encarapitado em sua sabina, c’o
coração bate-que-bate, pedir pra nhá Supriana,
mulher do dito cujo, licença pra espichar fogo nos guaxes, que na
certeza andavam gordos e magníficos pra
um arroz com tranqueira. Nhá Supriana, foi ele pedir, foi dar a licença: e
o freguês torou
de rumo pro
laranjal, que era
aí adiante, pra
baixo, na virada
do morrinho lançante que verte pro córgo.
Daí a pouco os tiros
principiaram, um em cima do outro, que não paravam mais: a mó’ que a troxada só descansava enquanto ele
puxava os aviamentos da mucuta e enchia os
dois canos. Nhá
Supriana, ouvindo tamanho
barulhão, assustada a
mais não poder,
poribiu dois crioulinhos,
que brincavam no
terreiro, de irem
pra aquela direção:
e encafuou-se no
quarto, serzindo ûas
meias de algodão,
sossegada já, por
pensar que nhá
Lina andava pra
cozinha, lidando co’as panelas, e não corria risco nem um.
Nhá Supriana, em seu trabalho,
dava de cantar a vida inteira. Naquele dia como nos outros, enquanto a agulha ia e vinha dum
pedaço de algodão pra outro, saíam da boca da dona aquelas
modinhas cheias de
saudade, aquelas modinhas
que aprendeu quando
era frangota ainda, cobiçada de um bandão de moços e
amante já de seu Chico Marzulão, que ao mesmo
tempo gostava dela, que era um desespero. A agulha ia e vinha, o
pensamento de nhá Supriana também ia e
vinha: às vezes o pensamento andava mais depressa, outras vezes era a agulha,
− e a tarde estava caindo, sem barulho,
vagarenta.
Houve uma hora, apesar de tudo,
em que nhá Supriana se lembrou do mundo.
Prestou atenção pro rumo da
cozinha, não sentiu nhá Lina lidar mais; pegou a escutar na linha do laranjal, não percebeu mais tiro
nem um. Levantou-se, chegou à cozinha: nada de
nhá Lina; campeou p’r a casa inteira, nada. E ficou de repente tomada
dum susto: que estes caçadores, Nossa
Senhora da Penha, chegam a pôr chumbo numa caça mesmo em frente dos outros.
Mas assim que apareceu na janela
do quintal: que gritou por nhá Lina, que nhá Lina arrespondeu e veio quaji correndo; assim que
viu, pra um recanto do rocio, passar o Reimundo
meio arcado, com feitio de escondimento, no instantinho em que um coitelo
riscava chita c’as asas abertas no meio
da varanda: nhá Supriana achou-se mais assustada, à toa, a bem dizer, mas tremendo tal e qual um passarinho meio
chamuscado.
Não disse
nada pra nhá
Lina, entrou pra
dentro do quarto,
e fez um
choro largo e
muito delorido, em
silêncio, como quem
purga pecado. No
meio do choro,
entretanto, lembrava-se do que
fora no tempo de solteira, do juízo que tivera, e o pensamento do passado ia e vinha, como poucas horas antes, que nem
a agulha de um pedaço de algodão pro outro
pedaço. Chorou, que
foi uma loucura:
e assim que
seo Chico voltou,
já sobre a
noite, encantado c’as eleições, nhá
Supriana lhe falou perto da orelha, c’os beiços frios e os olhos queimando:
− Olhe, seu Chico, o primeiro
desastre já foi, agora espere pro outro!
E contou-lhe o que assucedera.
Quem tinha razão era sea Maria
Rita: quando os namorados chegaram a certo ponto...
Pois não
aconteceu o segundo
desastre. Seu padre
vigário botou a
bênção de casamento nos dois, num dia despois da missa,
apesar que moça de santo deve de ser de santo
toda a vida. Quando a comitiva
dobrou a aguinhadas pedras, já perto da
casa, no fundo do laranjal, e um
casal de guaxes passou pelo ar, gritando, que não tinha mais jeito, o
Reimundo falou pra nhá Lina, em segredo:
− Aquilo é que é pass’o bom, nhá
Lina!
Ela ficou sem dizer nada. Ficou,
mas em compensação, pôs-se vermelha como
um juá
manso, na roçada,
assim que o
guatambu, sem dó,
foi descobrir as
ervas mais altas
e também o descobriu.
Coisas que a gente vê neste
guanhã de mundo!
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Nota:
Valdomiro Silveira: "Mucufos" (1894-1905). Versão ortográfica do apógrafo de Carmen Lydia de Souza Dias, in: Alexandre de Oliveira Barbosa: "Edição anotada de Mucufos, coletânea de contos inédita de Valdomiro Silveira", da Universidade de São Paulo, 2007
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