quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Valdomiro Silveira: "Os Guaxes"

OS GUAXES

Naquele tempo o laranjal da Serrinha não estava no ermo, como agora, que não vale  uma  pitada  de  rapé:  tinha  bem  boa  casa  de  morada  pra  uma  banda,  perto  d’água,  criação  grande, e dali a pedaço, longe umas cem braças da casa, a gente via a roça de cinco alqueires,  onde os milhos já embonecravam, prometendo uma colheita e tanto. O ano era de fartura, lá  isso era, em todas as coisas, até nos próprios arvoredos do mato.

Foi  situante  no  lugar  um  tal  Chico  Marzulão,  sojeito  estimado  e  bem  visto  dos  vizinhos,  casado  c’ûa  mulher  das  melhores  deste  sertão,  não  desfazendo  nas  outras.  Mas  o  merecimento de mais porte que seu Chico tinha, pra dizer uma certeza certa, era ser pai da  moça mais chibante que se tem conhecido até hoje por aqui em roda. Nhá Lina se chamava  aquele  anjo,  segundo  o  esquisito  apelido  que  lhe  botou  o  Reimundo,  que  lhe  queria  tanto  como a sombra quer ao sol: porque, afinal, onde é que já se viu heresia assim, dar nome de  morador de céu pra uma criatura do mundo dos pecadores?

O Reimundo, que sempre foi um ventana pra vida, trabalhador que nem alimal (com  perdão da palavra), ficou embeiçado por ela, desde que a viu uma tarde, passando por ali e  pedindo por acauso uma xicra de café: ela, nhá Lina, trouxe o café em pessoa, enquanto a mãe  o hospedava, proseando co’ele, e o Reimundo sentiu-se logo quente das orelhas, e de olhos  turvos  como  quem  firma  a  vista  em  qualquer  luz  muito  forte.  Ela  era  destrocida,  não  se  avexava a dois arrancos: veio lá de fora, onde as mulheres são desembaraçadas como quê, e  também entrava direito na conversa, até rindo, quando chegava a casião.

Daí por diante, já se sabe, o Reimundo ‘garrou por ela um rabicho em demasiado: ê!  rabicho! Cortava na subida e na descida, e dava só aquelas ânsias! Percurou saber quem era a  moça, o pai e a mãe da  moça: colheu logo que o pai foi sempre dos que não admitem que  ninguém lhe pisasse no ponche; e a mãe, de respeito a conta inteira. Morava lá pros fundos da  Pedra  Branca,  e  pegou  a  tecer  pela  Serrinha,  fazendo  como  quem  vinha  pra  vila,  voltando  quaji em seguida, feito um andante de costume.

A princípio nhá Lina pouca atenção pôs no rapaz: mourejando todo o santo dia, ela  não tinha um pequeno tempo de seu pra bispar as pessoas que mexiam pela estrada; despois,  por  ele  às  vezes  parar  muitas  horas  nas  proximidades  da  casa,  c’uma  espingarda  troxada  a  tiracol, observou que tal parada devera de ser coisa: e, reparando que o tal senhor dão era bem  parecido,  pensou  o  que  pensam  as  da  mesma  idade  que  ela,  até  agora,  e  foi  ficando  triste,  como  reza  a  história,  até  reconhecer  consigo  mesma  que  se  ia  tornando  dele  de  tudo.  Sea  Maria Rita, ûa mulher de muito tino, que sabe da vida de meio mundo pra esses centros de  sítios todos, diz que é mesmo deste feitio que o diabo tenta os outros; ela, que diz, é porque  tem expriência, e a expriência é a mestra da vida: remate que põe sempre em suas prosas, e é  verdade.

O Reimundo achou lado de visitar a familiage de seu Chico Marzulão, com desculpa  de  ofrecer  ûas  marrãs  e  uns  capadetes  gordos:  chegou  à  porta,  preguntou  pelo  velho,  arengaram muitas horas, pechincharam de mais, e por fim tramaram uma berganha, soltando o  Reimundo dois capadetes por um poldro castanho redomão, que era uma pintura, de estampa  linda, cola e crina compostas, tábua do pescoço e ancas bem feitas, escanelado, ardoroso que  nem o demo. No sábado que veio, trouxe os porcos, tomou um café, mais um isto, mais um  aquilo, e foi-se embora no romper da lua, levando o cavalo adestro, e sentindo o rumor louco  do coração dentro do peito.

Passados meses, negócio vai, negócio vem, deu um vomitório pra mãe da namorada,  afim  de  ver  se  saía  ou  não  o  casamento:  a  velha  remancheou,  gaguejou,  fez  mesuras,  fez  rodeios, e ele contemplou-se despachado. Tem daqui, tem dali, achou de talho a nhá Lina, um  dia, e falou-lhe de vereda se queria ser a companheira dele: a nhá Lina arrespondeu que sim,  que queria, − era só pedir pro pai.

E agora.

Topou  no  outro  dia  com  o  Chico  perto  do  monjolo,  trançou  as  pernas  em  riba  do  selim, que a égua sabina em que estava montado era um cachorro, de mansa, e conduziu o  intento da conbersação até fazer o pedido. Seu Chico pode-se dizer que enfiou. Não: enfiar,  não enfiou, mas embatucou, que é quaji, tanto faz dá na cabeça, como na cabeça dá.

Vira,  mexe,  vira,  mexe,  acabou  seu  Chico  por  explicar  que  decerto  não  cabia  a  proposta,  não  havia  arrumação,  porque  a  moça  era  de  santo,  por  uma  promessa  que  ele  Marzulão e a dona fizeram, duma intendência que ela, menina ainda, se achou às portas da  morte, por via dum sarampo arrenegado.

E quem é de santo, não hai quem não saiba, tem sempre desastre na vida, e morre por  desastre.

O Reimundo, nem bem seo Chico lhe deu adeus, chegou os garfos à catirina, e saiu  ventando  pela  estrada  a  fora,  c’uma  zunideira  nos  ouvidos  e  um  peso  na  cabeça,  que  até  mostravam jeito de doença. Arrebentou na vila, quando menos esperava, navegou que nem um  mantecato pelas ruas, sem apear em parte alguma, e fez chão pelo escurecer, aborrido, já sem  altura.

Mas daí a uns par de dias, pilhando outra vez a nhá Lina de talho, foi-lhe fazendo  suas queixas e exclamações: e a nhá Lina, que pissuía um coração mole e vivia pendurado dos  olhos  dele,  jurou,  no  fim  de  contas,  que  havia  de  ter  toda  a  firmeza;  e  pediu-lhe  que  a  esperasse, com firmeza por igual, porque a gente deve de acreditar piamente no ditado: não  hai bem que sempre ature, nem mal que nunca se acabe.

Sea Maria Rita não é à toa que dá a entender que os namorados, quando chegam a  este ponto, vão descendo, descendo, de tentação em tentação, até ficaram c’um pé na terra e  outro  no  inferno.  Mas  qual,  seo  Maria!  Inferno  é  aqui  mesmo  na  terra:  pois  vassuncê  quer  maior pena e mais grande sofrimento que estar um pobre coitado c’a boca n’água e morrendo  à sede, ver uma canoa?

O  partido  conservador  estava  de  cima,  e  o  seo  Chico  Marzulão  era  um  chimango  peitudo. Os liberais cá do mato arreceberam cartas lá de baixo contando por notícia que mais  mês menos mês, o imperador ia chamá-los pro poder: de maneiras que as eleições desse tempo  iam ser brabas.

Assim que elas foram vesprando, o afamado Chico Dia mandou avisar aos daqui que  havia de trazer um ajutório que servisse direito; Marzulão, que era colega do Chico Dia, meio  irmão de criação dele, até, ficou entusiasmado, que gaguejava e chorava quando vnha de jeito  falar-se  na  subida  dos  seus.  E  chegou  muitas  vezes  a  bufar,  inchando  o  papo  que  nem  um  arurá assanhado.

− Deixe correr o aço, que esses saquaremas hão de ver de que pau é a canoa, quando  eu  tiver  voz  ativa  e  for  sobdelegado  aqui  no  distrito!  Esses  danados  cuidam  que  batuque  é  reza, imaginam que marimbau é gaita. Eles hão de encontrar forma pro pé!

Veio o falado dia. Regulando seis da manhã, ou pouco mais, a gente do Chico Dia  passou pelo alto das três ilhas. Cada qual dos caboclos trazia bandeirinha branca nûa mão e  bacamarte na outra, e garrucha dum lado da cintura, e faca do outro lado, − e caminhavam  alegres, numa pagodeira. O Chico Dia, amontado num saino de oito pés, ia na frente do povo:  e se porventura o saino queria descair na balança, relava-lhe no sofragante as chilenas pras  paletas  que era um regalo.

Seo Chico Marzulão, já de conchavo antigo, perparara a matula de noite, porque era  vindouro  na  terra  e  não  tinha  casa  pra  assistir  no  povoado.  Ao  clarear,  arreou  seu  macho,  esperto que era um raio, e foi-se encontrar co’a caboclada do Chico Dia na volta do caminho.  No instante em que rompeu juntico deles, como por um milagre, todo o povaréu gritou que  parecia uma demência:

− Aí, companheiro sacudido! C’uma parceirada em que tenha muitos desse calibre é  que os cascudos verão bóia! Viva o Marzulão! Fogo no Marzulão!

E  umas  par  de  garruchas  afloresceram  de  pólvora  queimada,  arriba  das  cabeças  de  todos. Aquilo eram salvas ao seo Chico e aviso à liberalada da vila: ouvidos os tiros, passada a  primeira  impressão,  houve  um  reboliço  pras  ruas,  que  não  acabava  mais,  e  só  asserenou  quando apareceu no alto, pra lá da igreja, aquele mundão de gente.

Êta! Eleições brabas! Até hoje são faladas!

Ora por essa casião as laranjas estavam que era uma calda, muito maduras e muito  doces.  E  no  laranjal  da  Serrinha,  pegado  c’o  quintal  de  seo  Chico  Marzulão,  juntava  uma  guaxaria  que  nem  se  podia  contar.  Mal  e  malzinho  que  apontava  o  sol,  já  se  ouviam  pela  capoeirama a fora os pios chupados e o rumor das asas de semelhantes pass’os. 

O Reimundo, logo que viu seo Chico passar o morro que ia acabar na estrada real,  veio devagar, encarapitado em sua sabina, c’o coração bate-que-bate, pedir pra nhá Supriana,  mulher do dito cujo, licença pra espichar fogo nos guaxes, que na certeza andavam gordos e  magníficos pra um arroz com tranqueira. Nhá Supriana, foi ele pedir, foi dar a licença: e o  freguês  torou  de  rumo  pro  laranjal,  que  era  aí  adiante,  pra  baixo,  na  virada  do  morrinho  lançante que verte pro córgo.

Daí a pouco os tiros principiaram, um em cima do outro, que não paravam mais: a  mó’ que a troxada só descansava enquanto ele puxava os aviamentos da mucuta e enchia os  dois  canos.  Nhá  Supriana,  ouvindo  tamanho  barulhão,  assustada  a  mais  não  poder,  poribiu  dois  crioulinhos,  que  brincavam  no  terreiro,  de  irem  pra  aquela  direção:  e  encafuou-se  no  quarto,  serzindo  ûas  meias  de  algodão,  sossegada  já,  por  pensar  que  nhá  Lina  andava  pra  cozinha, lidando co’as panelas, e não corria risco nem um.

Nhá Supriana, em seu trabalho, dava de cantar a vida inteira. Naquele dia como nos  outros, enquanto a agulha ia e vinha dum pedaço de algodão pra outro, saíam da boca da dona  aquelas  modinhas  cheias  de  saudade,  aquelas  modinhas  que  aprendeu  quando  era  frangota  ainda, cobiçada de um bandão de moços e amante já de seu Chico Marzulão, que ao mesmo  tempo gostava dela, que era um desespero. A agulha ia e vinha, o pensamento de nhá Supriana  também ia e vinha: às vezes o pensamento andava mais depressa, outras vezes era a agulha, −  e a tarde estava caindo, sem barulho, vagarenta. 

Houve uma hora, apesar de tudo, em que nhá Supriana se lembrou do mundo.

Prestou atenção pro rumo da cozinha, não sentiu nhá Lina lidar mais; pegou a escutar  na linha do laranjal, não percebeu mais tiro nem um. Levantou-se, chegou à cozinha: nada de  nhá Lina; campeou p’r a casa inteira, nada. E ficou de repente tomada dum susto: que estes  caçadores, Nossa Senhora da Penha, chegam a pôr chumbo numa caça mesmo em frente dos  outros.

Mas assim que apareceu na janela do quintal: que gritou por nhá Lina, que nhá Lina  arrespondeu e veio quaji correndo; assim que viu, pra um recanto do rocio, passar o Reimundo  meio arcado, com feitio de escondimento, no instantinho em que um coitelo riscava chita c’as  asas abertas no meio da varanda: nhá Supriana achou-se mais assustada, à toa, a bem dizer,  mas tremendo tal e qual um passarinho meio chamuscado.

Não  disse  nada  pra  nhá  Lina,  entrou  pra  dentro  do  quarto,  e  fez  um  choro  largo  e  muito  delorido,  em  silêncio,  como  quem  purga  pecado.  No  meio  do  choro,  entretanto,  lembrava-se do que fora no tempo de solteira, do juízo que tivera, e o pensamento do passado  ia e vinha, como poucas horas antes, que nem a agulha de um pedaço de algodão pro outro  pedaço.  Chorou,  que  foi  uma  loucura:  e  assim  que  seo  Chico  voltou,  já  sobre  a  noite,  encantado c’as eleições, nhá Supriana lhe falou perto da orelha, c’os beiços frios e os olhos  queimando:

− Olhe, seu Chico, o primeiro desastre já foi, agora espere pro outro!

E contou-lhe o que assucedera.

Quem tinha razão era sea Maria Rita: quando os namorados chegaram a certo ponto...

Pois  não  aconteceu  o  segundo  desastre.  Seu  padre  vigário  botou  a  bênção  de  casamento nos dois, num dia despois da missa, apesar que moça de santo deve de ser de santo  toda a vida. Quando  a comitiva dobrou a aguinhadas pedras, já perto da  casa, no fundo do  laranjal, e um casal de guaxes passou pelo ar, gritando, que não tinha mais jeito, o Reimundo  falou pra nhá Lina, em segredo:

− Aquilo é que é pass’o bom, nhá Lina!
  
Ela ficou sem dizer nada. Ficou, mas  em compensação, pôs-se vermelha como um  juá  manso,  na  roçada,  assim  que  o  guatambu,  sem  dó,  foi  descobrir  as  ervas  mais  altas  e  também o descobriu.

Coisas que a gente vê neste guanhã de mundo! 


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Nota:
Valdomiro Silveira: "Mucufos" (1894-1905). Versão ortográfica do  apógrafo  de  Carmen  Lydia  de Souza  Dias, in: Alexandre de Oliveira Barbosa: "Edição anotada de Mucufos, coletânea de contos inédita de Valdomiro Silveira", da Universidade de São Paulo, 2007   

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