NA RUA DO BOSQUE
Já se
chamou do pito
aceso aquela rua,
e não foi à toa!
Nunca se viu
recanto de cidade onde
houvesse gente mais
levada das carepas,
que ali. Aos
domingos e dias
santos, nem bem o folgazão do sol
dava de iluminar a barra do céu, já por lá se reunia um povão de caboclos, que nem formiga, virando para um
lado e para outro, dizendo lérias às tiribas que não faltavam naqueles cochicholos
empinhocados, pintando a saracura. De
tudo se via então: namoros descabelados
com umas certas mocinhas que já estavam entre a igreja verdadeira e a igreja verde; cumprimentos rasgados de uns
tais a umas tais, que todas se requebravam, no
corpo e nos olhos, e até, para
que se representasse
também o trágico,
muitas vezes a
boca esguia de
uma facada golfava
sangue aos borbotões
pela areia, ou
desabrochava de uma
garrucha, que dantes ninguém tinha visto, a flor amarela e fumacenta de
um tiro.
Navegava pelo bairro, sempre
roncando valentia e pisando no ponche dos mais, um fulano
Bernardes, que era
homem de más
entranhas, a julgar-se
pelo que fazia,
pelo que prometia e, principalmente, pela fulva
expressão de ódio que lhe reviam os olhos, onde quer que os fitasse: fulva se lhe tornava ela,
ainda mais, porque os seus cabelos louros, anelados em voltas longas, desciam-lhe até a meio da
testa, emaranhados e revoltos. A voz era-lhe quase um
rugido, tanto se avezara a
falar por monossílabos
aquele demônio desguaritado,
ao que então se dizia, de uma biboca qualquer do Rio
Pardo, em que não havia com quem armar uma
briga que valesse a pena do esforço.
Ganharam-lhe medo os
freqüentadores da rua. Quando o viam de longe, tratavam de evitá-lo com cuidado, com maoir cuidado ainda
em razão dos melindres que mostrava, pois
era corrente que uma vez, como um mineiro lhe fugisse, entrando de
sopetão em casa da moça que assistia
perto do espraiado, ele tirou-o à força lá de dentro, sacudindo-o umas tantas
vezes em
plena rua e
ensinando-lhe que um
homem não deve
temer-se de outro
homem. Se se
armava algum cateretê, e o Bernardes surgia na função, ninguém queria
servir-lhe de parceiro, e fazia-se
preciso que ele mesmo Bernardes saísse a campear um no meio da rapaziada.
Rosnavam que
tinha feito ûa
morte cá para
os lados de
canoas, além da
divisa, e mudara
de vida de
repente, passando de
homem de tramas
a boiadeiro, deixando
crescer a barba,
pintando o cabelo
de ruivo, quase
de fogo, e
espontando os dentes
a lima. Boca
do povo!
Mas ninguém não sabia que o
Bernardes se chamava Chico Romão, não tinha mulher nem famílias e era situante no Jaguari, perto
do Cercadinho. Plantava sua cana, seu arroz, seu milho, e ia vendê-los ao Guaçu, com um
trabalho demasiado, principalmente quando subiu o preço da pinga e o açúcar estava por empenho.
Tinha tido uma soneira louca pela tal Maria
Nenê, a que
depois deu em
droga: e como
não acharam bom
o casamento, em
casa, foi-se ficando solteiro, pensando bem que é melhor a
um triste arrastar sua vida sozinho pelo mundo,
que juntar-lhe a
pobre coitada dûa
moça que tem
todo o direito
de achar quem
lhe queira deveras, como ele Chico Romão quisera à Maria
Nenê.
Vivia então com a mãe e a
Venturosa, única irmã, linda que nem três dias de sol e mais alegre que um periquito. Afez-se àquele
viver sossegado, de animal que faz sua tarefa
todos os dias, do romper da madrugada ao cerrar da noite, e recolhe ao
pouso, amolentado e bambo. E
haviam-se-lhe fechado as aspirações, uma por uma, no âmbito estreito da
lavoura, que desejava ver sempre areada
e próspera, tal qual um bando de araguaris que emigra, num grasnar esperançado, para muito ao longe, e
volta mais tarde, entretanto, a habitar outra vez a mata natal, donde já não anseia mais por sair
porque viu lá fora o perigo, sentiu as privações, as fomes, as sedes, as invernias e o terror.
Ora, uma vez, como
viajasse para Santa
Cruz, a tratar
um carro de
bois com um
conhecido antigo e se demorasse uns três dias na viagem, achoou gente de
menos, na volta: e quem faltou foi a
Venturosa. A mãe, com os peitos apertados pela raiva e pela dor,
contou-lhe que aquilo fôra coisa-feita,
ao depois que o Sarapião escrevia pelo bairro, porque desde então a moça não tivera mais sossego, acabando por
fugir com ele. O Sarapião era um diabo. Deus
que nos perdoe! Viera desses mundos de terras que não se conhecem, e
lidava nos empreitos. Diziam que era
casado, mas que largara a mulher sem mais nem menos, como quem larga um gato ou um jaguariva numa casa desamparada.
Boca do povo!
Nem um
barulho, nem um
ameaço: o Chico
Romão escutou a
conversa com o
coração em tropel
desordenado, mas o
rosto não se
lhe demudou, nem
a alma perdeu
a compostura. Perguntou,
à mãe e
aos vizinhos, por
onde seguira o
Sarapião e a
Venturosa. Ninguém podia
responder ao certo, porque a fugição foi de noite, mas o rasto dos cavalos
era na estrada do Cocais, caminho de
Casa Branca.
No dia seguinte o Chico Romão
ensilhou o melhor cavalo que tinha, um chita veloz feito um raio, e abriu-se. Virações p’r amór
da lavoura, segundo todos disseram. E ficou por
isso.
Da capela
para diante não
teve mais notícia
alguma da irmã
e do outro.
Em uma vendinha à beira da estrada, antes das mais
casas da povoação, soube que o Sarapião
(aquele jogador de
vermelhinha, foi como lhe falaram)
tinha passado por
ali a cavalo,
dias antes, trazendo engarupada ûa moça bonita e tanto,
descascadinha e de olhos espertos, alegre e viva que parecia um feitiço. Não deu fé maior
daquilo: fez que não se incomodava com semelhante dito, deu a entender que a nova não lhe
importava. Saiu da vendinha, andou corre-correndo as últimas casas das saídas do
povoado: nada mais.
Resolveu ficar de espera no
bairro do Senhor Menino, andar o mais que pudesse, até um dia topar os dois fugitivos, e falava
sempre consigo mesmo:
− Deixe estar, que aquele
canhambora desavergonhado há de me pagar bem doído!
Chegou esse
dia: transpunha a
porta da igreja
do Rosário, quando
viu grande ajuntamento
de povo nas
cercanias da cadeia,
em roda de
dois homens que
traziam, aos ombros e pendente ao comprido de um varal, um
morto qualquer.
Acostumado aos solilóquios o
Chico Romão pegou a perguntar de si para si:
- Que diabo de sinagoga será
aquela, atromentando um defunto fresco? E esse pobre coitado que vem no catiguá, que nem uma paca,
que será, quem não será?
Foi-se aproximando
do grupo a ver quem
era o matado
(com certeza haviam
feito algum crime), e a primeira
fisionomia que lhe bateu na vista foi a do próprio Sarapião, um dos carregadores do corpo, que ia meio penso, de
cansado, e suando em bica.
Começou o Chico Romão a tremer, a
tremer, e por um triz não o agarrou logo ali,
cheio de fúria,
como um demente.
Mas teve mão
em si, esperou
que todo o
reboliço esmorecesse, o auto
fosse lavrado, e mais tarde, assim que o Sarapião deu de ir embora, o foi acompanhando de longe, com toda a cautela,
fingindo um passeio à toa.
O
Sarapião caminhou pouco:
enveredou para a
esquina do urias,
passou a casa
do capitão Vicente,
afundou-se na rua
da Estalage. Quando
chegou a uma
casa pequenina, de
janela de rótula, e bateu, quem lhe apareceu foi a Venturosa, já no meio
desfeita a cabo de tão poucos dias, com
os olhos empapuçados de choro e os cabelos despenteados. O Chico Romão bem que sentiu piedade, bem que teve ímpetos
de voar à irmã, arrancá-la de tão triste morada: mas
lembrou-se da traição
que lhe fizeram,
conteve-se. Também o
Sarapião não esquentou
lugar na casa, rompeu logo.
Caminhava agora
para o lado
do cemitério, o
Chico Romão seguia-o
de longe; endireitou no rumo da igrejinha da Boa Morte,
o Chico Romão lá ia feito uma sombra; fez
direção para a rua do Bosque, o Chico Romão não torceu nem uma linha.
Entrou numa casa, fechou a porta: e o
silêncio da rua, quebrado a essa hora apenas pelo áspero ranger daquela porta preguiçosa, reatou-se de novo, como uma
grande tristeza de desamparo e de ruína. O
Chico Romão olhou
demoradamente para aquela
casa quieta, querendo
adivinhar o que
passava dentro, e depois, a afastar-se, murmurava escumando de raiva:
− Antão é aí que você mora,
roubador de moça? Eu hei de lhe mostrar como é que o urutu se vinga de quem um dia pisou na
cacunda dele. Espere só!
O Sarapião não teve que esperar
muito tempo.
Era num
dia primeiro do
ano. A caipirada
repontara dos sítios,
desde pela manhãzinha,
e a cidade
estava dura. Havia
uma congada como
nunca, de creoulos
entusiasmados e cantadores
loucos de bons.
Assim que rompeu
a alvorada, já
se ouviu a
cantoria que vinha descendo da estação, arrastada e lângüida:
“Senhor rei, bamos embora,
ai!
Senhor rei, vamos embora!”
Cada congo era um brinco.
Aparecia um, vestido de cetim e todo cheio de fitas, que puxava
a dança; quando
proferia as últimas
palavras do verso
e agitava desabaladamente o
adufe82, viam-se-lhe encher
os olhos de
água e a
boca tremer convulsa,
de pura comoção.
Outro, que todos
contavam ter fugido
de uma fazenda
do norte e
era o melhor
pulador do bando, não dava uma volta sem olhar para
todos os lados, com os olhos sempre possuídos do susto
selvagem. E um
se notava entre
os mais corpulentos
e reforçado, que
cantava com soberana soberbia, passando a todo instante a
mão enorme sobre as plumas que lhe arfavam
festivamente na cabeça.
O rei congo
era um velho:
ficava já quase
imóvel entre os
companheiros, pensativo e cansado, talvez a cismar que em breve a coroa teria de passar a
outro, a um outro que ali estava, de olhar muito audaz a romper de um
rosto esguio, e que, como é costume
entre os príncipes herdeiros, em todos os reinos, já mostrava sua ambição
e sua valentia nas mais pequenas
conversas.
Quando a
congada chegou à rua do
Bosque, não houve
mais passagem para
uma criança que fosse: a grama
das beiradas das casas ficou amassadinha? A bica por onde vinha a água da chácara do capitão Vicente sumiu no
meio do povo. A mulher do Sarapião, que era
uma paranista bonitona,
estava à porta
da casa e olhava a
congada, junto do
marido e dos
filhos: e todos tão entretidos, que ninguém viu a hora em que o
Bernardes chegou a cavalo, sabe Deus
como! – em frente àquele povo. Logo que reconheceram, ficou a cangada
quieta, como por um milagre, e foi só o
negralhão soberbo quem se afrontou a dizer:
− Bamo’ co’isso, que aqui não
aconteceu nada!
Mas o Bernardes não tinha que ver
com aquele prosa. Olhou-o, sacudiu os ombros.
Aproximou-se da porta do Sarapião, mirou-o e remirou-o bem,
perguntou-lhe sufocado:
− Você me conhece, Sarapião? Não
conhece, eu bem ‘tou vendo! Pois olhe: eu sou o
Chico Romão, aquele do Cercadinho, o irmão da Venturosa, que você tirou
da casa da mãe e ponhou nûa meiágua, lá
pra esses fundos. Conhece agora?
O Sarapião não respondia. E o
Bernardes tomou-o pelo peito, falando rouco:
− Quem deve paga, Sarapião. Você
paga hoje a conta velha. Como você não presta,
eu ‘tou sentindo, é a sua mulher que fecha as contas.
Aferrou a
mulher do Sarapião
pelos braços, com
uma força sobre-humana.
Nada valeram gritos e queixas, de
nada serviu a defesa frouxa daqueles braços que se enfraqueciam pelo terror. Não houve quem punisse por ela,
nem quem dissesse coisa com coisa.
O Bernardes correu as esporas no
chita, saiu pausado e rindo-se. Quando se alongava, quando torcia a esquina que vai ao largo da
boa morte, ouviu uma palavra dolorida e raiventa:
− Ai! A minha mulher é tão de
bem, meu Deus de misericórdia!
Entreparou, voltou-se:
− A minha irmã também era boa,
desgracionado!
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Nota:
Valdomiro Silveira: "Mucufos" (1894-1905). Versão ortográfica do apógrafo de Carmen Lydia de Souza Dias, in: Alexandre de Oliveira Barbosa: "Edição anotada de Mucufos, coletânea de contos inédita de Valdomiro Silveira", da Universidade de São Paulo, 2007
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