quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Valdomiro Silveira: "Forte Teima!"

FORTE TEIMA!

Por  falta  de  aviso  não  foi.  Toda  a  gente  da  ilha  grande  aprofiava  em  dizer  ao  Zé  Tucura  que  não  arrodeasse  a  casa  da  Oncinha:  a  Oncinha  é  uma  cabrocha  bonita,  não  há  dúvida,  mas  o  bonito  às  vezes  serve  só  de  longe.  Ele  bem  sabia  que  sô  Moraes,  moço  de  opinião, gastava co’a cabrocha e não havia de querer sociadade assim sem mais nem menos. E   o Zé Tucura encabeçou naquilo: porque sim, porque era seu desejo, porque havia de fazer a  acontecer,  nem  que  o  céu  viesse  abaixo,  quanto  mais  sendo  a  questã  c’um  filho  de  Deus   como ele mesmo! Em certas coisas o falado é bom, mas o feito ainda é melhor!

Sô Moraes até que não era tocado a valentão: vivia de seus ganchos, pra um lado e  pro outro, comprando café no sítio de nhô Tino pra vender na casa do Gervásio, barganhando  um tordilho por um baio, recebendo dinheiro aqui pra mandar pra São Paulo, enfim fazendo  seus arranjos caladinho e sem mexer co’a vida dos mais. Por andar pelos vinte e cinco anos e  ser  sacudido  que  nem  um  marruás,  percisava  ter  uma  companheira  que  fosse  também  mocetona e sadia, e tirou a Delminda dos pais, segundo se diz, de concórdia co’ eles: como a  Delminda nesse tempo tinha um senhor  gênio muito zangado, ele batizou-a por Oncinha, e  Oncinha ficou sendo o nome dela. Ora vai-se ver sô Moraes, um sujeito bem pacato, às voltas  c’um demônio que não tem miolo na torre.

O Zé Tucura, outrora, teve seus caprichos pela  Delminda, lá isso teve, que não há  quem não saiba. Ela mesma, pra dizer agora verdade inteira e sem mistura, não deixou de não  gostar um pouco dele. Negócio passageiro, nuve’ que logo passou, porque o Zé Tucura deu  mostra de ser um grandecíssimo preguiçoso, num ajutório que houve no rocio do pai dela, um  grandecíssimo preguiçoso que, além de tudo, não tinha pulso, pegava o guatambu76 e logo o  largava,  esbaforido  e  desfeito  em  suor.  Pois  qual  é  a  moça  de  juízo  que  há  de  morrer  de  amores por um marica amolentado assim? Não tinha arrumação nenhuma co’ele, fosse bater a  outra porta: isto não foi dito bocalmente, mas foi dado a entender e foi entendido.

Agora, passados dois anos, o mato seco reverdeceu e, por sim ou por não, entendeu o  Zé Tucura que havia de entrar na casa alheia pelo coração da moça. Pensou lá consigo que  aquilo era só chegar e bater, porque já estivera lá dentro uns tempos: mas não se lembrou que  coração de mulher é feito uma estalage’, que acolhe a muita gente, co’a diferença, porém, que  aquele viandante que uma vez saiu não pode mais ter pousada, volte quando voltar. Assim se  deu, tal e qual: a Oncinha ensinou-lhe o andar da rua. P’r amór de ela proceder desse jeito, ele  queixou-se todo amagoado:

 Ah! Delminda, você bem se vê que merece o apelido que tem, depois que ‘tá nessa  vida de fadista!

 Decerto – pregou-lhe ela: o nome deve de ser como traste, não parecendo c’o dono,  é furtado. E olhe que eu sou de poucas prosas!

 ’tá bom, tá bom: não lhe amassarei mais as gramas de sua porta.

 Pois é ‘bséquio que me faz.

Ele ficou fera. Já se viu como uma piguancha à toa queria fazer pouco  num rapaz  peitudo e couro-n’água como ele? Já se viu o desaforo? E levou uma temporada a xingá-la,  afirmando  que  ela  era  uma  infeliz  sem  entranhas,  que  arrecebia  uma  antiga  amizade  do  mesmo modo que se arrecebesse uma visita do demônio. Tudo isso em pura perda, porque a  Oncinha estava longe, não lhe querendo dar mais palha, e a sala de chão escura que nem tinta.  Por fim lá se foi ele, resmungando de raiva; e não reconhecia dentro de si, nem por nada, que  se sentia possuído mais de tristeza que de raiva. Quase todos são assim!

Então que teima era essa do Zé Tucura, de continuar na ronda, todo santo dia, da casa  da moça? Pois não tinha sido tocado? E ainda que não tivesse sido tocado, pois não reparava  que  a  outra  vivia  em  boa  paz  c’o  dono  e  a  gente  não  pode  sem  mais  aquelas  bulir  c’o  guardado alheio? O sonso queria mas era lenha, com toda a certeza, ainda mais depois que  tantas pessoas de peso lhe deram o voto de não passar a miúdo por essa cercania. Queria lenha  ou coisa mais pior −, andavam rosnando uns tais que sempre falam acima do superlativo e não  admitem que se possa pôr de banda um conselho que eles dão.

Um dia que se encontraram vizinhando co’a capela, sô Moraes pediu-lhe:   Seo Zé Tucura, o senhor todas as manhãs e todas as tardes passa e repassa pela  minha porta, não sei pra que: lá pra aqueles lados não hai morador nenhum que não seja eu  mais a companheira, que não temos arranjo algum c’o senhor. Por isso eu lhe peço de favor  não faça tantas vezes a medição da minha rua.

Ora dá-se! – enriminou-se o Zé Tucura: eu hei de ir lá quantas vezes quiser: a rua é  pública, ninguém manda nela e, que me conste, mecê não tem escritura desse quarteirão.

 Não tenho escritura do quarteirão, seo Zé Tucura, mas tenho um rabo-de-tatu no  cabido da sala, uma troxada atrás da janela e uma faca sempre fiel na cintura.

 Pois, sô Moraes, então os direitos que mecê tem andam igualando c’os meus, que  são esses, pintadinhos.

 O senhor esteja aprevenido. Eu já cumpri minha obrigação: quem me avisa, meu  amigo é.

E foi só isto. Sô Moraes é de poucas prosas, que nem a Oncinha: até murmuram que  ela tem o costume proveniente duns desaguisados caseiros co’ele, no fim dos quais ela vê que  o home’ faz muito e fala pouco. Neste mundo o bom exemplo vale tudo!

Vieram dias, vieram meses, um em riba do outro. Sô Moraes, descansado no assunto,  notava que a observação dera bom  resultado, pois o  Zé Tucura tinha criado parte de bicho  arisco. A rua dormia seu sono de sossego, e o bairro acompanhava a rua, dês que o Zé Tucura  acabara co’as indróminas e roncos de valentia e promessas de escangalhar céus e terra. Não,  que isto de valentias afinal não adianta nada: parceiro que incha o papo e arregala os olhos e  faz grande esparrame, nunca presta; os bons são os tais que entendem que silêncio é ouro e  apenas tossem meio baixo, puxando um certo pigarro da  goela, quando chega a ocasião do  perigo.

A  história  não  transpirou.  Pra  quê?  Sô  Moraes  não  percisava  matraquear  o  acontecido, porque, sendo um manata de fiança,  não dá trela das proezas que faz. Agora o  povo  é  que  viu  dente  de  coelho  na  enleada:  pois  se  de  primeiro  o  Zé  Tucura  volta  e  meia  transitava por aquele retiro, o que significava ter abandonado seus passeios tão prediletos que  já nem notícia mandava de si? A roda parou decerto p’r amór de algum estrovo...

Cada qual indagava: ora porque seria, porque não seria? E houve um filho de Deus   que  achou  explicação  pro  caso:  sem  dúvida  aparecera  qualquer  pisquim  na  janela  do  Zé  Tucura  −, que esta  gente da ilha  grande é mesmo danada pra um pisquim, e trova sempre!  Tiradas as contas, o rapaz com certeza leu as letras e não se sentiu com disposição de afrontar  tantos  empecilhos.  A  coisa  amargou  e  ele  intentou  que  era  mais  acertado  não  teimar  co’a  caixa  de  marimbondos.  Dada  esta  explicação,  todos  acharam  conforme  e,  vistos  os  autos,  concordaram em que o diabo do namorado de água turva não passava também de um contador  de maxambetas.

Enquanto o Zé Tucura pensou que em roda de seus passos tinha caído uma noite de silêncio e ninguém via suas intenções, tudo lhe correu a gosto e prazimento. Mas no dia em  que  lhe  contaram  que  o  diz-que  de  toda  ilha  grande  era  desta  maneira,  Jesus!  –  o  caboclo  quase perdeu o juízo, e se é que ainda lhe restava juízo pra perder.  Descabelou-se de fúria,  pulou feito um tigre acuado, amarelou que nem mamão maduro, tremeu os beiços, pintou o  sete. A páginas tantas caçou uma garrucha e cantou, alto e bom som, que ali dentro ia ûa mãe  e dez filhos e que onde fosse a mãe haviam de ir os filhos por força.

Podia  ser  três  horas  da  tarde.  Bateu  o  chapéu  na  testa,  pôs  a  arma  bem  à  vista,  e  frechou  na  direção  da  casa  de  sô  Moraes.  Um  casal  de  sivis-sivis  que  voava  sobre  o  patrimônio começou a piar uns pios tão finos e tão agudos que davam ares de ser uma caçoada  ao  Zé  Tucura.  Ele  nem  pôs  reparo  nos  sivis,  nem  em  nada,  porque  estava  baio  de  raiva:  o  sangue,  correndo-lhe  nas  veias  do  pescoço  com  muita  violência,  tapava-lhe  os  ouvidos;  e  atrapalhando os olhos, que num repente ficaram vermelhos, na certeza não lhe permitia ver  coisa alguma.

Quando ele se aproximou da casa, sô Moraes tinha acabado de quebrantar um burro  pêlo-de-rato e ainda trazia na mão direita o relho, que era terminado por uma argola de metal  grande  assim.  Sô  Moraes  desamarrava  o  lenço  da  cabeça,  em  pé  na  soleira  da  porta,  e  sofismou  que  uma  visita  a  semelhantes  horas,  depois  de  tamanha  ausência,  era  novidade  e  novidade grossa: encostou-se, pois, ao portal e esperou-o.

Não  percisou  muita  demora  pra  adivinhar  que  o  home’  vinha  c’uma  veneta  onça:  bastava olhar aqueles passos de anta mordida da cachorrada, pra se descobrir que dali sairia  forte rebordosa. Sô Moraes nem piscou e pela certa nem sentiu bater a pacuera: pôs a mão do  relho atrás das costas, a outra na algibeira esquerda da calça, e ‘panhou um feitio como de  distraído.

O Zé Tucura já chegou bufando:

− Saia pra fora, caboclo sem raça, você que diz que é todo avalentoado, que quero  dar-lhe uma lição! Pra você ficar sabendo que c’um sujeito de sangue nos olhos não se brinca!  Saia pra fora!

Sô  Moraes  ficou  parado,  como  quem  não  entendia  aquelas  prosas.  E  o  Zé  Tucura  mais se arreliou, por ver o grande sossego:

− Eu logo vi que você havia de enjeitar a briga: fácil é o dizer, mas difícil é o fazer.  Você então cuida que me há de subir na alma e que eu hei de murchar sem dizer esta boca é  minha?  Cuida  que  me  há  de  correr  as  esporas  desd’os  sovacos  até  as  virilhas,  pelo  corpo  inteiro,  tomar  conta  de  mim  duma  vez,  e  que  eu  hei  de  consentir?  ‘tá  enganado  ‘tá  muito  enganado!

Sô Moraes pregou-lhe uns olhares cheios de fogo, mas no mesmo instante abrandou,  e nada disse. E o Zé Tucura clamou, cada vez mais estomagado:

−  Essa  tiriva  que  ‘tá  aí  dentro  que  veja  que  mora  c’um  desgraçado  que  engole  as  maiores ofensas, mudo como um peixe! Ela que veja de que ralé é o miserave’ dono da casa!  Sujeito que ronca que nem bugio, mas foge que nem lebre, quando vê as grandes ocasiões!

Nos olhos de sô Moraes relampeou uma faísca terrível: mas continuou quieto, a olhar  aquele maluco que se esgoelava. E o Zé Tucura trepou ao mais alto da ira:

− Enjeita a briga, então, filho duma pulga?

Sô Moraes perdeu a paciência: avançou, num salto, pra beira do Zé Tucura e, antes  que ele tivesse lado de puxar a garrucha, riscou-lhe a argola do relho bem na coroa da cabeça:  o Zé Tucura ‘frouxou, falseou o corpo e caiu pra trás; no mesmo instante sô Moraes tomou- lhe a arma e cantou o relho em cima daquele corpo estendido. Foi um chuveiro de guascadas,  cada qual mais de sustância e deixando cada lanho e cada vergão que era uma tristeza! Pra  baixo, mesmo perto, havia uma furna – e o som das guascadas ia formando uma ecoaria que  se alastrava pelo fundão fora. Uns beneditos que estavam pinicando a perova macota do fim  da rua, percuraram a linha do mato, amedrontados e falando muito.

Neste artigo a Oncinha, que estivera na porta e ficara quieta de tudo até então, gritou  pra sô Moraes:

−  Olhe  que  chega!  O  home’  já  ‘tá  castigado!  Com  mais  um  pouco  ele  é  capaz  de  cochilar no capim!

Sô Moraes afastou-se, reparou na cara do Zé Tucura, que estava cheinha de melado  da cabeça, e teve meia dó. Reparou mais atento, e viu que as meninas dos olhos do Zé Tucura  tinham a proporção de duas piúnas, de tão arregaladas que ficaram; viu que nas barbas do Zé  Tucura  havia  uma  camaçada  de  poeira  muito  grande;  ouviu  uma  sororoca  um  tanto  engasgada, que saía por aquela garganta assim como que à força, apertando-se e espremendo-se, e chamou a Oncinha:

 −  Venha  depressa,  venha  depressa,  que  o  rapaz  ‘tá  pra  uma  dependura:  Nossa  Senhora nos valha!

A Oncinha correu ligeiro que nem uma visão, c’uma toalha de algodãozinho e uma  bacia pequena, pra fazer uma lavage’ nas feridas e botar-lhes um tiquinho de bálsimo e de  rubim;  ‘garraram  a  cuidar  do  ofendido  com  tal  carinho,  que  se  pensava  estarem  ali  dois  irmãos  tratando  dum  irmão;  por  fim,  depois  de  postos  os  primeiros  remédios  e  panos,  sô  Moraes  pegou  no  referido  pela  cintura,  amparando  o  corpo  c’ûa  mão  no  alto  das  costas,  e  levou-o pra casa; deitaram-no em uma esteira de piri, onde logo depois ele deu de melhorar,  respirando mais livre e entre-fechando os olhos: e o barulho na casa era uma coisa que até
quase que nem se percebia, tanto dos passos como das vozes em porte de segredo.
Morrer,  graças  a  Deus  o  Zé  Tucura  não  morria,  estava-se  vendo:  mas  tinha  de  se  agüentar no balanço com tamanha brecha uma porção de dias. Os donos da casa, então, era  lavage e mais lavage: ora com bálsimo, ora com rubim, ora com arnica, iam curando o outro  c’um  amor  de  admirar;  despois  dos  curativos  davam-lhe  um  de  comer  muito  bem  feito  e  gostoso:  canjas  de  perdiz  ou  de  nambu  dos  grandes,  engrossados  de  farinha  de  milho  com  caldo  de  carne  fresca,  mingaus  de  mainzena  e  araruta,  gemadas  de  café,  e  até  mandaram  buscar a uma botica de santa cruz uma comida nova que tem um nome esquisito, a mó’ que  sagu.

A  sangueira  perdida  foi  de  mais,  o  Zé  Tucura  não  podia  sarar  assim  com  dois  arrancos: paciência e bom rejume fizeram que o cabo de duas semanas pudesse já andar seu  pouco,  meio  encostado  às  paredes,  até  a  porta  da  rua  ou  da  cozinha,  onde  parava  algumas  horas,  pensa-pensando  na  vida:  viu-se  desfigurado  e  mole  que  nem  esses  bonequinhos  de  engonço que vêm lá de fora, c’os olhos no fundo e uma tremedeira nas curvas.

Antes de inteirar um mês, deu-se por livre do perigo e com alma pra tratar da vida;  assim  mesmo  inda  sô  Moraes  aconselhou  que  era  melhor  que  ele  descansasse  mais  um  bocado, não quisesse enricar da noite pro dia, trabalhasse de vagar, porque também de vagar  se vai ao longe – e rematava oferecendo-lhe o minguado dinheiro que havia na casa, mas que  seria  dado  de  muito  bom  coração.  O  Zé  Tucura  não  aceitou  tantos  oferecimentos,  e  saiu  desenleado  dos  gestos  e  esperto  como  dante:  e  no  dia  que  saiu  (decerto  pra  festejar  a  sua  alegria), foi a uma função entusiasmada no sítio dum tal Nicolau.

A notícia que tinha corrido era que o Zé Tucura, quando repassava um macho todo  cheio de histórias, caíra p’r amór de um boleio (ora quem é que não cai, quando um burro  boleia?), e por mal de pecados tomara no chatão da cabeça uns três coices: e como o caso  tinha  acontecido  na  presença  de  sô  Moraes,  sô  Moraes  recolheu-o  e  enfermou-o  daquele  feitio. Bem se vê que as coisas foram perparadas como se perpara uma cama pra um sono de  regalo: sô Moraes não queria saber de prosa c’a justiça, e o Zé Tucura não havia de gostar que  soubessem do quanto tinha apanhado...

Foi botar o pé na porta da casa do tal Nicolau, e ouvir um verso que o folgazão lhe  atirou:

“Este verso é pra você,
meu querido Zé Tucura,
que escapou, sem mais aquela,
de tamanha arranhadura.”

A moda que estavam cantando era ûa moda velha: a da Mariquinha que fugiu c’um  português do sapé, que tem uma toada bonita, de fazer tristeza no  coração mais arrivinido.  Quando os parceiros do fandango pediram pro cantador: − mais um verso! −, o cantador saiu- se logo com este:

“Zé Tucura se aprecata,
pensando no sô Moraes
e diz, triste e banzativo,
que à praça ele não vai mais.”

Pouca gente podia entender aquela empulhação, porque só mesmo o folgazão, fulano  Bento, foi quem viu a historiada, sem contar nada a ninguém: agora, como sempre se teve por  um cabra seco nos arreios, bulia c’o Zé Tucura, pra fazer graça. O Zé Tucura, se quisesse ser  ajuizado, havia de ficar quieto, como quem não dá pela coisa. Mas não: irou-se, que não teve  mais altura, pôs nomes feios no dito Bento, fez um banzé danado. E fulano Bento, no fim da  moda, quando acabou de morrer o som da viola e o sapateado, ficou de ombro a ombro co’ele,  e afiançou-lhe, alto e forte, que não aceitava uma briga barata assim.

Entrou povo no meio, apartou a dúvida, e a festa continuou. Mas porém o Zé Tucura  repetia a cada instante:

−  Co’este  nhô  Bento  eu  nada  tenho:  aquele  prosa  do  sô  Moraes  é  que  há  de  me  pagar!

Pinga veio, pinga saiu, pinga voltou. A rapaziada estumava o Zé Tucura, efeito de  estarem bebidos; o Zé Tucura ia-se esquentando de mais a mais: e ali por volta das quatro da  madrugada, ao clarear, um terno deles montou a cavalo, covidando o Zé Tucura:

− Vamo ver, Zé Tucura, vamo ver se você é home’!

O Zé Tucura amontou também, dizendo:

− O ver é nada!

E  o  bando  de  malucos  rompeu  pela  estrada-mestra  a  fora,  gritando,  cantando,  fazendo mesmo a bulha de quem está na água. Chegaram à capela quando o sol apontava.

Ora nem que as coisas estivessem preparadas de má tenção: essa hora já sô Moraes  estava de pé, junto duma guarapereva pra uma banda da casa, passando o pente na crina do  seu macho de estima a assobiando sozinho e destraído. Quando sentiu aquele terno de gente  que vinha quase galopeando, largou do puxar os carrapichos do burro, e olhou: inhorou muito  de ver o Zé Tucura tão cedo, naquele lugar onde já não vinha há tanto tempo, mas fez como  quem não tinha visto nada.

Os tais chegaram também perto do çoita-cavalo e esbarraram os animais, salvando:   ele respondeu e ficou depois quieto duma vez, sem atentar em ninguém. Foi aí que o mais  avariado do terno lhe falou:

− Sô Moraes, o Zé Tucura ‘tá aqui pra liquidar uma conta velha com vassuncê.

− Pois eu ‘tou aí, vancês ‘tão vendo, às ordens de quem quiser.

Sô Moraes, neste artigo, retirou-se um pedacinho, e trouxe um embrulho debaixo do
braço, mas sem explicar coisa nem uma. O Zé Tucura – verdade, verdade! – não estva lá tão  disposto  como  tinha  dito,  porque  decerto  se  lembrou  de  um  tempo  velho,  um  tempo  que  passou  co’aquele  sô  Moraes,  sabe  Deus  de  que  maneira!  Mas  era  perciso  ficar  co’a  cara  limpa, lá isso era: chegou-se, pois, um pouco mais pra perto da árvore, puxou uma bica de  dois canos e fogo central, e resmungou levantando-a:

− Agora é que é o nosso ajuste, bamo’ ver quem deve mais!

Não teve tempo de botar a garrucha no peito de sô Moraes, porque ele pulou violento  que  nem  uma  paca  do  mato  pro  carreador,  e  segurou-o  pelo  mais  folgado  do  colete,  c’um  talento  de  força  e  destreza  que  o  Zé  Tucura  conhecia  muito  bem:  desamarrou  mais  que  depressa o embrulho, abriu uma saia de mulher e desceu-a dos ombros do outro, sem trabalho  nem um, até a cintura, onde puxou direito o cadarço do cós, fazendo um arrocho forte; levou  depois o Zé Tucura pro largo, falando baixo e manso como quem está sonhando sonho bom: 

− Você agora vai desse jeito mas é pro cafezinho.

− Pra cadeia é que eu não vou, seo coisa-ruim.

Mas  foi,  e  foi  dali  mesmo.  Sô  Moraes  encostou-o  ao  cafezinho  por  uma  embira  dobrada, sem que ele pudesse dizer nada que lhe valesse, porque o povo acordado era ainda  pouco, pelo arraial. Os companheiros, em vez de terem dó do coitado, pegaram a  ir de longe:  e uns par de beneditos, acauso com certeza! – passaram pelo ar, num vôo de muitas curvas e falando volta e meia.

Quando o inspetor do quarteirão, que era o Salvadorzinho, apareceu no largo e foi  soltar o Zé Tucura, diz que o Zé Tucura estava chorando feito uma criança: explicou ele que  era  de  fúria,  mas  afinal  ninguém  não  acerditou.  Saiu  dali  tal  e  qual  o  boi  quando  sai  do  picador,  enveredou  pela  estrada  do  panema,  e  diz  que  se  atirou  pro  rio,  de  desesperado  da  vida:  mas  ninguém  não  acreditou,  porque  veio  logo  notícia  que  ele  andava  lá  por  Nioac,   junto c’os Dinizes, fazendo uma boa vida, por sinal.

Pois assim mesmo ainda mandou fazer uma carta pra Oncinha, daquela distância! A  carta era, a bem dizer, uma choraria sem proporção. A Oncinha recebeu-a por volta das dez  horas,  quando  batia  umas  roupas,  na  fonte,  e  quem  teve  ordem  de  a  ler  foi  o  próprio  sô  Moraes. A moça estava cantando, na toada da cirandinha, um verso velho de catira:

“Como veve quem não veve
 junto com quem quer viver!”

Acabou de ouvir ler a carta, fez uma ombreira, levantou uma peça de roupa pro ar, e  acabou de cantar o verso:

“’tá que nem o peixe em terra
saluçando pra morrer.” 


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Nota:
Valdomiro Silveira: "Mucufos" (1894-1905). Versão ortográfica do  apógrafo  de  Carmen  Lydia  de Souza  Dias, in: Alexandre de Oliveira Barbosa: "Edição anotada de Mucufos, coletânea de contos inédita de Valdomiro Silveira", da Universidade de São Paulo, 2007   

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