PAIXÃO DE RAIZ
−
Aquilo é que
era mulher (dizia
o Agostinho, do
Mandaguari): nem bem o
dia clareava, já lá ia pro
terreiro tratar das galinhas e do resto da criação. Dormia comigo na cama, e amanhecia c’os porcos no chiqueiro! Muitas
vezes, quando eu acordava, e o sol ainda
se via a uma altura pequena, já o café
‘tava pronto, a casa varrida e o feijão no fogo. Aquilo é que era mulher!
Foi realmente grande perda, a morte de nhá Gertrude: quem a
conheceu, há de até hoje repetir que era
de dar tristeza um acontecimento assim. Apesar de terem já passado uns três
anos, o pessoal do
Mandaguari ainda a
pranteava. Nhá Gertrude
deixou umas quatro dúzias de comadres esparramadas pelo
mundo: umas que a procuravam meio às escondidas, pra lhe pedirem que batizasse
o pobre dum anjinho que não tinha pai; outras, que mandavam os filhos já
viçosos à casa
dela dizer que
a queriam por
madrinha: outras, afinal,
que propunham no meio duma
conversa, como se visse por acaso de talho:
− E não é que nhá Gertrude bem
podia levar o meu caçula pra pia?
Ora se levava, isso nem havia
dúvida! Pois porque é que não havia então de levar?
Uma coisa
tão fácil que
nem mudar uma
palha! E as
mães das crianças
ficavam muito satisfeitas, muito alegres: esta nhá Gertrude
era deveras uma alma de santa! No seu coração
batia decerto um pouquinho do coração de Nossa Senhora!
E
pra dar esmolas?
Parece que trabalhava
só pro gosto
de no domingo
repartir as economias com os pobres que viajavam pelo
sítio. Até aí por volta das duas da tarde, quem
chegasse ia servido dalgum dinheiro, tão certo como três e dois serem
cinco. Depois, o cobre ficava vasqueiro
e por fim sumia, que ela também não era uma ricaça. Mas nunca foi capaz de cantar pra um pedinte: − Vá-se com Deus ,
agora não se tem! – Nunca! Dava-lhe então de
comer, dava-lhe qualquer peça de roupa, dava-lhe quitandas, dava-lhe
caninha. Ninguém saía descontente.
Boca abençoada
era a da
nhá Gertrude. Não
falava da vida
alheia, quando a
murmuração era coisa
bem correntia até,
nos costumes da
vizinhança! Se estavam
tosando uma pessoa ausente, ela barganhava de conversa tão logo, que os
maldizentes estuporavam de vexame.
Morder na honra das famílias foi malvadez que nunca ninguém conseguiu perto
dela, porque, se principiava o nhe-nhe-nhe,
no mesmo instante ela recordava: − Olhe, seu fulano, que vancê tem mulher e tem filhas! Ninguém
‘tá livre dûa mal-falada! – E o tal sujeito ficava na embatucação.
Pois bem:
morreu... Está morta:
o que se
há de fazer?
Quem pode tudo
assim determinou: resta
que a gente
se conforme com
as vontades de
quem pode tudo,
principalmente porque não há outro caminho a seguir. Pra que tamanhas
lamentações, agora? Diz que o chorar
alivia, e é certo, mas o queixar-se e o lamuriar é que não adianta nada.
Que rumor então era esse que o Agostinho
andava levantando, volta e meia, com dizer que aquilo é que era mulher? Glória a Deus nas alturas, e
paz aos homens e às mulheres que estão na terra
e debaixo da terra! Por estas falas, mais ou menos, é que o Rodrigo
aplacava as choradeiras do Agostinho,
todo santo dia.
E o Agostinho não arredava pé
daquele triste costume. Se lhe contavam que a porca de um tal tinha parido tantos leitões, que
eram muito bonitos, ele recordava que nhá Gertrude, pra cuidar duma barrigada de leitões, estava
sozinha; se lhe noticiavam que a peste de gogo
deu na galinha carijó da filha mais moça, ele suspirava, dizendo, ato
contínuo, que em vida de sua defunta
mulher nunca tinha acontecido isso no galinheiro do sítio, onde os cochos de
pau-santo viviam então
sempre cheinhos d’água;
se via passar
a égua lobuna,
lembrava-se na mesma
hora de nhá
Gertrude (não haja
trocas de sentido!),
porque nhá Gertrude,
quando montava na
supradita égua, estava
satisfeita que nem
uma santa no
altar, ainda que
semelhança seja meia
hereje. A égua
saía numa guinilha
miúda e muito
engraçada e nhá
Gertrude ia só cambeando o corpo em riba dela! Ai! Tempo, tempo que não
havia de voltar mais!
Não lhe dissessem que dona
Sicrana era boa, que dona Beltrana era decidida, porque no mesmo repente ele contestava:
− Qual história! Qual nada! Como
nhá Gertrude nunca há de vir outra a este vale de lágrimas!
E pra provar que este vale de
lágrimas é realmente de lágrimas, um punhado delas corria
devagar e devagarzinho
por aquelas rugas
compridas, que se
tinham formado em
continuação das olheiras;
passava a cacunda
da mão direita
pra enxugar a
água amarga, e
fincava o olhar
em qualquer ponto
da casa, como
se estivesse querendo
ver uma coisa
que ninguém via, com ânsia ecom
desespero.
Mas apareceu-lhe um casamento. E
quem não havia de ser a noiva? – a filha mais
cresçuda do próprio
Rodrigo, uma chibantona
e tanto, que
dava sota e
basto nas funções
daquele pedaço de mundo. O Rodrigo, quando lhe praticou em tal assunto,
foi logo explicando as coisas tim-tim
por tim-tim, dando o nome aos bois, como dizia:
−
Você, seo Agostinho,
já não é
criança, isso é
verdade. Com certeza
já anda nos
corenta e cinco, pra mais, que não pra menos. Mas isto não osta: a
Malvina também já não ‘tá mais nos
cueiros, é coisinha mais nova que a Antonia, e a Antonia, por ser simple, como
você sabe, não se pôde arranjar até
agora, com vinte e oito que já tem. Pra você viver sozinho neste canto, ‘tá aí o que não dá certo: um home,
seja como for, percisa sempre duma companheira, e companheira de virar e romper. Se você
entender que a Malvina lhe serve, eu não contrario o casamento.
Fez-se tudo em pouco tempo: o
Agostinho foi-se acostumando a olhar pra noiva com bons olhos, reparando-lhe nos modos
desempenados e na prosa larga, e muito mais em certo luxinho que a moça fazia nas sobrancelhas,
quando parecia duvidar do que se lhe afirmava.
Era uma tentação!
Depois, arrumadeira da
vida: sabia moquear
um peixe como
ninguém, serzir com todo o
cuidado a meia mais puída, cortar e costurar, dar o melhor ponto a um
arroz, plantar e quebrar um milho com
destreza, e até (ninguém nunca o tinha visto, mas era coisa afirmada
de certeza pelo
Agostinho) fazia rendas
entusiasmadas, como essas
que os turcos
vendem com faixas de papel vermelho.
Moveu-se o bairro em peso, pra
assistir ao casamento. Foram chamadas umas moças dos Campos, as mais cumbas que havia no
sertão pra dança da quadrilha, que não se sabia por estes
mambembes; veio o
sanfonista melhor que
morava na vila,
pra tocar a música da
tal dança; apareceu a rapaziada
mais afiada pro fandango, e cada violeiro levado do sarro; não faltou a negraria que esquenta os sambas por
perto da Ilha Grande, e o maior tocador de caixa dos arredores, o João Velho: e até, pra ficar
tudo completo, mexeram da Onça uns homens que
inventaram agora um folguedo diferente, muito vagaroso e esquisito, a
dança do corvo.
Lugar houvesse pra tanto povo! As
moças dos campos de par a par c’uns rapazinhos
engravatados que também surgiram como por maravilha, encheram os olhos
da gente da casa e do bairro: dançaram
depois umas rodadas, coisa de admirar! Um cantador do Capivara, que pegava no pinho com maneiras muito macias,
encarreou nada menos que uma dúzia de modas
desconhecidas; cantou algumas
pelengas sentado, fez
o que quis
da viola e
da caipirada, passarandagens difíceis,
cada sorte de
assustar: ponteava que
era um encanto,
e chegou a
apresentar certos toques
que nunca se
tinham ouvido, com
batido de papilotes
na caixa do
instrumento e voz ensurdecida de cordas.
Não faltou nada bom na festança.
O Rodrigo, que era um sujeito de melúria, jeitoso como ele só, teve artes de justar um doutor
na vila, pra fazer um discurso: e veio o doutor, e fez
um discurso bem
arranjado, gabando o mais que
podia o noivo
e a noiva,
falando em felicidades
e flores, palavras
muito bonitas e
que caíram muito
direito naquela ocasião.
O coreto que se cantou depois do
discurso, esse então nem se fale! – foi de arripiar os cabelos: o Agostinho, que é um homem de coração
maneiro, como ele mesmo sempre conta, ficou até
c’os olhos cheios d’água.
A noiva estava numa puba em
demasia: tinha vestido cor de rosa (diz que as noivas agora
não precisam mais
trazer vestido branco),
uma capela grande
de flores de
laranjeira, tanto das que vêm da
loja como das apanhadas no pomar, uns brincos de ouro e lequinho de penas também cor de rosa mais claro, sapatos
de cetim, cheios de histórias... Uma boniteza!
O Agostinho, pra dizer que estava
muito senhor dom, não estava: mas encomendou
roupas novas, botou-se todo na estica, de barba aparada e cabelo
repartido no meio, c’um par de botinas
que alumiava, e, no peito
da camisa, dois
botões de brilhantes
tão grandes, que
pareciam aquelas últimas estrelas que se apagam quando o dia vem
rompendo.
Chegou a
hora dos noivos
se acomodarem. Mas
muito tempo, ainda
muito tempo, enquanto não clareou, o sapateado do fandango
e o rufo louco da caixa bateu sem parar e em
cheio nas covancas e arrastou-se bem longe pelo embromado escuro das
capoeiras.
O
Agostinho não esperou,
na casa do
sogro, que passassem
os três dias
de hospedagem. Mandou logo cedo
arrear a tropa. A neblina era grande, mas viu-se, daí a um pouco, o primeiro raio de sol, como uma fina
lança de fogo, atravessar a cerração: e ouvia-se ainda a moda última do João Velho, na roda do
samba, quando se levantou na estrada o rumor
da ferragem dos animais em marcha.
Ia a
Malvina montada num
baio açafranado, um
cavalinho marchador e
faceiro, manso como um cachorro e
engraçado no pisar como não se achava outro na comitiva.
A par c’o Agostinho caminhava um
fulano Lope, seu compadre e amigo desde moço,
que lhe falava bem da Malvina e ao mesmo tempo lembrava as boas
qualidades da defunta Gertrude:
− Coiração delicado ‘tava ali,
não hai dúvida mas contanto que sá Malvina também é ûa moça às direitas. Já se vê que você que
você tirou duas vezes a sorte grande!
Depois, como
dobrassem o espigão
e o pendente
da outra banda
fosse mais forte,
agarrou o baio da Malvina uma andadura esquipada, muito bonita e doce,
que fazia dançar dum belo jeito o roupão
da cavaleira. O Lope virou de conversa:
− Agora, falando um pouco de
verdade, o Rodrigo não fez cainhage nem ridiqueza c’a filha: aprontou-lhe uma rica festa,
vestiu-a feito uma rainha, e ainda por cima de tudo lhe dá de presente um cavalo daquele feitio! Bom
cavalo, compadre, repare bem: é tocar-lhe um
pouco na rédea,
pega num picado
lindo que dá
gosto; é afrouxar
a mão outro
pouco e descansar-lhe
o corpo em
riba, sai-se desvirilhando
numa balancinha que
parece uma rede.
Não dá trabalho nem um, tem todo o preceito!
Mas o Agostinho ficara ainda em
nhá Gertrude. E foi c’uma voz carregada de tristeza que ele respondeu ao outro:
− Qual! Como a Gertrude não hai!
Aquilo é que era mulher!
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Nota:
Valdomiro Silveira: "Mucufos" (1894-1905). Versão ortográfica do apógrafo de Carmen Lydia de Souza Dias, in: Alexandre de Oliveira Barbosa: "Edição anotada de Mucufos, coletânea de contos inédita de Valdomiro Silveira", da Universidade de São Paulo, 2007
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