quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Valdomiro Silveira: "Cobras Mal Acostumadas"

COBRAS MAL ACOSTUMADAS
  
−  No  topo  daquele  morro,  vocês  ‘tão  vendo  o  cupim  macota  que  ficou  solteiro  no  meio do rapadão? Tem uma história. A bem dizer, não é do cupim a tal história: vem a ser de  uma urutu que se arranchou p’r ali ansim...

À  frente  de  sua  casa,  no  Capivari,  proseava  o  Querubino  com  dois  vizinhos,  João   Vermelho e Tararé, pouco antes do almoço. Iam os dois passando pela estrada, a caminho da  vila,  quando  ele  os  viu  e  os  convidou  a  portar.  Conversa  puxa  conversa,  falou-se  de  muita  coisa  e  também  de  alguns  homens  e  alguns  bichos.  No  ponto  em  que  estavam,  o  Tararé,  sempre caçoísta e brincalhão, reclamou com urgência:

− De cupim ou de urutu, pois que saia a história!

−  E,  a  bem  dizer,  não  é  só  da  urutu:  é  de  uma  vaquinha  nova  da  mana  Bernarda,  chamada Bem Feita, que tinha perdido a primeira cria.

− Daí?

− Daí... Mas porém o melhor é contar o que assucedeu desde o princípio, tim-tim por  tim-tim.

“A cria da Bem Feita (que, por sinal, era um bezerro lindo!), morreu picada de cobra.  Não se pôde saber onde se deu o acontecimento da mordida, pra campear e matar a cobra. Do  que  logo  se  tratou  foi  de  aporveitar  o  leite  da  novilha,  que  era  bastante  e  bom.  Dois,  três,  quatro dias, correu tudo em rumo certo: de manhã e de tarde ela aparecia por si mesma aqui  no canto, pra comer sua ração de milho e deixar meio balde de leite...

− Comia ração de milho, aqui no Capivari?

− Intão? Uma vaca de Querubino ou de mana Bernarda não havéra de comer ração de  milho? Você ‘tá fazendo galhofa, Tararé!

“No quinto dia a Bem Feita não veio de manhã, nem veio no sexto, nem no resto da  sumana: apontava p’r aí já despois do café, com jeito que parecia de envergonhada, e c’o peito  murcho  a  conta  inteira.  A  gente  perguntava,  uns  pros  outros,  admirada  e  espantada:  o  que  será? O que não será? E ninguém sabia de nada, pra dar reposta que valesse.

“De tarde, na hora da ração, o leite da novilha não rendia nada. Adonde é que rodava  aquele leite, quando se ‘tava bem vendo que ela não escondia nem não negava? Quem deu no  vinte, a final de contas, foi a própria mana Bernarda, ‘maginando e dizendo que naquilo havia  capiangage’. Peguemo’ a reparar nas idas e vindas da Bem Feita, entre meio do dia, e nada.  Fiquemo’  de  espreita  no  fechar  da  tarde,  que  era  quando  ela  quaji  galopeava  pra  aqui,  percurando a segunda ração, e nada. Resolvemo’, à vista dos autos, que eu fizesse uma ronda  cedinho, desde a premeira ruiva da madrugada, ante’ da vaquinha levantar da cancha. E o que  eu fui descobrir me deixou c’uma boca deste tamanho!

“Mal e malzinho que principiava o raiar, ela trepava p’r o morro acima, parava no  cupim,  encostava  no  cupim  e  berrava  que  era  uma  beleza.  A  urutu  vinha-se  arrastando  de  carreira, no mesmo sofragante, espichava o corpo cupim arriba, grudava a boca na maminha  mais cheia, esvaziava aquela, ‘garrava a chupar a outra, e ansim por diante. Quando a urutu  escorregava inté a grama, dando por acabada a mamação, a Bem Feita abaixava a cabeça pra  tal grama atoa que vocês ‘tão vendo, e levava uma temporada louca passando a língua naquele  pasto matado”.

− E daí?

−  Daí  me  perparei  co’a  minha  espingarda  baluda,  no  outro  raiar  carquei  fogo  na  cacunda da urutu, vim s’imbora pra casa c’o meu coração aliviado. Você ‘mó’ que também ‘tá  fazendo galhofa, João Vermelho?

− Não, Querubino: ‘tou querendo é só preguntar se a vaquinha não mandou dar parte  de você pro delegado. Em todo causo, veja que bato a mão dereita neste portal da sua casa...

− Você ‘tá duvidando? E você, Tararé, o que é que pertende co’essa risada que não  tem ânimo de abrir?

−  Eu,  nada.  Mas  porém  quero  que  você  veja  que  eu  bato  a  maão  dereita  no  outro  portal da sua casa...

O Querubino ia-se enfarruscando. Mas lembrou-se de que estava no seu e convidara  os dois vizinhos a chegar. Achou de melhor partido fazer como quem não vê ou, quando vê,  não ouve. E foi além:

− Pois intão agora vocês vão ouvir uma história mais importante do que essa. Não  querendo aquerditar, vocês podem ir apôs de prima Custódia, que mora aí perto, na Lagoinha,  e poderá dizer se eu aumento ou ejagéro alguma coisa. O Sá é melhor testemunha ainda.

“Prima Custódia, vivia muito agoniada, de certo tempo pra cá, por ver que o único  filho que Deus lhe deu, e que já ia compretando os cincos meses, cada vez esmagrecia mais. O  marido (pobre do Sá!) andava de curandeiro pra curandeiro, tinha inté levado a criança na casa  de um doutor afamado que só faltava fazer milagres: o doutor lhe disse que o pequeno não  tinha doença, ‘tava só padecendo fome, e receitou caldo de laranja e banana assada, pra ajudar  o  seio da mãe.

“Ora  aquilo não deixou de espantar  a  gente. Pois se prima Custódia era  mulher de  saúde, comia bem e punha o peito na boca do menino, a bem dizer, toda hora, como podia lá  ser que o menino vivesse esganado? Mas porém a gente via, ‘o mesmo tempo, que sempre a  criança largava do peito chorando e só assossegava c’um paninho açucarado na língua.

“Um  dia  que  o  Sá  não pôde  ir  serrar  no  mato  p’r  amór  de  a  chuva,  ‘tava  em  casa  fabricando um pio de nambuguaçu95, quando da cumieira caiu um embrulho no chão da sala.
O Sá pasmou de ver que o embrulho era uma jararaca; virou os olhos pra um lado e pra outro,  e o que achou mais à mão foi uma foice que tinha acabado de encabar. Deu um golpe c’a foice   no meio da jararaca, a jararaca partiu-se em dois pedaços, e de cada pedaço correu leite que  embranqueceu a sala de fora a fora.

“Ficou-se intão sabendo que a cobra mamava na prima Custódia, enquanto ela ‘tava  dormindo (e o sono de prima Custódia inda é pesado inté hoje), razão pela qual o Sazinho não  ia pra diante. Liquidada a cobra, o Sazinho pegou a engordar e não parou: agora, com perto de  onze meses, ‘tá um bicho! Paga a pena ver o Sazinho!”

O João Vermelho e o Tararé perderam a reverência, guaiaram duas gargalhadas de  botar o mundo abaixo. Antes, porém, que viesse o mundo abaixo, saiu-se o Tararé com uma  barbaridade:

− Já vi contada essa história mais bem contada, seo Querubino, você me discurpe.  Pra engambelar o inocente, e dar a perceber que era bico de peito o que ia indo, a cobra lhe  empurrava o rabinho na boca... Vira, mexe, você pregou na gente o segundo 1º de abril, duma  vezada só. Abastava o da Bem Feita, este agora esparramou que nem água de ladrão. E olhe:  entra também num portal da sua casa...

Quando  o  Tararé  bateu  a  palmada  no  portal,  não  teve  freio  nem  buçal  a  fúria  do  Querubino:

− Você, pra quem o 1º de abril principia no Ano Bom e arremata depois do Natal,  pensa que os outros são da sua iguala? Pra muita gente, nunca não hai na vida nem um dia de  mentirage’, a verdade se tem de dizer todo dia, haja o que houver: eu sou de gente ansim.

Em tom de zombaria, mas sem dúvida com prudência, o João Vermelho pôs água na  fervura:

− Bamo’ dar aqui o chega. Isto não é assunto que mereça faca e revorve’!

Despedidas meio secas. O Querubino não era queimador de campo, não gostou que  lhe tomassem por inventadas aquelas duas coisas: tinha amarrado um burro, deixou o burro  amarrado. Mas, de repente, caiu em si:

− Por via de bicho ruim, como é cobra, hei de ficar político, daqui pra diante, co’estes  dois desmiolados?

Os dois desmiolados já  iam dobrar o  cotovelo da estrada  real, e ouviram a voz do  Querubino,  levada  longe  e  mais  grossa  porque  saía  de  uma  boca  escondida  na  concha  das  mãos:

− Pra trás, Vermelho! Pra trás, Tararé! Venham beber o café mofado que eu tenho  agora:  e  um  dia  na  vida  vocês  hão  de  ter  visto  o  que  é  café  torrado  por  mana  Bernarda  e  bebido em tigela de pombinho!


---
Nota:
Valdomiro Silveira: "Mucufos" (1894-1905). Versão ortográfica do  apógrafo  de  Carmen  Lydia  de Souza  Dias, in: Alexandre de Oliveira Barbosa: "Edição anotada de Mucufos, coletânea de contos inédita de Valdomiro Silveira", da Universidade de São Paulo, 2007  

Nenhum comentário:

Postar um comentário