COBRAS MAL ACOSTUMADAS
−
No topo daquele
morro, vocês ‘tão
vendo o cupim
macota que ficou
solteiro no meio do rapadão? Tem uma história. A bem
dizer, não é do cupim a tal história: vem a ser de uma urutu que se arranchou p’r ali ansim...
À
frente de sua
casa, no Capivari,
proseava o Querubino
com dois vizinhos,
João Vermelho e Tararé, pouco antes do almoço. Iam
os dois passando pela estrada, a caminho da vila,
quando ele os
viu e os
convidou a portar.
Conversa puxa conversa,
falou-se de muita coisa e
também de alguns
homens e alguns
bichos. No ponto
em que estavam,
o Tararé, sempre caçoísta e brincalhão, reclamou com
urgência:
− De cupim ou de urutu, pois que
saia a história!
−
E, a bem
dizer, não é
só da urutu:
é de uma
vaquinha nova da
mana Bernarda, chamada Bem Feita, que tinha perdido a
primeira cria.
− Daí?
− Daí... Mas porém o melhor é
contar o que assucedeu desde o princípio, tim-tim por tim-tim.
“A cria da Bem Feita (que, por
sinal, era um bezerro lindo!), morreu picada de cobra. Não se pôde saber onde se deu o acontecimento
da mordida, pra campear e matar a cobra. Do que
logo se tratou
foi de aporveitar
o leite da
novilha, que era
bastante e bom.
Dois, três, quatro dias, correu tudo em rumo certo: de
manhã e de tarde ela aparecia por si mesma aqui no canto, pra comer sua ração de milho e
deixar meio balde de leite...
− Comia ração de milho, aqui no
Capivari?
− Intão? Uma vaca de Querubino ou
de mana Bernarda não havéra de comer ração de milho? Você ‘tá fazendo galhofa, Tararé!
“No quinto dia a Bem Feita não
veio de manhã, nem veio no sexto, nem no resto da sumana: apontava p’r aí já despois do café,
com jeito que parecia de envergonhada, e c’o peito murcho
a conta inteira.
A gente perguntava,
uns pros outros,
admirada e espantada:
o que será? O que não será? E ninguém sabia de nada,
pra dar reposta que valesse.
“De tarde, na hora da ração, o
leite da novilha não rendia nada. Adonde é que rodava aquele leite, quando se ‘tava bem vendo que
ela não escondia nem não negava? Quem deu no vinte, a final de contas, foi a própria mana
Bernarda, ‘maginando e dizendo que naquilo havia capiangage’. Peguemo’ a reparar nas idas e
vindas da Bem Feita, entre meio do dia, e nada. Fiquemo’
de espreita no
fechar da tarde,
que era quando
ela quaji galopeava
pra aqui, percurando a segunda ração, e nada.
Resolvemo’, à vista dos autos, que eu fizesse uma ronda cedinho, desde a premeira ruiva da madrugada,
ante’ da vaquinha levantar da cancha. E o que eu fui descobrir me deixou c’uma boca deste
tamanho!
“Mal e malzinho que principiava o
raiar, ela trepava p’r o morro acima, parava no cupim,
encostava no cupim
e berrava que
era uma beleza.
A urutu vinha-se
arrastando de carreira, no mesmo sofragante, espichava o
corpo cupim arriba, grudava a boca na maminha mais cheia, esvaziava aquela, ‘garrava a
chupar a outra, e ansim por diante. Quando a urutu escorregava inté a grama, dando por acabada a
mamação, a Bem Feita abaixava a cabeça pra tal grama atoa que vocês ‘tão vendo, e levava
uma temporada louca passando a língua naquele pasto matado”.
− E daí?
−
Daí me perparei
co’a minha espingarda
baluda, no outro
raiar carquei fogo
na cacunda da urutu, vim s’imbora
pra casa c’o meu coração aliviado. Você ‘mó’ que também ‘tá fazendo galhofa, João Vermelho?
− Não, Querubino: ‘tou querendo é
só preguntar se a vaquinha não mandou dar parte de você pro delegado. Em todo causo, veja que
bato a mão dereita neste portal da sua casa...
− Você ‘tá duvidando? E você,
Tararé, o que é que pertende co’essa risada que não tem ânimo de abrir?
−
Eu, nada. Mas
porém quero que
você veja que
eu bato a
maão dereita no
outro portal da sua casa...
O Querubino ia-se enfarruscando.
Mas lembrou-se de que estava no seu e convidara os dois vizinhos a chegar. Achou de melhor
partido fazer como quem não vê ou, quando vê, não ouve. E foi além:
− Pois intão agora vocês vão
ouvir uma história mais importante do que essa. Não querendo aquerditar, vocês podem ir apôs de
prima Custódia, que mora aí perto, na Lagoinha, e poderá dizer se eu aumento ou ejagéro alguma
coisa. O Sá é melhor testemunha ainda.
“Prima Custódia, vivia muito
agoniada, de certo tempo pra cá, por ver que o único filho que Deus lhe deu, e que já ia
compretando os cincos meses, cada vez esmagrecia mais. O marido (pobre do Sá!) andava de curandeiro pra
curandeiro, tinha inté levado a criança na casa de um doutor afamado que só faltava fazer
milagres: o doutor lhe disse que o pequeno não tinha doença, ‘tava só padecendo fome, e
receitou caldo de laranja e banana assada, pra ajudar o seio
da mãe.
“Ora aquilo não deixou de espantar a
gente. Pois se prima Custódia era
mulher de saúde, comia bem e
punha o peito na boca do menino, a bem dizer, toda hora, como podia lá ser que o menino vivesse esganado? Mas porém a
gente via, ‘o mesmo tempo, que sempre a criança
largava do peito chorando e só assossegava c’um paninho açucarado na língua.
“Um dia
que o Sá não
pôde ir
serrar no mato
p’r amór de
a chuva, ‘tava
em casa fabricando um pio de nambuguaçu95, quando da
cumieira caiu um embrulho no chão da sala.
O Sá pasmou de ver que o embrulho
era uma jararaca; virou os olhos pra um lado e pra outro, e o que achou mais à mão foi uma foice que
tinha acabado de encabar. Deu um golpe c’a foice no
meio da jararaca, a jararaca partiu-se em dois pedaços, e de cada pedaço correu
leite que embranqueceu a sala de fora a
fora.
“Ficou-se intão sabendo que a
cobra mamava na prima Custódia, enquanto ela ‘tava dormindo (e o sono de prima Custódia inda é
pesado inté hoje), razão pela qual o Sazinho não ia pra diante. Liquidada a cobra, o Sazinho
pegou a engordar e não parou: agora, com perto de onze meses, ‘tá um bicho! Paga a pena ver o
Sazinho!”
O João Vermelho e o Tararé
perderam a reverência, guaiaram duas gargalhadas de botar o mundo abaixo. Antes, porém, que viesse
o mundo abaixo, saiu-se o Tararé com uma barbaridade:
− Já vi contada essa história
mais bem contada, seo Querubino, você me discurpe. Pra engambelar o inocente, e dar a perceber
que era bico de peito o que ia indo, a cobra lhe empurrava o rabinho na boca... Vira, mexe,
você pregou na gente o segundo 1º de abril, duma vezada só. Abastava o da Bem Feita, este agora
esparramou que nem água de ladrão. E olhe: entra também num portal da sua casa...
Quando o
Tararé bateu a
palmada no portal,
não teve freio
nem buçal a
fúria do Querubino:
− Você, pra quem o 1º de abril
principia no Ano Bom e arremata depois do Natal, pensa que os outros são da sua iguala? Pra
muita gente, nunca não hai na vida nem um dia de mentirage’, a verdade se tem de dizer todo
dia, haja o que houver: eu sou de gente ansim.
Em tom de zombaria, mas sem
dúvida com prudência, o João Vermelho pôs água na fervura:
− Bamo’ dar aqui o chega. Isto
não é assunto que mereça faca e revorve’!
Despedidas meio secas. O
Querubino não era queimador de campo, não gostou que lhe tomassem por inventadas aquelas duas
coisas: tinha amarrado um burro, deixou o burro amarrado. Mas, de repente, caiu em si:
− Por via de bicho ruim, como é
cobra, hei de ficar político, daqui pra diante, co’estes dois desmiolados?
Os dois desmiolados já iam dobrar o
cotovelo da estrada real, e
ouviram a voz do Querubino, levada
longe e mais
grossa porque saía
de uma boca
escondida na concha
das mãos:
− Pra trás, Vermelho! Pra trás,
Tararé! Venham beber o café mofado que eu tenho agora:
e um dia
na vida vocês
hão de ter
visto o que é café
torrado por mana
Bernarda e bebido em tigela de pombinho!
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Nota:
Valdomiro Silveira: "Mucufos" (1894-1905). Versão ortográfica do apógrafo de Carmen Lydia de Souza Dias, in: Alexandre de Oliveira Barbosa: "Edição anotada de Mucufos, coletânea de contos inédita de Valdomiro Silveira", da Universidade de São Paulo, 2007
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