A QUADRILHA DE JACOB PATACHO
Eram sete horas, a noite estava
escura, e o céu ameaçava chuva.
Terminara a ceia, composta de
cebola cozida e pirarucu assado, o velho Salvaterra dera graças a Deus pelos
favores recebidos; a sora Maria dos Prazeres tomava pontos em umas velhas meias
de algodão muito remendadas; a Anica enfiava umas contas destinadas a formar um
par de braceletes, e os dois rapazes, espreguiçando-se, conversavam em voz
baixa sobre a última caçada. Alumiava as paredes negras da sala uma candeia de
azeite, reinava um ar tépido de tranqüilidade e sossego, convidativo do sono.
Só se ouviam o murmúrio brando do Tapajós e o ciciar do vento nas folhas das
pacoveiras. De repente, a Anica inclinou a linda cabeça, e pôs-se a escutar um
ruído surdo que se aproximava lentamente.
- Ouvem? - perguntou.
O pai e os irmãos escutaram
também por alguns instantes, mas logo concordaram, com a segurança dos
habitantes de lugares ermos:
- É uma canoa que sobe o rio.
- Quem há de ser?
- A estas horas, - opinou a sora
Maria dos Prazeres, - não pode ser gente de bem.
- E por que não, mulher? -
repreendeu o marido, - isto é alguém que segue para Irituia.
- Mas quem viaja a estas horas? -
insistiu a timorata mulher.
- Vem pedir-nos agasalho,
redargüiu. - A chuva não tarda, e esses cristãos hão de querer abrigar-se.
A sora Maria continuou a
mostrar-se apreensiva. Muito se falava então nas façanhas de Jacob Patacho, nos
assassinatos que a miúdo cometia; casos estupendos se contavam de um horror
indizível: incêndios de casas depois de pregadas as portas e janelas para que
não escapassem à morte os moradores. Enchia as narrativas populares a
personalidade do terrível Saraiva, o tenente da quadrilha cujo nome não se
pronunciava sem fazer arrepiar as carnes aos pacíficos habitantes do Amazonas.
Félix Salvaterra tinha fama de rico e era português, duas qualidades perigosas
em tempo de cabanagem. O sítio era muito isolado e grande a audácia dos
bandidos. E a mulher tinha lágrimas na voz lembrando estes fatos ao marido.
Mas o ruído do bater dos remos
n'água cessou, denotando que a canoa abicara ao porto do sítio. Ergueu-se
Salvaterra, mas a mulher agarrou-o com ambas as mãos:
- Onde vais, ó Felix?
Os rapazes lançaram vistas cheias
de confiança às suas espingardas, penduradas na parede e carregadas com bom
chumbo, segundo o hábito de precaução naqueles tempos infelizes; e seguiram o
movimento, do pai. A Anica, silenciosa, olhava alternativamente para o pai e
para os irmãos.
Ouviram-se passos pesados no
terreiro, e o cão ladrou fortemente. Salvaterra desprendeu-se dos braços da
mulher e abriu a porta. A escuridão da noite não deixava ver coisa alguma, mas
uma voz rústica saiu das trevas.
- Boa-noite, meu branco.
Quem está aí? - indagou o
português. - Se é de paz, entre com Deus.
Então dois caboclos apareceram no
círculo de luz projetado fora da porta pela candeia de azeite. Trajavam calças
e camisa de riscado e traziam na cabeça grande chapéu de palha. O seu aspecto
nada oferecia de peculiar e distinto dos habitantes dos sítios do Tapajós.
Tranqüilo, o português afastou-se
para dar entrada nos noturnos visitantes. Ofereceu-lhes da sua modesta ceia,
perguntou-lhes donde vinham e para onde iam.
Vinham de Santarém, e iam a
Irituia, à casa do tenente Prestes levar uma carga de fazendas e molhados por
conta do negociante Joaquim Pinto; tinham largado do sítio de Avintes às quatro
horas da tarde, contando amanhecer em Irituia, mas o tempo se transtornara à
boca da noite, e eles, receando a escuridão e a pouca prática que tinham
daquela parte do rio, haviam deliberado parar no sítio de Salvaterra, e
pedir-lhe agasalho por uma noite. Se a chuva não desse, ou passasse com saída
da lua para a meia-noite, continuariam a sua viagem.
Os dois homens falavam
serenamente, arrastando as palavras no compasso preguiçoso do caboclo que
parece não ter pressa de acabar de dizer. O seu aspecto nada oferecia de
extraordinário. Um, alto e magro, tinha a aparência doentia; o outro reforçado,
baixo, e de cara bexigosa, não era simpático à dona da casa, mas afora o olhar
de lascívia torpe que dirigia a Anica, quando julgava que o não viam, parecia a
criatura mais inofensiva deste mundo.
Depois que a sora Maria mostrou
ter perdido os seus receios, e que a Anica serviu aos caboclos os restos da
ceia frugal daquela honrada família, Salvaterra disse que eram horas de dormir.
O dia seguinte era de trabalho e convinha levantar cedo para ir em busca da
pequena e mais da malhada, duas vacas que lhe haviam desaparecido naquele dia.
Então um dos tapuios, o alto, a quem o companheiro chamava cerimoniosamente -
seu João - levantou-se e declarou que iria dormir na canoa, a qual posto que
muito carregada, dava acomodação a uma pessoa, pois era uma galeota grande.
Salvaterra e os filhos tentaram dissuadi-lo do projeto, fazendo ver que a noite
estava má e que a chuva não tardava, mas o tapuio, apoiado pelo companheiro,
insistiu. Nada, que as fazendas não eram dele e seu Pinto era um branco muito
rusguento, e sabia lá Deus o que podia acontecer; os tempos não andavam bons,
havia muito tapuio ladrão aí por esse, acrescentava como um riso alvar, e de
mais ele embirrava com esta história de dormir dentro de uma gaiola. Quanto à
chuva pouco se importava, queria segurança e agasalho para as fazendas: ele
tinha o couro duro e um excelente japá na tolda da galeota.
No fundo quadrava perfeitamente à
sora Maria a resolução do seu João, não só porque pensava que mais vale um
hóspede do que dois, como também por lhe ser difícil acomodar os dois viajantes
na sua modesta casinha. Assim não duvidou aplaudir a lembrança, dizendo ao
marido:
- Deixa lá, homem, cada um sabe
de si e Deus de todos.
O caboclo abriu a porta e saiu
acompanhado pelo cão de guarda, cuja cabeça amimava, convidando-o para lhe
fazer companhia, por via das dúvidas. A noite continuava escura como breu.
Lufadas de um vento quente, prenúncio de tempestade, açoutavam nuvens negras
que corriam para o sul como fantasmas em disparada. As árvores da beirada
soluçavam, vergadas pelo vento, e grossas gotas de águas começavam a cair sobre
o chão ressequido, de onde subia um cheiro ativo de barro molhado.
- Agasalhe-se bem, patrício, - gritou
o português ao caboclo que saía. E, fechando a porta com a tranca de pau, veio
ter com a família.
Logo depois desejavam boa-noite
uns aos outros; o hóspede que deu o nome de Manuel, afundou-se numa rede, que
lhe armaram na sala, e ainda não havia meia hora que saíra seu João, já a sora
Maria, o marido e os filhos dormiam o sono reparador das fadigas do dia,
acalentado pela calma de uma consciência honesta.
A Anica depois de rezar à Virgem
das Dores, sua padroeira, não pudera fechar os olhos. Impressionara-a muito o
desaparecimento da pequena e da malhada, que acreditava filho de um roubo, e
sem querer associava na sua mente a esse fato as histórias terríveis que lhe
lembrara a mãe pouco antes, sobre os crimes diariamente praticados pela
quadrilha de Jacob Patacho. Eram donzelas raptadas para saciar as paixões dos
tapuios; pais de família assassinados barbaramente; crianças atiradas ao rio
com uma pedra ao pescoço, herdades incendiadas, um quatro interminável de
atrocidades inauditas que lhe dançava diante dos olhos, e parecia reproduzido
nas sombras fugitivas projetadas nas paredes de barro escuro do seu quartinho
pela luz vacilante da candeia de azeite de mamona.
E por uma singularidade, que a
rapariga não sabia explicar, em todos aqueles dramas de sangue e de fogo havia
uma figura saliente, o chefe, o matador, o incendiário, demônio vivo que
tripudiava sobre os cadáveres quentes das vítimas, no meio das chamas dos
incêndios, e, produto de um cérebro enfermo, agitado pela vigília, as feições
desse monstro eram as do pacífico tapuio que ela ouvia roncar placidamente no
fundo da rede na sala vizinha. Mas por maiores esforços que a moça fizesse para
apagar da sua imaginação a figura baixa e bexigosa do hóspede, rindo
nervosamente da sua loucura, mal fechava os olhos, lá lhe apareciam as cenas de
desolação e de morte, no meio das quais progrediam os olhos ardentes, o nariz
chato e a boca desdentada do tapuio, cuja figura, entretanto, desenrolava-se
inteira na sua mente espavorida, absorvendo-lhe a atenção e resumindo a
tragédia feroz que o cérebro imaginava.
Pouco a pouco, procurando provar
a si mesma que o hóspede nada tinha de comum com o personagem que sonhara, e
que a sua aparência era toda pacífica, de um pobre tapuio honrado e inofensivo,
examinando-lhe mentalmente uma a uma as feições, foi-lhe chegando a convicção
de que não fora aquela noite a primeira vez que o vira, convicção que se
arraigava no seu espírito, à medida que se lhe esclarecia a memória. Sim, era
aquele mesmo; não era a primeira vez que via aquele nariz roído de bexigas,
aquela boca imunda e servil, a cor azivranhada, a estatura baixa e vigorosa,
sobretudo aquele olhar indigno, desaforado, torpe que a incomodara tanto na
sala, queimando-lhe os seios. Já uma vez fora insultada por aquele olhar. Onde?
Como? Não podia lembrar-se, mas com certeza não era a primeira vez que o
sentia. Invocava as suas reminiscências. No Funchal não podia ser; no sítio
também não fora; seria no Pará quando chegara com a mãe, ainda menina, e
acomodaram-se em uma casinha da rua das Mercês? Não; era mais recente, muito
mais recente. Bem; parecia recordar-se agora. Fora em Santarém, havia coisa de
dois anos ou três, quando ali estivera com o pai para assistir a uma festa
popular, o sahiré. Hospedara-se então na casa do negociante Joaquim Pinto,
patrício e protetor de seu pai, e foi ali, em uma noite de festa, quando se
achava em companhia de outras raparigas sentada à porta da rua, a ver passar a
gente que voltava de igreja, que se sentiu atormentada por aquele olhar lascivo
e tenaz, a ponto de retirar-se para a cozinha trêmula e chorosa. Sim, nenhuma
dúvida mais podia haver, o homem era um agregado de Joaquim Pinto, um camarada
antigo da casa, por sinal que, segundo lhe disseram as mucamas da mulher do
Pinto, era de Cametá e se chamava Manuel Saraiva.
Neste ponto de suas
reminiscências, a Anica foi assaltada por uma idéia medonha que lhe fez correr
um frio glacial pela espinha dorsal, ressecou-lhe a garganta, e inundou-lhe de
suor a fronte. Saraiva! Mas era este o nome do famigerado tenente de Jacob
Patacho, cuja reputação de malvadez chegara aos recônditos sertões do Amazonas,
e cuja atroz e brutal lascívia excedia em horror aos cruéis tormentos que o
chefe da quadrilha inflingia às suas vítimas. Seria aquele tapuio de cara
bexigosa e ar pacífico o mesmo salteador da baía do Sol e das águas dos
Amazonas, o bárbaro violador de virgens indefesas, o bandido, cujo nome mal se
pronunciava nos serões das famílias pobres e honradas, tal o medo que incutia?
Seria aquele homem de maneiras sossegadas e corteses, de falar arrastado e
humilde o herói dos estupros e dos incêndios, a fera em cujo coração de bronze
jamais pudera germinar o sentimento da piedade?
A idéia da identidade do tapuio
que dormia na sala vizinha com o tenente de Jacob Patacho, gelou-a de terror.
Perdeu os movimentos e ficou por algum tempo fria, com a cabeça inclinada para
trás, a boca entreaberta e os olhos arregalados, fixos na porta da sala; mas de
repente o clarão de um pensamento salvador iluminou-lhe o cérebro; convinha não
perder tempo, avisar o pai e os irmãos, dar o grito de alarma; eram todos
homens possantes e decididos, tinham boas espingardas; os bandidos eram dois
apenas, seriam prevenidos, presos antes de poderem oferecer séria resistência.
Em todo o caso, fossem ou não fossem assassinos e ladrões, mais valia estarem
os de casa avisados, passarem uma noite em claro do que correrem o risco de
serem assassinados a dormir. Saltou da cama, enfiou as saias e correu para a
porta, mas a reflexão fê-la estacar cheia de desânimo. Como prevenir o pai, sem
correr a eventualidade de acordar o tapuio? A sala em que este se aboletara
interpunha-se entre o seu quarto e o de seus pais; para chegar ao dormitório
dos velhos era forçoso passar por baixo da rede do caboclo, que não podia
deixar de acordar, principalmente ao ruído dos gonzos enferrujados da porta
que, por exceção e natural recato da moça, se fechara aquela noite. E se
acordasse seria ela talvez a primeira vítima, sem que o sacrifício pudesse
aproveitar à sua família.
Um silvo agudo, imitante do canto
do urutaí, arrancou-a a estas reflexões, e pondo os ouvidos à escuta,
pareceu-lhe que o tapuio da sala vizinha cessara de ressonar. Não havia tempo a
perder, se queria salvar os seus. Lembrou-se então de saltar pela janela,
rodear a casa e ir bater à janela do quarto do pai. Já ia realizar esse plano
quando cogitou de estar o outro tapuio, o seu João, perto da casa para
responder ao sinal do companheiro, e entreabriu com toda precaução a janela,
espreitando pelo vão.
A noite estava belíssima.
O vento forte afugentara as
nuvens para o sul, e a lua subia lentamente no firmamento, prateando as águas
do rio e as clareiras da floresta. A chuva cessara inteiramente, e do chão
molhado subia uma evaporação de umidade, que, misturada ao cheiro ativo das
laranjeiras em flor, dava aos sentidos uma sensação de odorosa frescura.
A princípio a rapariga,
deslumbrada pelo luar, nada viu, mas afirmando a vista percebeu umas sombras
que se esgueiravam por entre as árvores do porto, e logo depois distinguiu
vultos de tapuios cobertos de grandes chapéus de palha, e armados de terçados,
que se dirigiam para a casa.
Eram quinze ou vinte, mas à
rapariga de susto pareceu uma centena, porque de cada tronco de árvore a sua
imaginação fazia um homem.
Não havia que duvidar. Era a
quadrilha de Jacob Patacho que assaltava o sítio.
Todo o desespero da situação em
que se achava apresentou-se claramente à inteligência da rapariga. Saltar pela
janela e fugir, além de impossível, porque a claridade da lua a denunciaria aos
bandidos, seria abandonar seus pais e irmãos, cuja existência preciosa seria
cortada pelo punhal dos sicários de Patacho durante o sono, e sem que pudessem
defender-se ao menos. Ir acordá-los seria entregar-se às mãos do feroz Saraiva,
e sucumbir aos seus golpes antes de realizar o intento salvador. Que fazer? A
donzela ficou algum tempo indecisa, gelada de terror, com o olhar fixo nas
árvores do porto, abrigo dos bandidos, mas de súbito, tomando uma resolução
heróica, resumindo todas as forças em um supremo esforço, fechou rapidamente a
janela e gritou com todo o vigor dos seus pulmões juvenis:
- Aqui d'el-rei! Os de Jacob
Patacho!
A sua voz nervosa repercutiu como
um brado de suprema angústia pela modesta casinha, e o eco foi perder-se
dolorosamente, ao longe, na outra margem do rio, dominando o ruído da corrente
e os murmúrios noturnos da floresta. Súbito rumor fez-se na casa até então
silenciosa, rumor de espanto e de sobressalto em que se denunciava a voz rouca
e mal segura de pessoas arrancadas violentamente a um sono pacífico; a rapariga
voltou-se para o lado da porta da sala, mas sentiu-se presa por braços de
ferro, ao passo que um asqueroso beijo, mordedura de réptil antes do que humana
carícia, tapou-lhe a boca. O tapuio bexigoso, Saraiva, sem que a moça o pudesse
explicar, entrara sorrateiramente no quarto, e se aproximara dela sem ser
pressentido.
A indignação do pudor ofendido e
a repugnância indizível que se apoderou da moça ao sentir o contato dos lábios
e do corpo do bandido, determinaram uma resistência que o seu físico delicado
parecia não poder admitir. Uma luta incrível se travou entre aquela branca e
rosada criatura seminua e o tapuio que a enlaçava com os braços cor de cobre,
dobrando-lhe o talhe flexível sob a ameaça de novo contato de sua boca
desdentada e negra, e procurando atirá-la ao chão. Mas a rapariga segurara-se
ao pescoço do homem com as mãos crispadas pelo esforço espantoso do pudor e do
asco, e o tapuio, que julgara fácil a vitória, e tinha as mãos ocupadas em
apertar-lhe a cintura em um círculo de ferro, sentiu faltar-lhe o ar, opresso
pelos desejos brutais que tanto o afogavam quanto a pressão dos dedos nervosos
e afilados da vítima.
Mas se a sensualidade feroz do
Saraiva, unida à audácia que lhe inspirara a consciência de terror causado por
sua presença lhe fazia esquecer a prudência que tanto o distinguia antes do
ataque, o brado de alarma solto pela rapariga dera aos quadrilheiros de Patacho
um momento de indecisão. Ignorando o que se passava na casa, e as
circunstâncias em que se achava o tenente comandante da expedição, cederam a um
movimento de reserva, da índole do caboclo, e voltaram a esconder-se por detrás
dos troncos de árvores que ensombravam a ribanceira. A moça ia cair exausta de
forças, mas teve ainda ânimo para gritar com suprema energia:
- Acudam, acudam, que me matam!
Bruscamente o Saraiva largou a
mão da Anica, e atirou-se para a janela, naturalmente para abri-la, e chamar os
companheiros, percebendo que era tempo de agir com resolução, mas a moça
advertindo-se do intento, atravessou-se no caminho, com inaudita coragem,
opondo-lhe com o corpo um obstáculo que de fácil remoção seria para o tapuio,
se nesse momento, abrindo-se de par em par, a porta da sala não desse entrada a
Félix Salvaterra, seguido por dois filhos, todos armados de espingardas. Antes
que o tenente de Jacob Patacho tivesse podido defender-se, caía banhado em
sangue com uma valente pancada no crânio que lhe deu o velho com a coronha da
arma.
O português e os filhos mal
despertos do sono, com as roupas em desalinho, não se deixaram tomar do susto e
da surpresa, expressa em dolorosos gemidos pela sora Maria dos Prazeres, que
abraçada à filha, cobria-a de lágrimas quentes. Pai e filhos compreenderam
perfeitamente a gravidade da situação em que se achavam; o silêncio e ausência
do cão de guarda, sem dúvida morto à traição, e a audácia do tapuio bexigoso,
mais ainda do que o primeiro grito da filha, do qual apenas haviam ouvido ao
despertar o nome do terrível pirata paraense, os convenceram de que não haviam
vencido o último inimigo, e enquanto um dos moços apontava a espingarda ao
peito do tapuio que banhado em sangue tinha gravados na moça os olhos ardentes
de volúpia, Salvaterra e o outro filho voltaram à sala, com o fim de guardar a
porta de entrada. Esta porta tinha sido aberta, achava-se apenas cerrada apesar
de havê-la trancado o dono da casa quando despediu o caboclo alto. Foram os
dois homens para pôr-lhe novamente a tranca, mas já era tarde.
Seu João, o companheiro de
Saraiva mais afoito do que os outros tapuios, chegara à casa, e percebendo que
o seu chefe corria grande perigo, assobiou de um modo peculiar, e em seguida,
voltando-se para os homens que se destacavam das árvores do porto, como visões
de febre, emitiu na voz cultural do caboclo o brado que depois se tornou o
grito de guerra da cabanagem:
- Mata marinheiro! Mata! Mata!
Os bandidos correram e penetraram
na casa. Travou-se então uma luta horrível entre aqueles tapuios armados de
terçados e de grandes cacetes quinados de massaranduba, e os três portugueses
que heroicamente defendiam o seu lar, valendo-se das espingardas de caça, que,
depois de descarregados, serviram-lhes de formidáveis maças.
O Saraiva recebeu um tiro à
queima-roupa, o primeiro tiro, pois que o rapaz que o ameaçava, sentindo
entrarem na sala os tapuios, procurara livrar-se logo do pior deles, ainda que
por terra e ferido: mas não foi longo o combate; enquanto mãe e filha,
agarradas uma à outra, se lamentavam desesperada e ruidosamente, o pai e os
filhos caíam banhados em sangue, e nos seus brancos cadáveres a quadrilha de
Jacob Patacho vingava a morte de seu feroz tenente, mutilando-os de um modo
selvagem.
Quando passei com meu tio Antônio
em junho de 1932 pelo sítio de Félix Salveterra, o lúgubre aspecto da habitação
abandonada, sob cuja cumieira um bando de urubus secava as asas ao sol,
chamou-me a atenção; uma curiosidade doentia fez-me saltar em terra e entrei na
casa. Ainda estavam bem recentes os vestígios da luta. A tranqüila morada do
bom português tinha um ar sinistro. Aberta, despida de todos os modestos
trastes que a ornavam outrora, denotava que fora vítima do saque unido ao instinto
selvagem da destruição. Sobre o chão úmido da sala principal, os restos de
cinco ou seis cadáveres, quase totalmente devorados pelos urubus, enchiam a
atmosfera de emanações deletérias. Era medonho de ver-se.
Só muito tempo depois conheci os
pormenores desta horrível tragédia, tão comum, aliás, naqueles tempos da
desgraça.
A sora Maria dos Prazeres e a
Anica haviam sido levadas pelos bandidos, depois do saque de sua casa. A Anica
tocara em partilha a Jacob Patacho, e ainda o ano passado, a velha Ana,
lavadeira de Santarém, contava, estremecendo de horror, os cruéis tormentos que
sofrera em sua atribulada existência.
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Nota:
Inglês de Souza: "Contos Amazônicos" (1893)
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