quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Valdomiro Silveira: "Na Beirada do Taimbé"

NA BEIRADA DO TAIMBÉ 

− Venha cá, nhá Candota: perciso de conversar com você como quem percisa de água  pra matar uma bruta sede. Faz muitos dias que a gente se vê só de longe, e acho eu que o perto  é  melhor  e  de  mais  fácil  acomodação  pra  se  entenderem  duas  pessoas  da   nossa  qualidade.  Escuite bem escuitado o que lhe vou dizer e me dê sua reposta já, ou logo, ou no vagar que  quiser.

De tal jeito, com palavras maneirosas e voz sossegada, o Zé Missia estava fazendo  chão  para  uma  planta  que  era  o  seu  lindo  sonho  de  anos  e  anos.  Anos  e  anos!  Resoluto  e  constante, afinal topara em nhá Candota, quando não tinha mais o direito de se gabar de moço,  a beleza, a graça e as melhores qualidades de uma boa companheira diante dos homens e de  Deus. E cubiçava-a para si...

Quarentão, mas desempenado, de tamanho do meio, mas carnudo e enxuto, firme no  andar e nas ações, costumava afirmar a quem o ouvia:

− Minha verdade é que nem a cana do meu punho – uma só. Hão de custar a trocer o  meu braço, a minha verdade é que ninguém será capaz de trocer!

Não  exagerava  nada:  sempre  foi  forçudo  e  verdadeiro.  Quase  menino  ainda,  socou  centenas e centenas de taipa, a cruzado por metro. Crescendo na idade e na sustância, torou e  rachou muito pau no mato, fez muita cerca de madeira e muito cocho, em roças e invernadas.  Desde que perdeu a voz de frango e mereceu mais atenção e respeito, começou a empreitar  serviços  de  todas  as  cores  e  qualidades:  o  feitio  de  uma  casa  de  pau-a-pique,  derrubada  de  tantos ou tantos alqueires, queimadas, destocamentos, plantações e colheitas. Antes de chegar  aos trinta anos, já tinha uma caixa de couro com fechadura de segredo e, dentro da caixa, um  pacotão de notas graúdas. Lá veio dia em que pegou nas tais notas, comprou o sítio de fulano  Borge  por  pouco  mais  de  nada,  criação  de  pêlo  e  pena,  carros  e  caçambas;  arranjou,  de  pancada, tudo quanto se quer no aviamento da lavoura, oito juntas de bois brasinos, que eram  uma boniteza, e até cavalo de figuração, grande e baio-camurça, que deu panca e fez barulho  nas cercanias.

Foi seu maior empenho, sempre e sempre, não deixar de cumprir promessa alguma.  Andavam  por  isso  de  boca  em  boca,  afora  outros  fatos  miúdos,  dois  de  espavento,  que  ele  gostava  de  ver  lembrados.  Certa  vez,  tendo  uma  partida  de  arroz  novo  para  vender,  fechou  negócio com o Xavierzinho por um conto e duzentos; sabedor disso, veio o Salustiano e lhe  ofereceu um conto e quinhentos: ele respondeu que já não tinha mais o arroz, porque o trato  estava feito com outro e só  faltava a troca do dinheiro pelo artigo. Noutra ocasião, deu o sim  de soltar uma casa, que possuía no lugar mais afastado da vila, por cem de cem ao Nato; não  havia  escrito,  era  tudo  conversado  só  de  beiço:  pois  apareceu  outro  pretendente,  o  Maneco   Reis,  que  pagava  doze  contos,  ele  não  se  entusiasmou  nem  ficou  murcho,  e  sustentou  a  combinação dos dez.

Embora não o tomasse a inchação da vaidade, pegava algumas veezs em si, pesava-se  por dentro e acabava decidindo que era um bom partido para nhá Candota. Atreveu-se até a  apalpar  o  assunto,  quando  saíam  da  missa,  num  domingo  de  Ramos;  o  povaréu  mexia-se  desajeitadamente  por  todo  o  largo  da  igreja,  nhá  Candota  distraía-se  com  facilidade,  e  ele  malhou  em  ferro  frio.  Não  perdia  vaza,  porém:  na  mais  pequena  aberta  de  conversação,  quando estavam apartados dos outros, encartava a sua bisca, e uma por uma fazia declarações  corteses, mas decididas. Nunca pôde ir muito adiante: aquele namoro parece que tinha uruca.

Seguiam  as  coisas  mau  rumo  agora.  A  vila  de  São  Simão  inteira  sabia  que  nhá  Candota  andava  conversando  com  um  tal  Chico  Peão,  sujeito  que  principiou  a  ser  visto  de  repente, da noite para o dia, e que não trouxera apresentação para ninguém. De peão não tinha  nada, como ele mesmo confessava: o apelido lhe viera do pai, que da infância à velhice lidou  com  animais,  e  de  quem  nada  mais  recebera  senão  o  apelido.  Mais  tarde  o  município  todo  entrou na certeza de que ele não mentia um pingo, quando contava aquilo...

O  Zé  Missia  atormentou-se.  Deu  de  espreitar  nhá  Candota,  por  aqui,  por  ali  e  por  acolá, de manhã e de tarde, na intenção de esvaziar o espírito e aliviar o coração. Jurou a si  mesmo, por segurança, que acabaria propondo o casamento, fosse lá como fosse. Um belo dia  cercou-lhe a passagem, como quem não queria estorvar, e só então pôde falar-lhe mais isto e  mais aquilo:

− Esse Chico Peão, nhá Candota, é home’ que tem estampa e nada amais. Arrebentou  de supetão na vila, trazendo animais e qualidade, arreios caros e um camarada sagaz  como  quê. Ninguém não sabe quem é semelhante home’, que o único trabalho que tem feito é jogar  carteado com os dinheirosos desta terra. Vejo dizer, mas de carregação, que dito cujo é ladrão  de cavalos e andou fazendo suas últimas façanhas lá pros confins do Carmo da Franca. Isso  vejo  dizer.  Pode  que  seje  errado:  não  quero  ter  contra  a  minha  alma  um  falso  testemunho  levantado do pé pra mão. Mas contanto que não hai filho de Deus que de tal Chico Peão possa  dar notícia branca ou preta!

Nhá  Candota,  moça  de  boa  tenência,  que  era  o  bate-enxuga  na  casa  dos  pais,  trabalhadeira  e  de  poucas  falas,  prestava  a  melhor  atenção  ao  Zé  Missia.  E  o  Zé  Missia,  ganhando  maior  coragem,  pegou  a  encarreirar  os  encartes  que  imaginara.  Aproveitou  a  ocasião o mais que pôde; principiou a dar uma no cravo e duas na ferradura:

− Você é capaz de formar uma idéia da vida que o Chico Peão lhe perpara, se vier a  casar com você? Tendo inté hoje vivido em casa de pai e mãe, na fartura e na paz, porque a  sua gente, e você mesma, veve do trabalho e no trabalho, você imagina que tudo correrá como  inté  hoje? Pois  olhe,  nhá  Candota:  eu  não  intimo  c’as  minhas  propriadades  nem  c’os  meus  haveres, mas você sabe muito bem que o meu sitinho não deve nada pra ninguém, é rendoso,  tem boas águas e  caminhos cuidados. Você sabe muito bem, além disso, que eu faço meus  negócios por fora e tenho botado de banda meia dúzia de patacas. E você sabe muito bem que  pissuí,  de  poucos  meses  pra  cá,  um  chãozinho  na  cacunda  do  Tijuco  Preto:  são  quinhentos  alqueires, num pedaço de mundo em que o pé de café, quando se encóva de esquadro, chora  por não ter mais espaço e lugar pra onde estender os braços e abrir as saias...

Nhá Candota não deixou de impressionar-se. Então havia terra, no mundo, em que o  cafeeiro crescia tanto que chegava a querer ir mais longe que o vizinho? Se os de São Simão,  do lado da serra, nas manchas de terra vermelha, já eram de admirar logo adiante dos campos  e cerrados, encorpando com toda a força, então de que vulto e maneira não seriam aqueles do  sertão? O Zé Missia atava o nó:  

− O que eu tenho, no fim das contas, não é meu, nhá Candota: será seu e já é seu,  porque eu tenho fá em Deus que você me vai aceitar pra marido. Não vai?

Ela virou-se para outro lado, por instantes, como querendo ouvir melhor o cacarejo  fino e reiterado de um joão-de-barro que conversava com a companheira, no galho mais alto  do cinzeiro próximo. As mesuras que o joão-de-barro e a companheira faziam com as asas,  cessaram logo: nhá Candota foi obrigada a voltar-se para o Zé Missia. Deste Zé Missia, afinal,  todos gostavam: o pai, a mãe, os irmãos e a caboclada. Ao passo que só ela, “que não valia  uma  pitada  de  rapé”,  só  ela  gostava  do  Chico  Peão!  E  as  últimas  notícias  que  lhe  haviam  chegado nem eram das melhores: à vista de certas ligeirezas de mão que o tal mostrara, da  teima com que algumas cartas só enveredavam para ele, e de pequeninas unhadas que se viam  noutras cartas, o delegado mandara chamá-lo e lhe dera dois dias para sumir da vila.   

O Zé Missia entrara em rumo diferente:

−  Nhá  Candota,  você  ‘tá  mas  é  na  beirada  do  taimbé92.  Não  hai  nada  que  lhe  sirva de segurança ou de valência, nessa parage’, se você não se forra fugindo do perigo.  A  pedra  é  uma  só,  muito  lisa,  sem  cotovelo’  nem  lajedo’  pros  cantos,  porque  não  tem  canto  nem  um.  Se  você  resbala  e  perde  o  pé,  não  hai  como  não  rode  pro  tombador abaixo e não vá direitinho inté o fundo do boqueirão. Não tem aí grama nem carqueja,  que  já  por  si  não  serve’  de  nada,  num  artigo  desses,  pra  você  pôr  a  mão  e  ‘o  menos  demorar  um  quarto  de  minuto  a  fúria  da  caída.  No  meio  do  percipício,  você  já  nem  é  mais  nhá  Candota,  é  um  pobre  corpo  sem  alma  que  vai  rolando  e  rolando  pro  purgatório...

Reforçou aquele discurso de pavor:

− Você ‘tá vendo o rebeirão do Tamanduá, lá em baixo, feito uma fita que num  ponto se esconde e noutro se amostra de repente, não é? Co’a seca braba que tem havido,  ele parece que se estrafega de reiva em cada volta e grita que nem um desesperado na  rasoura  das  tupavas.  O  rumor  do  rebeirão  inté  assusta,  e  você  daqui  nem  ‘tá  sentindo  nada,  não  é?  Pois  também,  quando  a  gente  cai  no  fundo  de  um  taimbé  desgrenhado,  ninguém não ouve nem não acode...

Despediu-se:

−  Nhá  Candota,  por  tudo  quanto  você  estima  no  mundo,  largue  mão  do  Chico  Peão! Se você não se aprecata e não arrecua em tempo, aquele anhanga é o seu taimbé!

Mas  no dia seguinte,  por volta das  oito  da manhã, vieram  contar  ao Zé  Missia  que  nhá  Candota,  em  companhia  do  Chico  Peão,  tinha  atravessado  o  Tamanduá  no  clarear.  Ele  saiu  de  si,  buscou  o  encosto  de  um  moirão  largado,  e  só  entendeu,  da  conversa que se acendeu cada vez mais em roda do moirão, uma ou duas coisas:

− Pra onde é que aquele desgracionado vai levando a santinha?

− Pro mundo...


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Nota:
Valdomiro Silveira: "Mucufos" (1894-1905). Versão ortográfica do  apógrafo  de  Carmen  Lydia  de Souza  Dias, in: Alexandre de Oliveira Barbosa: "Edição anotada de Mucufos, coletânea de contos inédita de Valdomiro Silveira", da Universidade de São Paulo, 2007  

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