À HORA DA PRISÃO
Sempre foi uma atroada, a
mulher do Silvano. Bonita, isso então era até ali, mas até ali também ia a falta de juízo e parava. Nunca se
viu coisa semelhante nos arredores! Moravam
no capim, e a Brígida – foi o nome que lhe deram à pia do batismo –
vivia entre os dentes de meio mundo: não havia quase quem não tivesse
qualquer coisa a dizer de mal da mesma. As
mulheres tinham-lhe uma jeriza danada, e falavam de raiva ou ciúmes; os
homens falavam por falar; e saíam
horrores a respeito dela.
Antes de
se fechar o
trato do casamento,
avisaram ao Silvano
que não caísse
desse cavalo; raparigas
formosas não faltam,
agora o que
não é muito
fácil é o
encontrarem-se formosas que o
mesmo tempo sejam honestas e trabalhadeiras. Ora ninguém ousaria clamar contra
a honra da
Brígida, que andava
guardada às sete
chaves dos cuidados
da mãe: mas,
enfim, que diabo? − uma criatura que, quando vai ao arraial, está só
voltando a cara pra trás e reparando em
quanto moço vê, não pode ter muito pano na carapuça, e deste modo procedia ela.
O Silvano
parece que não
deu fé: se
desse fé, teria
antes pedido a Deus um
bom morrer! A uns e outros
retorquiu que a Brígida, por morar num fundo de roça, ficava curiosa, em chegando ao povoado, e pegava a atentar em
todos os desconhecidos – moços e velhos,
bem-compostos e feios. E também ela não lhe jurara amor ainda, e por
conseqüência podia olhar a quem mais lhe
aprouvesse. Teimou, bateu pé, e casou-se.
Não lhe
tardaram os desgostos.
A mulher, falando
com certos sujeitinhos
meio pelintras da redondeza,
mudava completamente de tom; a voz tornava-se-lhe mais vagarosa, o olhar mais quebrado, o gesto mais cheio de
fogo; tinha algumas conversas pouco permitidas à gente
séria, uns risos
escancarados, um andar
bambo e provocador.
Aparecendo-lhe um folgazão dos de fama, em casa, aceitava logo
convite para cantarem modas, e ali em presença
do Silvano ferravam direito na toada; mas afinal aquilo tudo tinha jeito
de não ter segundas intenções, porque
era tão inocente, e o Silvano ia agüentando.
Saiu um dia para São Pedro
do Turvo, e nesse dia voltou, vindo encontrar em casa o Ernesto Carreiro, que corria como antigo
namorado da Brígida. A prova que estavam tendo
nada mostrava de ruim; porém não gostou de ver o Ernesto em casa,
sabendo às claras, que ele durante
muito tempo arrodeara
a moça, com
pouca resolução e
coragem de pedi-la
em casamento: não gostou, mas
nada tugiu, fez cara alegre para o Ernesto e para a Brígida e tudo assim ficou.
Chegara-se ao fim de
dezembro. Apesar de umas chuvas que de quando em quando caíam, o Silvano continuou no serviço de cinco
alqueires de roça que empreitara: afastava-se do rancho à ruiva do amanhecer e voltava à ruiva do sol
posto, porque era um mouro para o trabalho. Um dia, como de novo achasse de prática a mulher e o
Ernesto, e logo que este se foi, falou à Brígida, com toda a brandura e amor, que evitasse tais
visitas quando ele estivesse fora. Não duvidava de sua querida mulherzinha (e afagava-a), mas enfim
ela não desconhecia que o Ernesto a namorara no
passado, e havia muita língua má no mundo que seria capaz de inventar
baixezas e dizê-las à conta dela.
Aquilo foi um tempo quente!
A Brígida fitou nele uns olhos queimantes de fúria; não fosse tirá-la
à mãe, se
desconfiava dela! Conhecia
ao Carreiro desde
pequenina, pois era
muito mais criança
que ele, tinha
muita liberdade, mas
cada qual sabia
do seu lugar.
O Silvano, ao
vê-la iracunda assim (que ela então
se tornava mais tentadora do que nunca), nada mais fez do que beijá- la, abraçá-la,
cobri-la de festinhas,
prometendo-lhe que não
lhe tocaria, de
futuro, em tais
amofinações. Ela ameigou o semblante, chorou seu pouco, e ele também não
deixou de sentir os olhos um tanto
aguados.
A noite do Natal rompeu
linda que dava para encantar. São Pedro é longe, por isso quase ninguém assistiu à missa do galo; mas o
Zequinha Floriano fez uma reza, e depois da reza havia de haver um fandango. Houve o fandango – dos que
são capazes de deixar um soalho partido! – e o
Silvano e a mulher estiveram rentinhos. Nem bem escureceu, já o povo
principiou a aparecer; até hoje muitos
se recordam da quantidade de violas que se via naquela função, e ficam
admirados.
O Ernesto era triste para
rasgar o pinho, cuera de verdade! Em se lembrando alguém dalgum divertimento, ouvia logo a recomendação:
− Não vá faltar o Ernesto
Carreiro!
E não faltava em pagode
nenhum, o dianho, não faltava. Todos o queriam para animar as reuniões; mutirão em que ele não
estivesse, perdia metade do valor, e a moçada fugia de tal mutirão, de modo que o serviço perigava.
Agrados e carinhos, todos os faziam ao malvado, e ele ia só serenando no bairro do capim,
lisonjeado com tanta contemplação. Foi, pois, à reza do
Zequinha Floriano, depois
de haver tomado
uma cabriúva, para
limpar a garganta,
e ninguém teve coragem de cantar
antes dele; também, que voz macia nosso senhor lhe dera, que voz!
A Brígida,
logo que o
viu de lenço
de setineta no
pescoço, flor no
chapéu novo, lacinho de fita de nobreza na viola, não
sossegou mais. Olhava um minuto ao marido e meia hora ao Ernesto; quando este agarrou a
cantar, ela sentiu-se amolentada da cabeça até os pés e pegou a apanhar laranja, até no sapateado; o
Silvano, que era seu parceiro no fandango, pediu- lhe que
reparasse na dança
e não errasse
daquele feitio. E
muito embora forcejasse
por ter paciência,
o coitado estava
com uns apertos
no coração, que
lhe doíam demais;
houve um instante, quando estavam dando a volta, em
que rogou à mulher, pelo amor de Deus, que não
o atormentasse e fugisse de chocar tanto o folgazão. Ela deu no corpo um
galeio de enfado, e continuou no mesmo
sistema.
O Silvano estava de peito
cortado: fazer-lhe a Brígida tamanha ingratidão, à vista do pavaréu, foi coisa que o deixou louco de tristeza
e de zanga; apesar de ser um rapaz assentado,
e não ter
por costume virar,
aproximou-se da dona
da casa, logo
que a primeira
moda se acabou,
e pediu uma
queimada. Bebeu quase
um martelo, duma
vezada só; daí
a pouco rugiam-lhe
os ouvidos, as
pálpebras tornavam-se-lhe preguiçosas
e um enorme
desejo de vozear alto como que o engasgava; ao em vez,
porém, de fazer alarido e praguejar, sentou-se a um canto da sala, contemplativo, e pôs-se a
pitar um cigarro que não tinha fim.
Nessa ocasião, o Bertoldo,
também cantador afamado, empunhou a viola e disse:
− Companheirada, vamos
tirar outra irara!
Todos se foram juntando, e
as de saia eram as mais influídas. A Brígida, convidada pelo Ernesto Carreiro e sem consultar ao marido, ficou à frente do
antigo namorado, como uma das primeiras.
O Bertoldo gargarejou uma das modas pândegas e chulas que sabia, e o palmeio parece que começou num frenesi de
loucura. O Silvano, então, pinchou ao largo o
cigarro de macaia
que não se
acendia, e perfilou
o tronco; o
olhar queimava-lhe; as
mãos tremiam-lhe; a
sala como que
se esvaziara, ficando
apenas, para ele, a mulher
e o maldito
Carreiro...
Depois, quando os viu falar
assim de certo jeito, um à orelha do outro, no meio mesmo da dança não pôde conter-se mais: levantou-se
que nem uma fera, puxou da cinta a garrucha
fulminante, aproximou-se do
rival e desfechou-lhe
um tiro à
queima-roupa. O tiro
varou o queixo do Ernesto Carreiro, que foi caindo ao
soalho, numa lagoa vermelha. O Silvano atirou
a garrucha para o canto em que estivera, e pôs-se a remirar a Brígida,
como se nada tivesse acontecido; e
vendo-a branca tal e qual a cal da parede, as lágrimas deram de lhe correr
pela cara abaixo, aos pares. Um silêncio
terrível se fizera.
O Zequinha Floriano,
rompendo da cozinha, intimou-lhe:
− Está preso à ordem do
subdelegado!
Cercaram-no quase todos os
caboclos, amarraram-no, magoaram-lhe as carnes: e ele, apatetado e lerdo, parecia não compreender o
que lhe estavam aprontando. Assim, porém, que
o mandaram sair, para ser conduzido à cadeia de S. Pedro, uma dor
cruciante como que lhe tomou a garganta
inteira. Soluçou que nem um perdido, que nem um louco, e ao ver a mulher, que de longe o espiava, aterrorizada e pálida
ainda, gritou-lhe:
− Você perdoa, Brígida,
você perdoa?
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Nota:
Valdomiro Silveira: "Mucufos" (1894-1905). Versão ortográfica do apógrafo de Carmen Lydia de Souza Dias, in: Alexandre de Oliveira Barbosa: "Edição anotada de Mucufos, coletânea de contos inédita de Valdomiro Silveira", da Universidade de São Paulo, 2007
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