BOCÓ-DE-MOLA
Bem se
diz que casamento
com parentage dá
sempre mau resultado.pois ali
estava aquele casal
tão unido –
o Joaquim Chico
e nhá Loriana,
primos entre si
−, que teve
a infelicidade de ver no meio dos
outros um filho tapera duma vez, a quem deram o nome de Teófilo.
O ribeirão grande
inteiro tinha dó dos
coitados, por vista
disso: o que
não proibiu certa gentinha de pouco mais ou menos botar
no triste de songa-monga o apelido de Bocó-de-mola.
Ora, aquilo
pegou como bichas,
e só com
esse apelido é
que o conheciam
nas redondezas. Os catatauzinhos
de longe gritavam, quando o viam: − ó
Bocó-de-mola! − e o rapaz
irava que nem
um tigre, chegava
a enchouriçar o
pescoço e rugir
umas ameaças de
abalar céus e
terra: os catatauzinhos
fugiam numa disparada,
se aquele vulto
estrangolado dava de
correr pro lado
deles; e se
percebiam que a coisa
estava com jeito
de amargar, abrandavam a voz e diziam, entreparando:
− Ó Teórfo! Pra que tamanha
zanga?
Ele sustava
a carreira, também
com aqueles olhos
enormes granados nos
provocadores, e vendo que eles não tinham no semblante expressão de
caçoada, voltava. Mas não lhe bulissem
mais, em seguida, que então perdia as estribeiras e voava em riba dos
tais, cego e fungando de raiva: e
derrubava cada paulada de criar bicho, a ponto de ser necessário, às vezes, que Joaquim ou nhá Loriana acudisse
ao que gemia uns pescoções, caía e levantava- se, recolhia, e ficava a um canto
da casa, mudo como um peixe: sabe Deus que craminholas se remexiam naquela cabeça!
O
Joaquim Chico, assim
que o menino
agarrou os doze
anos, reinou, reinou,
para descobrir um meio de acabar
com tanto disparate. Afinal, a paciência dum homem não é de mesma largura e fundura que o rio pardo, e um
dia se esgota: e era preciso dar um paradeiro a
semelhantes desatinos! Onde
é que já
se viu agora
um manguarão de
doze anos correr
encambulhado com os
outros, vestido de
camisola e mais
vadio que bicho-preguiça? Foi castigo
do céu, decerto, mas pra tudo se dá remédio, menos pra morte −, e o Joaquim,
depois de muito excogitar, descobriu que
o remédio ali era a perova e o tala: havia da endireitar o filho a poder de couro e pancadaria velha.
Se bem pensou, melhor fez. Toda
manhã, logo que o sol apontava, ia cutucar o Teófilo com uma guaçatonga fina, clamada que aquilo
não era hora de tamanho bezerro estar no lugar
quente, e se apinchasse do catre e fosse trabalhar, que quem não
trabalha tem o que comer.
O Teófilo esbugalhava mais brutos
olhos, cujo branco parecia tocada de azul, e pulava meio caído, quase sempre: engolia às
carreiras uma tigela de café com leite misturado com farinha de milho, e seguia pra um rocio que o
pai andava fabricando, dali a umas trezentas
braças: e se seguia, era porque o pai lá o ia repontando.
Os outros, louvado Deus, davam
conta do eito, porque tinham bom natural e medo da guasca: mas o diabo do samonga a modo que
cada vez emperrava mais , cada vez ficava mais
perrengue e mamparreiro.
O tala e
o pau cantavam-lhe
em riba: qual!
– aquilo era
mesmo castigo que
viera do céu
ao Joaquim Chico
e à nhá
Loriana, porque do
contrário já teria
havido alguma arrumação! – e o
rapaz beirava o quinze anos sem que, que melhorasse, ao mesmo um pouco do juízo, nem tivesse
propensão pro serviço. Houve noites áfias que eles gastaram só em falar no filho e fazer cada
lamúria capaz de esmoer o coração da gente que os ouvisse: e nhá Loriana aconselhava sempre ao
marido não batesse tanto no desgraçadinho do
menino, que afinal não tinha culpa de ser assim.
O
Joaquim concordava, arrependia-se, prometia
não cometer mais
tão grande malvadeza; ao romper do dia tratava de
acordar então o Teófilo, porém com toda a brandura, dava-lhe um cuietê cheio de leite com farinha
de moinho (de munho chamada), e entregava-lhe a ferramenta: ele pegava-se, que
a tudo uma pessoa se acostuma neste mundo! – troteava pro
rocio, tropicando aqui,
tropicando acolá, caindo
mais longe, até
que o Joaquim
ficava pelas turinas e já o fazia
apresar-se a pontapés e cachações; − e no eito era um nunca mais acabar! Os outros, bendita fosse a
providência! – continuavam destorcidos como dantes.
Malhou em
ferro frio o
Joaquim, porque lucrou
tanto como coisa
nenhuma: o entendimento
do Bocó-de-mola parecia
piorar cada vez
mais; ultimamente se
fizera no costume
de resmungar pelos
cantos, abrindo um
bocão terrível, donde
os dentes rompiam
chatos escuros como
os de um
animal erado: e
ninguém podia compreender
aqueles resmungos e o que
significava aquele abrir
de boca com
tamanha ferocidade. Tão
feio se tornava
ele, em tais
ocasiões, que a
própria irmandade pegava
chão, quando o
outro principiava com semelhante
esquisitice.
Aí então
é que o
cacete trabalhava ás
deveras. O cacete
e uns três
metros de fumo
dobrado e trançado,
pois chegou pra
todos a convicção
que o diabo
entrara no corpo
do sarambé. Morava na ilha grande
uma benzedeira por nome a macaca: essa foi chamada, olhou o sintoma da cara, correu cruzes pelo peito
do endemoninhado, de cima pra baixo, de baixo
pra cima e nada conseguiu. O tio Procópio, um negro escangalha que
assistia na mumbuca e tinha fama de meio
feiticeiro, passou a mão em quanta veinha havia no Teófilo, e ficou tudo na mesma, no ora veja.
O Joaquim começou a desesperar. E
não era pra menos: um pai de oito famílias, que
precisava fazer hoje o que vestir e comer e beber amanhã, atrapalhado
com um imbecil em casa, que além de
imbecil vivia com o rabudo dentro de si, é brinquedo? A coitada da nhá Loriana,
essa ajoelhava a nossa senhora da conceição, rezava, chorava, chorava mais,
rezava mais, puxava
terço, fazia promessa,
que era até
da gente sentir
um nó na
garganta e uma
quentura nos olhos!
Tentaram todo remédio que lhe
aconselharam, toda raiz importante, chás de arruda de erva-cidreira, infusões de palma benta,
beberagens de noz-vômica e de losna: pregavam-lhe ao pescoço uma penca de rosários e cruzinhas,
mãos de coral, orações encobertas, um dilúvio
de miuçalhas! Mandaram-lhe que lavasse de joelhos uma temporada
comprida, persignando-se de minuto em minuto, olhando a cruz de nosso senhor
morto: e pediam misericórdia por ele,
que não sabia pedir – mas tudo dava em três vezes nada, nada é.
Nhá Loriana
fez companhia ao
marido: ficou tão
cheia de esperanças
como um sapuvuçu bem seco está cheio de folhas... E
então era só um chorar aqui e outro chorar mais
além, numa demasia que chegava a ser uma lástima.
Apareceu na vila, por esse tempo,
um doutor de quem diziam maravilhas: que tinha
posto são de tudo um caboclo tantã há muitos anos, o Zeca Piramboia, o
qual endoideceu p’r amór da fugida
da mulher; que
curou os ataques
bravos dum menino
já deste porte,
o Antoninho, filho do Chico
Trombeta, que residia em S. Pedro; que tirou o mau olhado duma criança muito bonita, lá pros lados do
criciumal: e uma infinidade de milagres mais.
Foi um próprio buscar o doutor,
um dia que rapaz amanheceu mais esquentado e com os olhos vermelhos. O doutor veio,
examinou-o, perguntou se no meio dos tios ou dos avós não tinha havido nenhuma gente que sofresse
de gota-coral ou de convulsões fortes; se ele era assim desde pequeno: e por último pediu que
o fizessem caminhar um bocado, pra ver se não
trocava ou não bambeava as pernas.
Depois o doutor tirou uma
carteira do bolso, tirou um quarto de papel, tirou um lápis e escreveu uma receita com uns nomes
arrevesados, uns brometos de potássio e outras drogas desconhecidas; ensinou
que era preciso
todo o cuidado
com o doente;
que o doente
devia passear, distrair-se,
dormir bem, ter alimentação direita e muita vigia em riba dele; porque a doença não deixava de ser perigosa e nalgum
momento podia vir um acesso furioso.
O doutor foi-se embora, gabado
como um santo, por mostrar ser tão bom curandeiro, que até indagava da vida dos outros, dos pais
e dos avós dos outros una moda que ninguém
usara ainda por todo este
matão desgrenhado. E a esperança,
voltou cheia de
fortidão, alegrando a casa
inteira: porque eles, a dizer verdade, queriam bem demais ao Teófilo.
Trato mais bom que o que lhe
deram, daí por diante, só no palácio dum rei mouro. Nem bem ele pulava da cama, já lhe traziam
chocolates de agrião, ou gemadas de leite, ou
caldos de mocotós de vaca; no almoço arrumavam-lhe um prato que era una
montanha; no jantar uma
sopeira que era
um a lagoa,
e uma travessa
mais empinada que a serra
do Jacarézinho, e cada pires de
doce mais doce que mandaçaia; de noite, uma terrina de leite, uma dúzia de bolinhos de polvilho, ou um
bolão de fubá, ou sonhos de farinha de trigo. Só vendo!
A princípio, notaram no semblante
do rapaz uns toques de sangue, umas cores boas
que vinham vindo.
Mas não demoraram
muito as boas
cores: apareceram e
desapareceram logo. O rapaz
afinou e vez de engordar, ficou feito um varapau, de magro; apontaram-lhe
por debaixo dos
olhos uns riscos
azulados, assim a
modos de florzinha
de criciúma já
quase murcha; os olhos, esses
então tomaram um tom sem propósito de olhos de filho de Deus. Já daí o desespero cresceu novamente no ânimo do
pai e no ânimo da mãe: e como cresceu! – rijo e depressa que era mesmo pra
matar se não fosse a ajuda do céu!
Nesse meio
tempo o compadre
Joaquim João teimou
com eles que
doença daquele sintoma se cura mas é a varadas de fumo:
porque se a coisa é de mamparra, a esfrega esperta o
sujeito; se a
coisa é produto
de artes do
demônio, o demônio
não resiste às
pancadas do fumo.
Este compadre Joaquim João tinha
sido sempre muito amigo da casa: e não é que de
certo ele estava
com a razão
toda de seu
lado? Assim pensou o
Joaquim Chico, já
acompanhado por nhá Loriana. Pra encurtar conversas: o doutor o que fez?
Contou gronga à toa, umas
prosas bonitas que
não deram resultados!
E de prosas
não se vive
neste vale de
lágrimas.
Foi o
Joaquim João falar e
o Joaquim Chico
ouvir como quem
ouve um pedaço
de livro santo: no dia seguinte
puxou o filho a trambolhões, assim que o dia clareou, pôs-lhe a ferramenta
na mão e
calcou-lhe pra experiência
uma dúzia de
varadas. Não, que era necessário
levar a tarefa
de fio a
pavio, e nunca
mais com panos
quentes. Se fosse
uma macacoa passageira,
vá lá que
se descuidasse, mas
com um estado
sério não se
brinca: às vezes uma defluxão dá pra acabar com a vida dum
pobre, quando mais um sofrimento assim,
que fazia o rapaz definhar de dia pra dia! O negócio não ia direito, nem
um pouco!
E o Teófilo cada vez mais
rebelde: não corria como de primeiro, agora; pelo contrário, ia
indo pela estrada
devagarinho, feito uma
formiga, apesar do pai não
descontinuar com aquela música.
Todos se
assombravam, vendo tamanho
sossego no meio
de tamanha surra:
uns tinham muita
dó do infeliz, que
um cristão, agüentando
toda aquela judiaria,
sem boca pra
soltar um soluço,
é porque tem
muita força de
vontade; outros ruminavam
que tudo não
passava de mangação do tal chifrudo que estava escondido lá dentro e
tomara conta do corpo com tão grande
poder, que o corpo nem não sentiu mais nada do mundo.
Histórias! Pois, a falar verdade,
o Teófilo andava quieto a mais não poder; mas quem lhe reparasse no rosto, quando o pai vinha
atropelá-lo, veria o rosto mudar de cor duma hora pra a outra e uma placa de chumbo prega-se em
cada face, com um jeito que até lhe dava ares
de bicho selvage.
Tanto, que uma
vez nhá Loriana,
que se achava
perto dele, no
já falado rocio, e na ocasião em que o Joaquim Chico ia
bater nele, largou um pulo que nem o duma
lebre, de ligeiro, só de terror daquela feição desfigurada.
Vida sem assento, assim, não
podia durar muito tempo, e já durava demais. Um dia, cruz, credo! Pra aqui e mais pra ali! – o
diabo a mó’ que não teve mais pachorra e entendeu de botar as manguinhas de fora.
O
admirável é que
a barra da
madrugada rompeu bonita
como um vestido
que sea Gertrudes
do Ribeirão tem,
cor de rosa
duma vez. Um
centinho manso cochichava com os galhos
e com os
ramos e os
galhos e os
ramos pareciam rir, abaixando-se, erguendo-se,
encontrando-se uns com os outros. Um dilúvio de urus cantava pelo mato
fora. Madrugada que nem essa não é própria
pra desastres e esta foi.
O Joaquim Chico de certo acordou
com elas suspendidas: rolou da cama tal e qual um embrulho, vestiu-se às carreiras, pegou a
vara de fumo e um rabo-de-tatu desta proporção −, e correu pra cama do Teófilo, enfiando-lhe a
ponta duma azagaia no braço direito, até que ele deu acordo de si, assustado e tremendo. E o
Joaquim Chico buzinou de raiva, porque Teófilo
deu de coçar o corpo, que tinha mais
fim nem acabamento: por
último o rapaz saiu, quase maio arrastado, com os olhos papudos do sono
e o corpo mole-mole ainda.
O café não tardou, que nhá
Loriana percebeu loguinho os azeites do marido: e mal o café rodou pela garganta abaixo do Joaquim
Chico, o Joaquim Chico segurou a enxada e os
instrumentos da pancadaria, e fez caminho, tangendo o filho. Os
restantes seguiam mais de longe, conversando
em voz abafada;
e um deles,
o caçula, toda
hora estremecia, falando
baixo: − faça florescer as pedras! – porque era a morte que estava toda
hora passando por ele. Chegaram a pôr
sentido em tanto estremecimento do Joaquinzinho; mas o cultivo mostrou a cara no rasgão da mata-virge e ninguém mais
pensou naquilo. Com certeza era friage.
Até a umas cinco braças de sol o
serviço correu sem atrapalhação, bem cerrado como sempre. Era uma quebra de milho que precisava
ser feita quando antes, porque os queixadas
andavam saindo na roça, e quando saem numa roça vai tudo raso. Tinham já
derrubado uns oito carros, e o Teófilo
ajudava, quando o Joaquim Chico mandou destampar o almoço, que a fome dissera umas novidades lá no estômago
dele. Procuraram uma aguada anexa à plantação,
estenderam uma toalha à beira mesmo, e cada um puxou sua colher pra
fazer pela vida.
A fome do Teófilo – ê! fome! –
parceira fome canina! Aquilo foi só abrirem a toalha e já ele cair com as mãos abertas em cima da
marmita, com uma violência que nem se pode
dizer. Um pobre
de estrada, bem
miserável e sequinho,
que tivesse passado
três dias em
jejum, pela certa
não havia de
fazer tão má
figura como aquela!
E o Joaquim
Chico irou, mordeu
os beiços de
tanta fúria, passou
os dedos abertos
pelos cabelos, largou
uns gritos danados:
− Por que é que você está com
tamanha esganação, ô diabo?
E trunfou-lhe a vara de fumo às
direitas, descanjicou as costas do desgraçado assim como quem malha feijão.
Pois foi nesse momento que a
paciência do Teófilo não pôde mais aturar. Um pote em baixo da bica, meio em falso, fica de pé até
certa proporção, mas quando se enche de todo, cai por força: a paciência do Teófilo rodou por
este feito. Ele garrou um cacete de guaiuvira que servia
de bastão pro
Joaquinzinho, frenteou com
o pai, e
descarregou-lhe o pau
a risco de
vida. A rapaziada, presenciando uma coisa tão impossível, ganhou rumo do
mato-grosso: e ninguém pôde valer ao
Joaquim Chico em tal inficionado pedaço.
As bordoadas caíam a torto e a
direito, pela testa, pelas orelhas, pelo nariz, pela boca, pelos ombros, pelos braços, com um vigor que
nem tinha mostra de ser de gente da terra: e o
Joaquim Chico uivava
de dor, caído
no chão e
torcendo-se, ensangüentado a
toalha e a agüinha
com tanto desperdício de sangue, que chegou um instante em que só se via
correr mesmo sangue em lugar de água.
Quando ele desfaleceu, então, o Teófilo,
com os olhos escancarados e os dentes unidos,
botou-lhe um joelho no peito e enfiou os três dedos maiores de cada mão
numa brecha do alto da cabeça; puxou,
que puxou, com quanto tutano tinha; vendo que não arranjava nada, pegou uma lasca de lenha, para servir de cunha, e
rebateu-a com a guaiuvira; depois tirou-a, botou de novo as mãos na brecha, sacou dos dois lados,
e a cabeça partiu-se de meio a meio: escorreu
um chorinho vermelho, de entre os miolos, e o Teófilo agachou-se ainda,
chupou-o, pra logo em seguida
gargarejá-lo fora; meneou
o corpo pro
corgo e sentou-se
junto da sangueira,
falando com um porte de voz que semelhava rugido sobre rugido:
− Agora ‘ocê não me judia mais! Agora
‘ocê não me judia mais! Agora ’ocê não me
judia mais!
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Nota:
Valdomiro Silveira: "Mucufos" (1894-1905). Versão ortográfica do apógrafo de Carmen Lydia de Souza Dias, in: Alexandre de Oliveira Barbosa: "Edição anotada de Mucufos, coletânea de contos inédita de Valdomiro Silveira", da Universidade de São Paulo, 2007
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