JOÃO MAÇARICO
Magro e seco desde menino, meio arcado
até, com um senhor nariz que parecia um
peixe campineiro, fino e espontado, mereceu o apelido do monjolinho, um
pássaro tísico por natureza e de andar
duvidoso como o de João mesmo. E esse ditado dum cearense, que teve com
ele uma rusga
onça, mas contudo
só bate-boca, ficou-lhe
agarrado nas costas
e nunca mais largou. Também, de certo prazo pra
diante, o dono do nome a mó’ que não se importava mais
que lhe chamasse
por tal jeito.
Quando gritavam de
longe: ó João
Maçarico? – ele
voltava logo a cara escorrupichada, atendendo. Afinal um conhecimento
assim não é que faz dor na gente!
Nunca teve pensão de casa, quando
se achou de ponto: olhava as moças do tempo com
certa maneira de desprezo, desdenhando, não porque fosse um grande
sujeito, rico ou muito bonito, mas
porque não encontrava
nem uma da
sua simpatia; acrescentava
que isto de se amarrar
um a uma
por toda a
vida é acontecimento
que nasce de
gostos iguais. Embora
houvesse um tal Nico da Venda, que lhe queria empurrar a filha, uma
morena escanelada de olhos espertos
de mais, e
a viúva de
um Chico Mogango
que punha em
riba dele vista
cobiçosa de tudo, não ganhou rumo, não tinha embocadura, e ladeou que
nem um lambari no açude, nem bem se vai
pôr a mão n’água.
O Nico da Venda, morador por ali
assim onde hoje é a água espraiada, quando trazia o seu pra capela, aos domingos e dias
santificados, aconselhava-o sempre:
− Olhe, nhô João: um homem que
quer ter sossego e paz na vida, só casado: ‘tá livre de
apanhar uma chumbada,
em autos alheios,
ou de fazer
uma mal-feita numa
casa de qualquer
picanha à toa.
Despois, chegando a
velhice, fica-se adoentado,
sem força e
quase sempre sem corage, e é uma
boa mulher que serve de alívio e consolo, conversando com a gente, arranjando uma mezinha, um caldo, um
pires de arroz-doce.
Mas o danado foi sempre cabeçudo:
respondia pro outro que isso era muita verdade,
muito certo, e
no entretanto que,
pra se dar
semelhante passo, é
preciso ter bons
haveres, algum peculiozinho
guardado pras horas
de percisão, que
vêm mesmo, mais
cedo ou mais
tarde. Embirrinchou, pode-se
dizer, estaqueou naquela
resolução, e não
campeou noiva, apesar que, segundo o que afiançava por aqui
um fulano Tucunduva, mulher é mais barato
que égua – porque não hai cabocla que não case e poucos hai que tenham
posses pra comprar uma catirina. E não
houve na praça de São Pedro, nem nas cercanias, caboclo que conseguisse amolecer aquele coração de pedra.
Ora quem fala paga. O João
Maçarico tinha-se gabado que não havia de tomar banhos de igreja, a mó’ que pissuía reza encoberta
para essa tenção, agora chegou-lhe a vez: viajando pelo cinza abaixo, em canoa, caçando as antas
e os veados do sertão fundo, contou-lhe um bugre velho,
um caiuá manso,
que o poder
da mocidade voltava
com uma estúcia
muito simple. E ensinou-lhe que
tanto ou não tendo os cinqüenta anos justos, ele João Maçarico
visse uma pataca de ovos (tempo em que os ovos custavam três por
vintém!), batesse todos numa gamela, até
levantar escumarada, depois chegasse de assento pra só sentir a bafage, e nada mais: com esta estúcia, dizia o caiuá, o
homem mais cansado agüentava três viajadas por
noite.
O João Maçarico comeu, que comeu
carne de anta, de macaco e de onça, que afirmam
serem todas de alta sustância: principalmente moqueava os bugios e os
monos, e lambia os beiços, c’o petisco:
demorou quarenta dias na expedição, matando jacutinga pros barreiros, que
era uma barbaridade;
(agora jacutinga é
mesmo um pássaro
bisonho, abobado, que
se mata por brincadeira nesses
caçadões da mataria); voltou remoçado, com sangue na guelra, viveza
nas meninas dos
olhos e firmeza
nas juntas: e
logo que se
viu no retiro,
a par c’o
ribeirão da Canjarana, pertico de São Pedro, tratou de aprontar a
receita do bugre do cinza.
Aquilo foi uma coisa em demasiado!
O freguês ficou mais sacudido que um rapaz de
espora curta, valente que até dava medo, comendo que nem tinha altura,
trabalhando com uns talentos de
espantar, uma maravilha! Todos os vizinhos reparavam na mudança, e paravam
de boca aberta: um homem que andava
percurando o chão pra se enterrar, de
tanta fraqueza e desânimo, avivado e
forte assim!
Pois pra encurtar razões,
entende-se c’os pais da Salustiana, uma china de espavento, e, preparados os papéis e feitos os pregões,
casou-se um belo dia. A Salustiana era uma moça
avariada, conforme rosnavam cartas línguas malinas da redondeza, e os
pais alegraram-se por de mais, quando se
descartaram dela: aquele marido pra filha caíra-lhes do céu! Depois, um cristão que não tinha boca pra ofender seu
semelhante, com um gênio manso de verdade; era
edadoso, isso era – mas o estrago que a noite tinha penderia por igual o
lado duma balança, se fossem e peso as
duas qualidades.
A
princípio, muito que
bem! Tudo ocorreu
em santa paz,
a gosto e
prazimento de todos, até as Salustiana, que se espantava de
ver um velho teso naquela proporção: parecia um
mico, mal comparando. Mas o que é bom logo acaba, o João Maçarico
desmereceu outra vez, perdendo as carnes
e o brilho das meninas, cobrindo-se de pés-de-galinha mais fundos pelo rosto, uma tristura!
Trabalhava no ofício, não pôde
mais suster-se pé em frente ao banco da carpintage, escolheu outra profissão, que foi a de
lenhador. E daí em seguida varava quase que os dias inteiros
na capoeirada, ou
na mata-virge, aprontando
os feixarrões de
crindiúva54, ou de
caiúia, ou de ceboleiro, ou de embira-de-sapo que levava de encomenda
pras fazedeiras de sabão, por serem
esses paus muito bons pra cinza de barrela; os manojos macotas de tapiá,
de guapeva, de
guamirim, de pindaíva56,
pros fugões; as
braçadas de varas
de canjarana, ou
toradas de coração-de-negro, de taiúva, de canelão, pras cercas: e ia
ganhando a vida por essa
forma.
A
Salustiana, de primeiro,
não desgarrou, foi
fiel pro seu
marido, foi de
todo o cuidado: mas uma china como a Salustiana,
ché! Não pode deixar de não se esquecer das suas obrigações, dês que não tem amor ou não tem
medo ao seu companheiro. E um dia... Nem foi
um dia, foram logo uns par de dias duma vereda só, marcou lugar de
encontro pro Zeca do Pica-pau, e
enlouqueceu de tudo.
O
Zeca do Pica-pau,
passada a soneira
do repente, largou
dela; e a
Salustiana arrecebeu o
Manequinho, o Valentim, o Zé Ricardo, um dilúvio deles, um por um. Caiu,
que foi um desespero! E o pobre coitado
do João Maçarico estava só serenando na labuta se sol a sol, pra sustentar a malvada da sirigaita.
O rumor da senvergonheira foi
bater até aos ouvidos de seo vigário. Seo vigário, um padre muito direito, não gostava que as
ovelhas do seu rebanho (assim falava nas práticas do domingo) se perdessem que nem a Salustiana.
Por isso, querendo sugigar o mal e prevenir o
futuro, e encontrando-se uma vez com o João Maçarico, que vinha embodocado
por debaixo dum mundão de coivaras,
mandou que ele apinchasse pro chão a pausaria, e quis puxar com ele uma prosa por estas palavras:
−
Ah! João Maçarico,
como é então
que você pode
trabalhar agüentando tamanhas
galharadas?
− Trabalho, seo padre, − respopndeu-lhe o outro: trabalho, e bem
satisfeito da vida, com favor de Deus!
Seo vigário, que não calculava
que um cristão não sabe de certos acontecimentos da casa, que certos acontecimentos correm sempre
em segredo, saiu resmungando:
− Pois se é do seu gosto,
arrume-se: o que é de gosto regala a vida.
E desapareceu na volta da rua que
leva pra igreja, com as orelhas quentes e brabo, que ia tinindo!
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Nota:
Valdomiro Silveira: "Mucufos" (1894-1905). Versão ortográfica do apógrafo de Carmen Lydia de Souza Dias, in: Alexandre de Oliveira Barbosa: "Edição anotada de Mucufos, coletânea de contos inédita de Valdomiro Silveira", da Universidade de São Paulo, 2007
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