quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Iba Mendes: "Amnésia"

AMNÉSIA

Nasceu minutos antes de o "Repórter Esso" anunciar: "E atenção! acaba de suicidar-se em seus aposentos, no Palácio do Catete, o Presidente Getúlio Vargas". Era o dia 24 de agosto do ano de 1954, uma terça-feira fria e de aspecto melancólico.
Toda a gente que estava em casa, quando ele nasceu, rejubilou como se ali estivesse o futuro Nobel em Medicina. O pai, médico cardiologista, não cabia em si de felicidade. Era o filho almejado, robusto como o pai, e belo como a mãe. Se o casal já era feliz, o filho trouxe novas alegrias, e a paz doméstica transformou-se em promessa de perenidade.
Filho único, a criança crescia entre a brandura do pai e a rigidez da mãe. Enquanto um mimava, o outro disciplinava, e assim nesse contrapeso de conceitos ia se formando o caráter e a educação do menino.
Até completar 16 anos, todo ele respirava uma saúde de ferro, e, ao menor sinal de moléstia, um simples resfriado, uma tosse passageira, um espirro vulgar, era de pronto submetido a uma rigorosa análise anatômica e outros cuidados relacionados à higiene e à alimentação. O pai era seu médico exclusivo, era quem fazia os diagnósticos, quem lhe aplicava injeções e quem lhe medicava.
Nestes termos estavam as coisas, quando o rapaz, completados 17 anos de idade, passou a apresentar sintomas de uma moléstia neurológica desconhecida, uma perturbação que lhe afetava a memória e que o fazia esquecer-se de sua própria idade. Lembrava-se de tudo. Aliás, para qualquer outra coisa tinha o que se costuma chamar de "memória de elefante". Era extremamente aplicado à Matemática e sabia de cor toda a Tabela Periódica. Todavia se lhe perguntasse que idade tinha, ficava indiferente e distraído, como se lhe tivesse pedindo para decifrar o Manuscrito Voynich. É preciso acrescentar ainda que os efeitos desta misteriosa amnésia não se restringiam apenas a si próprio; em vez disso, afetava também sua percepção acerca da idade alheia, e de tal modo que não conseguia atinar mentalmente sobre a diferença de idade entre um bebê e um ancião.
O pai, que atribuía à Medicina dotes quase divinos, envidou todos os esforços a fim de descobrir a causa e a cura para tão terrível mal. Foram dias difíceis e desalentadores. Sentia-se impotente e culpava-se pelo malogro dos seus esforços, como se o simples fato de ser médico o tornasse obrigado a curar o filho. Por fim, resignou-se melancolicamente à fatalidade da doença, conformando-se com a dura tarefa de dirimir os seus efeitos sobre o jovem.
A primeira batalha foi contra o amor, e revelou-se um estrondoso fracasso. O filho, agora com 21 anos, entregou-se a uma tresloucada paixão  por uma mulher dezessete anos mais velha que ele. A preocupação dos pais, no entanto, não era propriamente com a desproporção das idades de ambos, mas com a feiura da futura nora. Na opinião da mãe, a mulher era excepcionalmente feia, feia de uma maneira constrangedora. A batalha fora, enfim, vencida pelo filho, que se casou com 23 anos de idade. Era o ano de 1977.
Para espanto de todos, e mais ainda da mãe, o casamento revelou-se ao longo dos meses um oásis de felicidade. A mãe, para não admitir que se equivocara e, num orgulho que lhe era peculiar, explicava que tudo isso se devia à própria enfermidade do filho, que o tornava incompetente para julgar a fealdade da mulher. Seja como for, o fato é que viviam bem, combinavam-se e amavam-se como dois namorados que amam pela primeira vez. Dois anos depois, em 1979, após uma gestação sofrida, teve a mulher o primeiro e único filho. Foi por essa mesma época que o pai adoecera gravemente do coração, vindo falecer no início do ano seguinte.
Os anos passavam e a velhice seguia-lhes no encalço trazendo consigo todos os seus dissabores. Ele, embora visse estampados diante de si os sinais do tempo, a cabeça meio calva e já embranquecendo, os olhos um tanto sombrios, a vista cansada, fraquejando aqui e ali, e reclamando de tudo e de todos, ainda assim não tinha consciência da sua própria ancianidade. A moléstia era, por assim dizer, o seu grande consolo, a ilusão que o fazia habituar-se à imobilidade da sepultura.
Era começo de inverno do ano de 2015. O dia estava frio e cinzento. Acordou sorumbático e sem nenhum plano. A manhã, que era de domingo e chuvosa, ainda mais o entristeceu. Sentou-se na cama apoiando as costas na cabeceira e, por alguns instantes esteve a meditar sobre o sonho que tivera. A mulher, que nesse tempo contava perto de 80 anos, levantara-se mais cedo, fizera o café e o aguardava na cozinha. Súbito, ergueu-se ele da cama. Em pé, diante do espelho mirou-o maquinalmente e, num salto para trás, deixou-se cair numa poltrona, apavorado e todo trêmulo, enquanto procurava certificar-se se estava acordado ou sonhando. Ergueu-se novamente e encarou o espelho mais uma vez. Viu-se ali tal qual era: um velho sexagenário. Desesperado correu até a cozinha,  e o que lá encontrou era a prova cabal de que havia recuperado a memória.

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São Paulo, 2016.

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