quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Iba Mendes: "Peregrinando no Hades"

PEREGRINANDO NO HADES

Estava naquele instante da vida em que o homem se vê diante de uma encruzilhada existencial, quando se desponta em seu turvo horizonte um emaranhado de dúvidas que o faz questionar tudo e todos. É quando sente, tal qual Hamlet, que há mais coisas no céu e na terra do que sonha a sua vã filosofia.
Até ali, fora um amante contumaz da libertinagem e do prazer. Acreditava que a satisfação dos desejos era em si mesma o princípio e o fim de uma vida bem-aventurada. Quando lhe perguntavam se era feliz, dizia que a felicidade era a própria infelicidade do homem, pois o tornava submisso a uma busca efêmera e insaciável. O que verdadeiramente importava, concluía, eram os momentos que tornavam a vida menos afortunada, e isso podia estar numa garrafa de rum, numa simples xícara de café ou num beijo de uma mulher feia.
Até ali, nunca havia se preocupado com questões metafísicas ou transcendentais. Encarava a morte como encarava a própria vida, isto é, como parte de um processo natural, do mesmo modo como se dava com as andorinhas e os cogumelos. Agora, porém, sentiu uma poderosa impulsão ao que transcendia para além dos limites da normalidade ou do puramente biológico. Preocupava-lhe, agora, as controvérsias acerca da existência divina, os assuntos relacionados à imortalidade da alma, os grandes dogmas das religiões etc. Entretanto, o que mais lhe intrigava e o que mais obstinava sua curiosidade, eram as doutrinas que versavam sobre o inferno. O assunto de tal modo o impressionava que pactuou com ele sua própria conversão: abraçaria a religião que melhor lhe expusesse a doutrina do hades, o subterrâneo dos mortos. A isto denominou de "a busca da última verdade", o desfecho místico que faria sua alma "repousar em pastos verdejantes".
Iniciou sua peregrinação visitando um pastor pentecostal. Este o recebeu com certo ar solene e grave, intercalando cortesias com jargões próprios do linguajar evangélico. Entre muitos "glórias" e "aleluias" segurava firmemente um exemplar da Bíblia, cujas páginas sublinhadas com o azul de canetas, evidenciavam seu grande apego ao estudo do livro santo.
- O inferno? Ah, meu amigo! É um lugar tenebroso, habitado pelo diabo e seus anjos, onde o tormento não cessa um só instante. Um ano lá é como um dia, pois suas labaredas são eternas e nunca se apagam. Tente colocar o seu dedo numa simples chama de vela. Agora imagine esse mesmo fogo aquecido milhões de vezes! Pois assim arderá eternamente no inferno todos os ímpios que não se arrependerem de seus pecados, os quais não confessarem Jesus como único e suficiente salvador. Esse também será o seu destino, amigo, se você não se render aos pés da cruz...
Feitas algumas anotações, retirou-se da presença do líder evangélico, meditando sinceramente nas palavras que este lhe dissera. Dali dirigiu-se à residência de um famoso padre, o qual adquirira grande prestígio público por suas constantes aparições em programas de rádio e televisão.
- Segundo o Catecismo da Santa Madre Igreja, as almas dos que morrem em estado de pecado mortal seguem imediatamente após a morte aos infernos, onde sofrerão as penas do fogo eterno. O principal castigo para o pecador consiste na separação eterna de Deus, de modo que, uma vez lançado na escuridão eterna, não poderá ele jamais receber perdão para suas maldades. Por isso necessitamos viver dignamente segundo os santos preceitos da religião de Cristo, amando a Deus e praticando as boas obras. É necessário, lembrar, porém, que nem todo pecado conduz ao Geena. Conforme doutrina estabelecida nos concílios de Florença e de Trento, faltas leves e veniais poderão ser expiadas ainda no Purgatório, o que a Bíblia chama de "fogo purificador". Aos limpos de coração, será destinado o glorioso céu, morada de Deus e de seus santos anjos...
Naquela mesma noite, compareceu ele a uma reunião kardecista, onde participou de uma sessão espírita, condição esta que lhe impusera o médium a fim de lhe conceder uma entrevista.
- De acordo com Allan Kardec, o codificador e sistematizador da Doutrina Espírita, o inferno está em qualquer lugar onde houver almas atormentadas. O que equivale dizer que não existe um local específico de sofrimento eterno, o qual esteja reservado aos espíritos imperfeitos. Na verdade o que existem são mundos de expiação, onde estes espíritos sofredores ficarão aguardando existências novas que lhes permitirão reparar o mal que fizeram enquanto estavam encarnados, de modo que, excluídos do convívio das almas felizes, poderão purificar-se de suas imperfeições e, se merecerem, alcançarem mundos mais elevados e mais adiantados física e moralmente. Algumas vertentes da nossa religião dão a este local de purgação o nome de "umbral", cuja origem está nos escritos do grande médium Chico Xavier. Ainda sobre este assunto, diz Kardec, em um de seus livros, que "toda imperfeição é causa de sofrimento e de privação de gozo, do mesmo modo que toda perfeição adquirida é fonte de gozo e atenuante de sofrimentos." Neste aspecto, para o Espiritismo, arrependimento, expiação e reparação constituem as três condições essenciais para que seja reparado um mal, incluindo aí suas consequências...
Era véspera do Shabat. O velho rabino o recebeu com duas ou três graças de boa cordialidade. À mesa em que se sentaram, um exemplar aberto da Torá e outros livros davam ao ambiente a solenidade necessária a um colóquio místico e edificante.
No judaísmo não existe propriamente uma doutrina sobre o céu e o inferno. A ênfase fundamental da nossa crença recai sobre o mundo em que vivemos, pois é somente aqui que podemos exercer o nosso livre arbítrio; é onde decidimos acerca do bem e do mal, sobre o que queremos para nós e para aqueles que nos cercam. Uma dos nossos pilares doutrinários diz que a recompensa de uma mitzvá, ou seja, de um dever, é a própria mitzvá. Isso significa que o homem tem a possibilidade de decidir e justificar sua existência por suas próprias escolhas, sejam elas boas ou ruins. Faz-se mister, porém, esclarecer que o judaísmo não é uma religião de pensamento único. Em seu interior proliferam conceitos díspares, o que refletem a própria essência da nossa fé. Alguns judeus místicos, por exemplo, empregam o termo hebraico guehinom para designar o que se comumente traduz por "inferno" ou "purgatório", que seria, segundo esses estudiosos, o local onde almas impuras passarão por uma espécie de expiação, antes de adentrarem no paraíso. O grande rabino Maimônides definiu este mundo vindouro como um lugar onde os espíritos puros se ocuparão de atividades exclusivamente espirituais, acrescentando ainda que a recompensa para os justos é a vida que há de vir, vida sem a morte e sem o mal. Saadia Gaon, pensador judeu que viveu no século nove, defendia a ressurreição dos mortos, que se daria com a chegada da redenção messiânica. Seja qual for, porém, a doutrina judaica sobre o céu e o inferno, o importante é termos, neste mundo, uma vida íntegra diante do Criador e do nosso semelhante. O que vier depois é mera consequência disso...
O passo seguinte do nosso peregrino foi ir ter com um ulemá. Este, embora de aspecto severo e de olhar perscrutador, revelou-se um grande bonachão, dotado de espírito ecumênico e, conforme suas próprias palavras, "livre das amarras da tradição".
Bem. No islamismo a morte representa a passagem do homem para outro estágio de vida, onde aguardará o grande Dia do Juízo, quando só então cada um saberá se irá para o paraíso ou se para o inferno. Seria assim uma espécie de "plano intermediário", que não é exatamente nem o céu nem o inferno. No temível Dia do Juízo, quando Allah julgar cada um conforme suas obras, então haverá a recompensa final. Os que se fizeram merecidos, isto é, os justos, estes serão galardoados com o paraíso; já os infiéis, ou seja, os que não obraram conforme a retidão e a justiça, esses serão lançados no fogo do inferno, onde permanecerão eternamente. Que funesto destino terão! Não é possível, contudo, descrever ambos os locais destinados aos homens. Podemos apenas fazer uso das palavras do profeta Mohamad, o qual nos diz que o paraíso é um lugar de gozo e paz indescritíveis, ao passo que o inferno é coberto com mantos de fogo, que fará arder para todo o sempre os corpos dos condenados...
A entrevista com o velho lama tibetano deu-se à margem de um conhecido lago da cidade. Com voz penetrante e adocicada por gentilezas, explicou ele, em poucas palavras, o que entendia da doutrina Budista:
No que diz respeito à questão do pós-morte, o Budismo é fortemente influenciado pelos preceitos hinduístas. De acordo com o Livro dos Mortos Tibetano, chamado Bardo Thodol, ao desprender-se do corpo, a alma do homem adentra numa espécie de túnel luminoso. Ali ela vai encontrar vários portais, que são os compartimentos do desejo, do medo, do prazer, da ambição, do ódio, entre outros, e onde permanecerá o tempo necessário conforme o modo em que vivia enquanto estava encarnada, ou seja, no seu estado de consciência individual. Uma pessoa, por exemplo, que se apegou tenazmente à gula, ficará mais tempo no portal destinado aos alimentos. Superada a sua compulsão, ela se libertará daquele local e seguirá então seu processo reencarnatório, até atingir, por fim, o Nirvana. Definimos como Nirvana a extinção definitiva do sofrimento humano, que é o estado pleno da bem-aventurança, quando a alma humana, depois de sucessivas reencarnações, torna-se uma com o Absoluto, o que é alcançado pela supressão plena dos desejos...
Enfim, deu por concluída sua longa peregrinação ao "inferno". Eis que ali, sozinho no quarto, a olhar para o ar, com a cabeça entre as mãos, tinha ao redor de si um amontoado de folhas com anotações confusas, algumas das quais realçadas com duplos círculos e rubros traços; dispersos sobre a cama, via-se alguns luxuosos exemplares de livros sagrados, incluindo aí o Alcorão Sagrado no original árabe e  a tradução latina da Bíblia feita por São Jerônimo;  e, sobre uma velha estante de madeira, sobressaía uma grande ampulheta de puro mogno, de cuja âmbula superior escorria uma areia fina e azul; tudo isso reunidos entre si parecia destinados a uma mesma finalidade, e de tal modo que deixava o ambiente imerso numa áurea do puro mistério,  ao mesmo tempo em  que tornava a ocasião inevitavelmente propensa ao grande e esperado epílogo. Teria, enfim, chegado a uma decisão?
Bruscamente voltou a si como se houvesse decifrado um enigma sagrado. Em movimentos rápidos, recolheu de sobre a cama as escrituras santas e reuniu numa só pasta toda mixórdia de papéis. Em seguida, dirigiu-se ao armário e retirou dentre seus preciosos souvenires, sua velha e elegante Remington Star,  uma raridade datada de 1969, a qual ganhara do pai pouco antes  do seu falecimento. Posta esta sobre a mesa, sentou-se, fechou os olhos e, num lampejo quase profético,  começou a escrever impetuosamente como se tivesse alcançado o sétimo céu:
Estatuto Doutrinário da Nova Igreja Mundial.


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São Paulo, 2016

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