PEREGRINANDO NO HADES
Estava naquele instante da vida em que o homem se vê diante de uma encruzilhada existencial, quando se desponta em seu turvo horizonte um emaranhado de dúvidas que o faz questionar tudo e todos. É quando sente, tal qual Hamlet, que há mais coisas no céu e na terra do que sonha a sua vã filosofia.
Até ali,
fora um amante contumaz da libertinagem e do prazer. Acreditava que a
satisfação dos desejos era em si mesma o princípio e o fim de uma vida
bem-aventurada. Quando lhe perguntavam se era feliz, dizia que a felicidade era
a própria infelicidade do homem, pois o tornava submisso a uma busca efêmera e
insaciável. O que verdadeiramente importava, concluía, eram os momentos que
tornavam a vida menos afortunada, e isso podia estar numa garrafa de rum, numa
simples xícara de café ou num beijo de uma mulher feia.
Até ali,
nunca havia se preocupado com questões metafísicas ou transcendentais. Encarava
a morte como encarava a própria vida, isto é, como parte de um processo
natural, do mesmo modo como se dava com as andorinhas e os cogumelos. Agora,
porém, sentiu uma poderosa impulsão ao que transcendia para além dos limites da
normalidade ou do puramente biológico. Preocupava-lhe, agora, as controvérsias
acerca da existência divina, os assuntos relacionados à imortalidade da alma,
os grandes dogmas das religiões etc. Entretanto, o que mais lhe intrigava e o
que mais obstinava sua curiosidade, eram as doutrinas que versavam sobre o
inferno. O assunto de tal modo o impressionava que pactuou com ele sua própria
conversão: abraçaria a religião que melhor lhe expusesse a doutrina do hades, o
subterrâneo dos mortos. A isto denominou de "a busca da última
verdade", o desfecho místico que faria sua alma "repousar em pastos
verdejantes".
Iniciou
sua peregrinação visitando um pastor pentecostal. Este o recebeu com certo ar
solene e grave, intercalando cortesias com jargões próprios do linguajar
evangélico. Entre muitos "glórias" e "aleluias" segurava
firmemente um exemplar da Bíblia, cujas páginas sublinhadas com o azul de
canetas, evidenciavam seu grande apego ao estudo do livro santo.
- O
inferno? Ah, meu amigo! É um lugar tenebroso, habitado pelo diabo e seus anjos,
onde o tormento não cessa um só instante. Um ano lá é como um dia, pois suas
labaredas são eternas e nunca se apagam. Tente colocar o seu dedo numa simples
chama de vela. Agora imagine esse mesmo fogo aquecido milhões de vezes! Pois
assim arderá eternamente no inferno todos os ímpios que não se arrependerem de
seus pecados, os quais não confessarem Jesus como único e suficiente salvador.
Esse também será o seu destino, amigo, se você não se render aos pés da cruz...
Feitas
algumas anotações, retirou-se da presença do líder evangélico, meditando
sinceramente nas palavras que este lhe dissera. Dali dirigiu-se à residência de
um famoso padre, o qual adquirira grande prestígio público por suas constantes
aparições em programas de rádio e televisão.
- Segundo
o Catecismo da Santa Madre Igreja, as almas dos que morrem em estado de pecado
mortal seguem imediatamente após a morte aos infernos, onde sofrerão as penas
do fogo eterno. O principal castigo para o pecador consiste na separação eterna
de Deus, de modo que, uma vez lançado na escuridão eterna, não poderá ele
jamais receber perdão para suas maldades. Por isso necessitamos viver
dignamente segundo os santos preceitos da religião de Cristo, amando a Deus e
praticando as boas obras. É necessário, lembrar, porém, que nem todo pecado
conduz ao Geena. Conforme doutrina estabelecida nos concílios de Florença e de
Trento, faltas leves e veniais poderão ser expiadas ainda no Purgatório, o que
a Bíblia chama de "fogo purificador". Aos limpos de coração, será
destinado o glorioso céu, morada de Deus e de seus santos anjos...
Naquela
mesma noite, compareceu ele a uma reunião kardecista, onde participou de uma
sessão espírita, condição esta que lhe impusera o médium a fim de lhe conceder
uma entrevista.
- De
acordo com Allan Kardec, o codificador e sistematizador da Doutrina Espírita, o
inferno está em qualquer lugar onde houver almas atormentadas. O que equivale
dizer que não existe um local específico de sofrimento eterno, o qual esteja
reservado aos espíritos imperfeitos. Na verdade o que existem são mundos de
expiação, onde estes espíritos sofredores ficarão aguardando existências novas
que lhes permitirão reparar o mal que fizeram enquanto estavam encarnados, de
modo que, excluídos do convívio das almas felizes, poderão purificar-se de suas
imperfeições e, se merecerem, alcançarem mundos mais elevados e mais adiantados
física e moralmente. Algumas vertentes da nossa religião dão a este local de
purgação o nome de "umbral", cuja origem está nos escritos do grande
médium Chico Xavier. Ainda sobre este assunto, diz Kardec, em um de seus
livros, que "toda imperfeição é causa de sofrimento e de privação de gozo,
do mesmo modo que toda perfeição adquirida é fonte de gozo e atenuante de
sofrimentos." Neste aspecto, para o Espiritismo, arrependimento, expiação
e reparação constituem as três condições essenciais para que seja reparado um
mal, incluindo aí suas consequências...
Era
véspera do Shabat. O velho rabino o
recebeu com duas ou três graças de boa cordialidade. À mesa em que se sentaram,
um exemplar aberto da Torá e outros livros davam ao ambiente a solenidade
necessária a um colóquio místico e edificante.
No
judaísmo não existe propriamente uma doutrina sobre o céu e o inferno. A ênfase
fundamental da nossa crença recai sobre o mundo em que vivemos, pois é somente
aqui que podemos exercer o nosso livre arbítrio; é onde decidimos acerca do bem
e do mal, sobre o que queremos para nós e para aqueles que nos cercam. Uma dos
nossos pilares doutrinários diz que a recompensa de uma mitzvá, ou seja, de um dever, é a própria mitzvá. Isso significa que o homem tem a possibilidade de decidir e
justificar sua existência por suas próprias escolhas, sejam elas boas ou ruins.
Faz-se mister, porém, esclarecer que o judaísmo não é uma religião de
pensamento único. Em seu interior proliferam conceitos díspares, o que refletem
a própria essência da nossa fé. Alguns judeus místicos, por exemplo, empregam o
termo hebraico guehinom para designar
o que se comumente traduz por "inferno" ou "purgatório",
que seria, segundo esses estudiosos, o local onde almas impuras passarão por
uma espécie de expiação, antes de adentrarem no paraíso. O grande rabino
Maimônides definiu este mundo vindouro como um lugar onde os espíritos puros se
ocuparão de atividades exclusivamente espirituais, acrescentando ainda que a
recompensa para os justos é a vida que há de vir, vida sem a morte e sem o mal.
Saadia Gaon, pensador judeu que viveu no século nove, defendia a ressurreição
dos mortos, que se daria com a chegada da redenção messiânica. Seja qual for,
porém, a doutrina judaica sobre o céu e o inferno, o importante é termos, neste
mundo, uma vida íntegra diante do Criador e do nosso semelhante. O que vier
depois é mera consequência disso...
O passo
seguinte do nosso peregrino foi ir ter com um ulemá. Este, embora de aspecto
severo e de olhar perscrutador, revelou-se um grande bonachão, dotado de
espírito ecumênico e, conforme suas próprias palavras, "livre das amarras
da tradição".
Bem. No
islamismo a morte representa a passagem do homem para outro estágio de vida,
onde aguardará o grande Dia do Juízo, quando só então cada um saberá se irá
para o paraíso ou se para o inferno. Seria assim uma espécie de "plano
intermediário", que não é exatamente nem o céu nem o inferno. No temível
Dia do Juízo, quando Allah julgar cada um conforme suas obras, então haverá a
recompensa final. Os que se fizeram merecidos, isto é, os justos, estes serão
galardoados com o paraíso; já os infiéis, ou seja, os que não obraram conforme
a retidão e a justiça, esses serão lançados no fogo do inferno, onde
permanecerão eternamente. Que funesto destino terão! Não é possível, contudo,
descrever ambos os locais destinados aos homens. Podemos apenas fazer uso das
palavras do profeta Mohamad, o qual nos diz que o paraíso é um lugar de gozo e
paz indescritíveis, ao passo que o inferno é coberto com mantos de fogo, que
fará arder para todo o sempre os corpos dos condenados...
A
entrevista com o velho lama tibetano deu-se à margem de um conhecido lago da
cidade. Com voz penetrante e adocicada por gentilezas, explicou ele, em poucas
palavras, o que entendia da doutrina Budista:
No que
diz respeito à questão do pós-morte, o Budismo é fortemente influenciado pelos
preceitos hinduístas. De acordo com o Livro dos Mortos Tibetano, chamado Bardo
Thodol, ao desprender-se do corpo, a alma do homem adentra numa espécie de
túnel luminoso. Ali ela vai encontrar vários portais, que são os compartimentos
do desejo, do medo, do prazer, da ambição, do ódio, entre outros, e onde
permanecerá o tempo necessário conforme o modo em que vivia enquanto estava
encarnada, ou seja, no seu estado de consciência individual. Uma pessoa, por
exemplo, que se apegou tenazmente à gula, ficará mais tempo no portal destinado
aos alimentos. Superada a sua compulsão, ela se libertará daquele local e
seguirá então seu processo reencarnatório, até atingir, por fim, o Nirvana.
Definimos como Nirvana a extinção definitiva do sofrimento humano, que é o
estado pleno da bem-aventurança, quando a alma humana, depois de sucessivas
reencarnações, torna-se uma com o Absoluto, o que é alcançado pela supressão
plena dos desejos...
Enfim,
deu por concluída sua longa peregrinação ao "inferno". Eis que ali,
sozinho no quarto, a olhar para o ar, com a cabeça entre as mãos, tinha ao
redor de si um amontoado de folhas com anotações confusas, algumas das quais
realçadas com duplos círculos e rubros traços; dispersos sobre a cama, via-se
alguns luxuosos exemplares de livros sagrados, incluindo aí o Alcorão Sagrado
no original árabe e a tradução latina da
Bíblia feita por São Jerônimo; e, sobre
uma velha estante de madeira, sobressaía uma grande ampulheta de puro mogno, de
cuja âmbula superior escorria uma areia fina e azul; tudo isso reunidos entre
si parecia destinados a uma mesma finalidade, e de tal modo que deixava o
ambiente imerso numa áurea do puro mistério,
ao mesmo tempo em que tornava a
ocasião inevitavelmente propensa ao grande e esperado epílogo. Teria, enfim,
chegado a uma decisão?
Bruscamente
voltou a si como se houvesse decifrado um enigma sagrado. Em movimentos
rápidos, recolheu de sobre a cama as escrituras santas e reuniu numa só pasta
toda mixórdia de papéis. Em seguida, dirigiu-se ao armário e retirou dentre
seus preciosos souvenires, sua velha e elegante Remington Star, uma raridade datada de 1969, a qual ganhara
do pai pouco antes do seu falecimento.
Posta esta sobre a mesa, sentou-se, fechou os olhos e, num lampejo quase
profético, começou a escrever
impetuosamente como se tivesse alcançado o sétimo céu:
Estatuto
Doutrinário da Nova Igreja Mundial.
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São Paulo, 2016
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São Paulo, 2016
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