quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Alberto da Costa e Silva: "5 Poemas"

SONETO RURAL

As mãos do pobre e a forma da lagosta
vendo, chorei. Meu corpo, feito adeus,
era só, machucado pé no esterco,
pesava sobre mim toda a beleza.

Havia um cesto e nele alguém botava
as cabeças cortadas dos borregos.
Aprendi a cantar acompanhado
de impaludismo, sede e fezes verdes.

Na madrugada, a fome dos bezerros.
As mãos passava em torno das bicheiras,
quando vi, na celagem das campinas,

erguido em dor, dourado mar barroco,
sol e sombra lavrando um cão sarnoso
e um porco morto com o céu por cima.



ODE A MARCEL PROUST

Teus olhos, no retrato,
destilam lágrimas
e abraçam silentes o horizonte.
Tua face, na noite,
é um soluço inútil.

Por entre as moças em flor,
revejo o silêncio das ruelas
dos teus passeios noturnos,
assombrados de insônia,
pelos caminhos insondáveis
do amor e da infância.

Retiras da memória
um mundo ignoto e novo,
e acompanhas, nas tuas vigílias,
os passos dos homens nos tapetes
e as palavras doces que não foram pronunciadas.

A cada instante, um encontro inesperado:
um peixe, uma gravata ou uma flor apenas entreaberta.
Tuas mãos repelem a morte, enluvadas,
e escrevem como se nada mais existira
a não ser a torre da matriz de Combray.

Proust, repercute em mim
toda a tua agonia, companheiro.
Deixa, Marcel, que recolha tua tristeza,
como lágrimas num lenço,
do tumulto das páginas de teus livros,
e
grave na minha boca
o sentido mais oculto de tuas palavras.

Teus olhos, no retrato,
derramam-se na bruma.
E colocas, agora, mansamente,
com requintes de estranha vaidade,
uma flor – talvez orquídea –
na lapela.



SONETO DE NATAL

Como esperar que o dia pequenino,
com a mesa, a cama, o copo, as cousas simples,
desate em nossas mãos os lenços cheios
de canções e trigais e ninfas tristes?

Menino já não sou. Como de novo
conversar com os pássaros, os peixes,
invejar o galope dos cavalos
e voltar a sentir os velhos êxtases?

A linguagem dos grãos, do manso pêssego,
a bem-amada ensina e novamente
sinto em mim o odor de esterco e leite

dos currais onde a infância tange as reses,
sorve a manhã e permanece neste
cantor da relva mínima e dos bois.



DIÁLOGO EM SOBRAL

– Como era o odor dos rosmaninhos?
– De alimpo mato, talvez.
– Do lagar e das pipas
de vinho e dos malhais.
– De broa e caldo grosso.
– Das tulhas para o milho.
– Ou do Minho.
– Talvez do aconchego da fuligem,
na casa negra de luz e cerco ardente
do frio, onde esperávamos.
– Talvez
da cama limpa, onde fomos gente.

– Eu cavei e podei, de rosto baixo
como o burro ou o boi, só mais faminto,
cheio de frio chuvoso, a rastros, todo
banhado em terra
e em urina podre.
– O funcho, a mangerona, a erva-doce,
que chamamos de anis, quase os esqueço,
esses nomes e as hastes de onde vinham,
perto da breve janela.
– Ai, não me esquece:
abria o dia com estas mãos que vês
tão marcadas do chão e da madeira
que lascava no eido.
– O boi, então,
só faltava comer na nossa mesa.

– Ao borralho, as castanhas tu assavas...
– O vento, o lume ou um madrugar no ventre
fez-me indagar (a tua mão suspensa
sobre o vaso de água-pé), o riso em mágoa:
“E os miúdos, se vêm?”
– E, assim, largamo-nos
para o Porto, rumo ao mar. Velas, o medo,
o enjôo e o galope vagaroso
de um céu que clareava.
– “Não temas, ó Maria”
(ou por Ana me chamavam?),
disseste, “não te ponhas pequenina”.
– Não te falei na morte. Só pensava
na tigela do caldo, onde boiavam
a couve,
o calor
e a batata.

– Neste país sem orvalho, os nossos pés
rasgamos ainda mais no solo quente.
– Passamos fome.
– Roubamos
gado e terras.
– Crucificamos
escravos,
e por isso nos lembram
– Vi, uma vez, o talco azulado das garças.
O arco das avoantes. O curimã nadando.
– Tonto de passarinhagem e mormaço, o menino,
enquanto o cego de pedir, a quem guiava, a farinha
comia à sombra, o menino
cheio de aves nos olhos.
“Dou-lhes comida e cavalo, venham comigo!
Venham!”
– E saímos a galope
– como os reis antigos,
a falconear os bezerros e as vacas prenhas,
com poetas e jograis, a rabeca na sela
do cego, e os jagunços de cabelos em cachos.
– Lembro-me bem do menino
que, rapazola, sangraram.

(Haverá talvez um neto, ou um bisneto,
que não pense em mim a fazer rendas,
mas a cavalo, ao peito as cartucheiras
e o rifle na mão, com que atirava
sem apoiá-lo ao ombro e a galope.
Este verá, na herança da lepra,
do rim corrompido e da tísica,
da prisão, da viagem e do querer amoroso,
que, atrás deste rosto corado e sem rugas,
deste olhar azul e destes seios gordos,
sonhei o latifúndio, o espaço, o amplo céu
que vim também fundar no outro lado da terra,
longe do que antes amei,
o melro, a canafístula, a tília, os casalinhos,
o verde gaio, o Ausente.)



SOBRE MEU TÚMULO

Aqui estou enterrado. Jamais quis
morrer longe de casa. Mas sofri
muitos anos exílios simultâneos.
Gastei-me em outras terras. Fui de mim
uma sombra emigrada. Rogo um sonho.


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Fonte:
Revista Brasileira: Fase VII - Julho-Agosto-Setembro 2001 - Ano VII - Nº 28 (Academia Brasileira de Letras)

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