SONETO RURAL
As mãos do pobre e
a forma da lagosta
vendo, chorei. Meu
corpo, feito adeus,
era só, machucado
pé no esterco,
pesava sobre mim
toda a beleza.
Havia um cesto e
nele alguém botava
as cabeças
cortadas dos borregos.
Aprendi a cantar
acompanhado
de impaludismo,
sede e fezes verdes.
Na madrugada, a
fome dos bezerros.
As mãos passava em
torno das bicheiras,
quando vi, na
celagem das campinas,
erguido em dor,
dourado mar barroco,
sol e sombra
lavrando um cão sarnoso
e um porco morto
com o céu por cima.
ODE A MARCEL PROUST
Teus olhos, no
retrato,
destilam lágrimas
e abraçam silentes
o horizonte.
Tua face, na
noite,
é um soluço
inútil.
Por entre as moças
em flor,
revejo o silêncio
das ruelas
dos teus passeios
noturnos,
assombrados de
insônia,
pelos caminhos
insondáveis
do amor e da
infância.
Retiras da memória
um mundo ignoto e
novo,
e acompanhas, nas
tuas vigílias,
os passos dos
homens nos tapetes
e as palavras
doces que não foram pronunciadas.
A cada instante,
um encontro inesperado:
um peixe, uma
gravata ou uma flor apenas entreaberta.
Tuas mãos repelem
a morte, enluvadas,
e escrevem como se
nada mais existira
a não ser a torre
da matriz de Combray.
Proust, repercute
em mim
toda a tua agonia,
companheiro.
Deixa, Marcel, que
recolha tua tristeza,
como lágrimas num
lenço,
do tumulto das páginas
de teus livros,
e
grave na minha
boca
o sentido mais
oculto de tuas palavras.
Teus olhos, no
retrato,
derramam-se na
bruma.
E colocas, agora,
mansamente,
com requintes de
estranha vaidade,
uma flor – talvez
orquídea –
na lapela.
SONETO DE NATAL
Como esperar que o
dia pequenino,
com a mesa, a
cama, o copo, as cousas simples,
desate em nossas
mãos os lenços cheios
de canções e
trigais e ninfas tristes?
Menino já não sou.
Como de novo
conversar com os
pássaros, os peixes,
invejar o galope
dos cavalos
e voltar a sentir
os velhos êxtases?
A linguagem dos
grãos, do manso pêssego,
a bem-amada ensina
e novamente
sinto em mim o
odor de esterco e leite
dos currais onde a
infância tange as reses,
sorve a manhã e
permanece neste
cantor da relva
mínima e dos bois.
DIÁLOGO EM SOBRAL
– Como era o odor
dos rosmaninhos?
– De alimpo mato,
talvez.
– Do lagar e das
pipas
de vinho e dos
malhais.
– De broa e caldo
grosso.
– Das tulhas para
o milho.
– Ou do Minho.
– Talvez do
aconchego da fuligem,
na casa negra de
luz e cerco ardente
do frio, onde
esperávamos.
– Talvez
da cama limpa,
onde fomos gente.
– Eu cavei e
podei, de rosto baixo
como o burro ou o
boi, só mais faminto,
cheio de frio
chuvoso, a rastros, todo
banhado em terra
e em urina podre.
– O funcho, a
mangerona, a erva-doce,
que chamamos de
anis, quase os esqueço,
esses nomes e as
hastes de onde vinham,
perto da breve
janela.
– Ai, não me
esquece:
abria o dia com
estas mãos que vês
tão marcadas do
chão e da madeira
que lascava no
eido.
– O boi, então,
só faltava comer
na nossa mesa.
– Ao borralho, as
castanhas tu assavas...
– O vento, o lume
ou um madrugar no ventre
fez-me indagar (a
tua mão suspensa
sobre o vaso de
água-pé), o riso em mágoa:
“E os miúdos, se
vêm?”
– E, assim,
largamo-nos
para o Porto, rumo
ao mar. Velas, o medo,
o enjôo e o galope
vagaroso
de um céu que
clareava.
– “Não temas, ó
Maria”
(ou por Ana me
chamavam?),
disseste, “não te
ponhas pequenina”.
– Não te falei na
morte. Só pensava
na tigela do
caldo, onde boiavam
a couve,
o calor
e a batata.
– Neste país sem
orvalho, os nossos pés
rasgamos ainda
mais no solo quente.
– Passamos fome.
– Roubamos
gado e terras.
– Crucificamos
escravos,
e por isso nos
lembram
– Vi, uma vez, o
talco azulado das garças.
O arco das
avoantes. O curimã nadando.
– Tonto de
passarinhagem e mormaço, o menino,
enquanto o cego de
pedir, a quem guiava, a farinha
comia à sombra, o
menino
cheio de aves nos
olhos.
“Dou-lhes comida e
cavalo, venham comigo!
Venham!”
– E saímos a
galope
– como os reis
antigos,
a falconear os
bezerros e as vacas prenhas,
com poetas e
jograis, a rabeca na sela
do cego, e os
jagunços de cabelos em cachos.
– Lembro-me bem do
menino
que, rapazola,
sangraram.
(Haverá talvez um
neto, ou um bisneto,
que não pense em
mim a fazer rendas,
mas a cavalo, ao
peito as cartucheiras
e o rifle na mão,
com que atirava
sem apoiá-lo ao
ombro e a galope.
Este verá, na
herança da lepra,
do rim corrompido
e da tísica,
da prisão, da
viagem e do querer amoroso,
que, atrás deste
rosto corado e sem rugas,
deste olhar azul e
destes seios gordos,
sonhei o
latifúndio, o espaço, o amplo céu
que vim também
fundar no outro lado da terra,
longe do que antes
amei,
o melro, a
canafístula, a tília, os casalinhos,
o verde gaio, o
Ausente.)
SOBRE MEU TÚMULO
Aqui estou
enterrado. Jamais quis
morrer longe de
casa. Mas sofri
muitos anos
exílios simultâneos.
Gastei-me em
outras terras. Fui de mim
uma sombra
emigrada. Rogo um sonho.
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Fonte:
Revista Brasileira: Fase VII - Julho-Agosto-Setembro 2001 - Ano VII - Nº 28 (Academia Brasileira de Letras)
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