terça-feira, 24 de novembro de 2015

Victor Oliveira Mateus: "5 Poemas"

O QUE DÓI NÃO SÃO AS RUTURAS

O que dói não são as ruturas, o afastamento,
a incapacidade a minar como um cancro
oculto e certeiro. O que dói não é
a pouca solidez com que se disse
esta ou aquela palavra, esta ou aquela frase;
com que se insistiu, apesar de receios vários,
na grotesca encenação do que se previa
muito aquém de qualquer futuro. O que dói
não é a viscosidade das emoções a grafar-se
em algum mapa antecipadamente condenado,
nem tampouco a insistência de uma insolúvel
lembrança a fugir. O que dói verdadeiramente
é acordarmos um dia e descobrirmos
que nada disso teve importância alguma.



QUANTAS VEZES ME DEIXEI FICAR

Quantas vezes me deixei ficar,
como hoje, de caneta em riste,
sentado a esta mesma mesa
esperando que tu ou o texto viessem.

Quantas vezes, em vão, lançava
o olhar sobre o porto, tentando
adivinhar-te no bojo
de um qualquer barco que divisava

ao longe, como quem investiga
de falhas a mais nítida presença.
E quantas, no meio do tilintar
das chávenas e do bulício do balcão,

as tuas palavras acabavam sempre
por me aquietar. No entanto, sei-me
de sina igual a hoje: o constante medo
de que um dia possas não vir

e que o futuro mais não seja
do que a inquirição dos dias,
onde os versos se firmam
como escolhos à deriva
em simples guardanapos de papel.



NUM CAFÉ DA VIA MONGINEVRO

O rapaz do café olha-me com alguma desconfiança,
mas mesmo assim fala-me, é afável. Talvez seja
do país esta necessidade de estar próximo, de irradiar
um sólido encurtar distâncias neste tempo de implosões
organizadas. O rapaz do café traz os pedidos como
equilibrista de lugarejo: a bandeja, de uma bacidez

acinzentada, bascoleja copos, latas... e a mim também,
que de equilíbrio me sofro tão incapaz de um eu a recusar-me
unidade e acerto. Certo dia alargou-se mais: que era
lá debaixo, da Ligúria. Nascera em Sestri Levanti. Se eu conhecia,
e olhou-me a ameaçar escárnio: que sim, que sim (acalmei-o),
mas só de passagem, aliás, é de passagem que tudo conheço.

Conclusão que ele entendeu, pois logo me olhou livros e papéis.
O rapaz do café tem algo de metafísico (acabei por decidir),
pois quando fala depressa não o entendo, e quando se explica
pausadamente não o entendo também. Certo dia apanhou-me
alguns versos que me haviam caído da mesa e então perguntou-me

se eu fazia poesia. Que não!, respondi-lhe peremptório,
é ela que me faz a mim; é ela que me não larga, sempre
a recusar-me razão, conformidade. O rapaz do café deixou,
por fim, seu antigo olhar. Agora tem um outro, bem mais
enigmático – coisa de fascínio com hostilidade à mistura.



AINDA NO CAFÉ

Que o azul não passa de aparências. Todos
os azuis! Talvez. Vendo bem, que sei eu
de astronomia e de efeitos especiais? E que
os céus - dizem ainda - nada mais são
do que ecos da distância e de um abandono
bem nosso e impreenchível. Que só este
quotidiano - acrescentam -, que nos cerceia
e desconstrói, é absolutamente real e concreto.
É provável, murmuro enquanto observo a chávena

vazia, a colher tombada na ponta do pires, os jovens
universitários que vão deixando o café. E o
universo?! Esse é indubitavelmente eterno
- concluem eles -, infinito, com seu próprio
ciclo de expansão e contracção. Sim, talvez!
Vendo bem, que sei eu de astronomia e de
efeitos especiais? Que sei eu dessa coisa que é
o ser-se eterno, eu, que nem do durável tenho
noção ou experiência. Olho através da montra

a rua deserta, um gato a esgueirar-se rente
aos prédios do outro lado, uma varanda que pinga
cadenciadamente. Ah, afinal bem pouco foi
o que consegui saber! Contudo, de uma coisa
estou absolutamente seguro. Uma única
coisa: espécie alguma teve tantas certezas,
inventariou tantas certezas, matou tanto em
nome de certezas. E resta-me no espelho
o esgar do meu rosto, enquanto me tento
manter desperto e peço outro café.



QUERER-TE...

Querer-te é sentar-me na praça, logo de manhã,
só para te ver passar
Querer-te é os teus olhos, o teu sorriso cúmplice,
as tuas palavras
Querer-te é também não me veres, se por acaso
alguém está perto
Querer-te é haver sol e vento e estrelas. É o verde
das acácias e das palmeiras e as rosas de Jericó
alinhadas até à ponta das dunas
Querer-te é o castanho doce dos figos sobre a mesa,
as tâmaras, a voz da grande Kolthoum vinda de uma
janela num cântico apaixonado ao Nilo
Querer-te é haver noite - ah, sobretudo a noite! E é
o teu corpo nu, exausto, branco como um templo,
porque todos os corpos são um templo no solo
consagrado que há
Querer-te é o sorriso no rosto das crianças, o grácil
e dançante caminhar das mulheres, a fonte, as águas
Querer-te é tudo, até o meu desejo de te não querer

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