O QUE DÓI NÃO SÃO AS RUTURAS
O que dói não são
as ruturas, o afastamento,
a incapacidade a
minar como um cancro
oculto e certeiro.
O que dói não é
a pouca solidez
com que se disse
esta ou aquela
palavra, esta ou aquela frase;
com que se
insistiu, apesar de receios vários,
na grotesca
encenação do que se previa
muito aquém de
qualquer futuro. O que dói
não é a
viscosidade das emoções a grafar-se
em algum mapa
antecipadamente condenado,
nem tampouco a
insistência de uma insolúvel
lembrança a fugir.
O que dói verdadeiramente
é acordarmos um
dia e descobrirmos
que nada disso
teve importância alguma.
QUANTAS VEZES ME DEIXEI FICAR
Quantas vezes me
deixei ficar,
como hoje, de
caneta em riste,
sentado a esta
mesma mesa
esperando que tu
ou o texto viessem.
Quantas vezes, em
vão, lançava
o olhar sobre o
porto, tentando
adivinhar-te no
bojo
de um qualquer
barco que divisava
ao longe, como
quem investiga
de falhas a mais
nítida presença.
E quantas, no meio
do tilintar
das chávenas e do
bulício do balcão,
as tuas palavras
acabavam sempre
por me aquietar.
No entanto, sei-me
de sina igual a
hoje: o constante medo
de que um dia
possas não vir
e que o futuro
mais não seja
do que a
inquirição dos dias,
onde os versos se
firmam
como escolhos à
deriva
em simples
guardanapos de papel.
NUM CAFÉ DA VIA MONGINEVRO
O rapaz do café
olha-me com alguma desconfiança,
mas mesmo assim
fala-me, é afável. Talvez seja
do país esta
necessidade de estar próximo, de irradiar
um sólido encurtar
distâncias neste tempo de implosões
organizadas. O
rapaz do café traz os pedidos como
equilibrista de
lugarejo: a bandeja, de uma bacidez
acinzentada,
bascoleja copos, latas... e a mim também,
que de equilíbrio
me sofro tão incapaz de um eu a recusar-me
unidade e acerto.
Certo dia alargou-se mais: que era
lá debaixo, da
Ligúria. Nascera em Sestri Levanti. Se eu conhecia,
e olhou-me a
ameaçar escárnio: que sim, que sim (acalmei-o),
mas só de
passagem, aliás, é de passagem que tudo conheço.
Conclusão que ele
entendeu, pois logo me olhou livros e papéis.
O rapaz do café
tem algo de metafísico (acabei por decidir),
pois quando fala
depressa não o entendo, e quando se explica
pausadamente não o
entendo também. Certo dia apanhou-me
alguns versos que
me haviam caído da mesa e então perguntou-me
se eu fazia
poesia. Que não!, respondi-lhe peremptório,
é ela que me faz a
mim; é ela que me não larga, sempre
a recusar-me
razão, conformidade. O rapaz do café deixou,
por fim, seu
antigo olhar. Agora tem um outro, bem mais
enigmático – coisa
de fascínio com hostilidade à mistura.
AINDA NO CAFÉ
Que o azul não
passa de aparências. Todos
os azuis! Talvez.
Vendo bem, que sei eu
de astronomia e de
efeitos especiais? E que
os céus - dizem
ainda - nada mais são
do que ecos da
distância e de um abandono
bem nosso e
impreenchível. Que só este
quotidiano -
acrescentam -, que nos cerceia
e desconstrói, é
absolutamente real e concreto.
É provável,
murmuro enquanto observo a chávena
vazia, a colher
tombada na ponta do pires, os jovens
universitários que
vão deixando o café. E o
universo?! Esse é
indubitavelmente eterno
- concluem eles -,
infinito, com seu próprio
ciclo de expansão
e contracção. Sim, talvez!
Vendo bem, que sei
eu de astronomia e de
efeitos especiais?
Que sei eu dessa coisa que é
o ser-se eterno,
eu, que nem do durável tenho
noção ou
experiência. Olho através da montra
a rua deserta, um
gato a esgueirar-se rente
aos prédios do
outro lado, uma varanda que pinga
cadenciadamente.
Ah, afinal bem pouco foi
o que consegui
saber! Contudo, de uma coisa
estou
absolutamente seguro. Uma única
coisa: espécie
alguma teve tantas certezas,
inventariou tantas
certezas, matou tanto em
nome de certezas.
E resta-me no espelho
o esgar do meu
rosto, enquanto me tento
manter desperto e
peço outro café.
QUERER-TE...
Querer-te é
sentar-me na praça, logo de manhã,
só para te ver
passar
Querer-te é os
teus olhos, o teu sorriso cúmplice,
as tuas palavras
Querer-te é também
não me veres, se por acaso
alguém está perto
Querer-te é haver
sol e vento e estrelas. É o verde
das acácias e das
palmeiras e as rosas de Jericó
alinhadas até à
ponta das dunas
Querer-te é o
castanho doce dos figos sobre a mesa,
as tâmaras, a voz
da grande Kolthoum vinda de uma
janela num cântico
apaixonado ao Nilo
Querer-te é haver
noite - ah, sobretudo a noite! E é
o teu corpo nu,
exausto, branco como um templo,
porque todos os
corpos são um templo no solo
consagrado que há
Querer-te é o
sorriso no rosto das crianças, o grácil
e dançante
caminhar das mulheres, a fonte, as águas
Querer-te é tudo,
até o meu desejo de te não querer
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