terça-feira, 24 de novembro de 2015

Ivan Junqueira: "5 Poemas"

O POEMA

Não sou eu que escrevo o meu poema:
ele é que se escreve e que se pensa,
como um polvo a distender-se, lento,
no fundo das águas, entre anêmonas
que nos abismos do mar despencam.

Ele é que se escreve com a pena
da memória, do amor, do tormento,
de tudo o que aos poucos se relembra:
um rosto, uma paisagem, a intensa
pulsação da luz manhã adentro.

Ela se escreve vindo do centro
de si mesmo, sempre se contendo.
É medido, estrito, minudente,
música sem clave ou instrumentos
que se escuta entre o som e o silêncio.

As palavras com que em vão ao invento
não são mais que ociosos ornamentos,
e nenhuma gala lhe acrescentam.
Seja belo ou, ao invés, horrendo,
a ele é que cabe todo engenho,

não a mim, que apenas o contemplo
como um sonho que se sustenta
sobre o nada, quando o mito e a lenda
eram as vísceras de que o poema
se servia para ir-se escrevendo.



DOM QUIXOTE

Vai a passo Dom Quixote
em seu magro Rocinante.
Sancho Pança o segue a trote
pela Mancha calcinante.

Tudo é pedra, arbusto seco,
erva má, ermas masetas.
Não se escuta nem o eco
do vento a ranger nas gretas.

O que buscam o fidalgo
e o seu álacre escudeiro?
Peripécias, duelos, algo
que lhes recorde o cordeiro

quando abriu os sete selos
e fez soar as trombetas?
Buscam o quê? O que fê-los
ir tão longe em suas bestas?

Pois esse Alonso Quijano,
ao deixar a sua aldeia,
só buscava – áspero engano –
exumar o que, na teia

de suas tontas leituras,
eram duendes, hierofantes,
castelos, leões, armaduras,
dulcinéias, nigromantes

e uma Espanha onde a justiça,
há tanto um tíbio sol posto,
fosse um bem que só na liça
pudesse ser recomposto.

Mas do triste cavaleiro
era tanto o desatino
que na cuia de um barbeiro
vira o elmo de Mambrino,

nas ovelhas ao relento,
uma tropa de meliantes,
e nos moinhos de vento,
uns desgrenhados gigantes.

Dom Quixote nunca via
o que aos seus pares narrava,
pois que só lia e mais lia,
e ao ler é que se encantava.

E assim do texto as imagens
saltavam – bruscas centelhas –
no amarelo das paisagens,
no ocre encardido das telhas.

Foi quando então, claro e fundo,
percebeu que o que ia vendo
nada tinha com o mundo
sobre o qual andara lendo.

Ilusão e realidade,
heroísmo e covardia,
sensualismo e castidade,
prosa pedestre e poesia

– eis os pólos do conflito
que somente se harmoniza
no humor de um cáustico dito
que nos fustiga e eletriza.

E o que redime o manchego
não é tanto aquilo que ama,
e sim o dom de si mesmo
no amor que doa a uma dama,

sem nenhuma recompensa
que não seja a do fracasso
ou da estrita indiferença
de quem sequer viu-lhe um traço.

De fala mansa e discreta,
que ao calar é que se escuta,
seu percurso é a linha reta
entre o que tomba e o que luta.

Vai a passo Dom Quixote,
ya el pie en el estribo.
A morte agora é seu mote.
Vai a sós. Vai só consigo.



A IMORTALIDADE

O que é a imortalidade?
Um sopro que nos carrega
para os confins da orfandade,

onde o espírito se nega
e de si já não recorda
após a última entrega?

Que luz é a que nos acorda
quando a morte, em dada hora,
bate à porta e chega à borda

do ser que se vai embora,
mas crê que não vai de todo,
pois do invólucro que fora

algo fica em meio ao lodo
que lhe veste o corpo morto
com a púrpura do engodo?

E o que cabe ao que foi torto
e nunca exigiu conserto?
Irá chegar a algum porto?

Será que na alma um aperto
não lhe purgou a maldade
quando do fim se viu perto?

O que é a imortalidade?
Uma insígnia, uma medalha
com que se louva a vaidade?

Ou não será a mortalha
que te poupa só a cara
escanhoada a navalha?

Será talvez a mais rara
das obras que publicaste
ou da crítica a mais cara?

Será isto, já pensaste,
a herança em que se resume
o que aos amigos deixaste?

Esquece. Sente o perfume
de algo que se fez distante:
a mão de uma criança, o gume

de seu olhar penetrante
quando viu, no ermo do cais,
que o tempo que segue adiante

é o mesmo que volta atrás
e confunde a realidade,
e a desmantela, e a refaz.

É isto a imortalidade:
esse eterno e estranho rio
que corre em ti e te invade.

E o mais é só o pavio
de um lívido círio que arde
no insuportável vazio

que enche toda a tua tarde.


  
OS MORTOS

I
Os mortos sentam-se à mesa,
mas sem tocar na comida;
ora fartos, já não comem
senão côdeas de infinito.

Quedam-se esquivos, longínquos,
como a escutar o estribilho
do silêncio que desliza
sobre a medula do frio.

Não devendo, embora lisas,
suas frontes, onde a brisa
tece uma tênue grinalda
de flores que não se explicam.

Nos beirais a lua afia
Seu florete de marfim.
(Sob as plumas de neblina
os mortos estão sorrindo:

um sorriso que, tão tíbio,
não deixa sequer vestígio
de seu traço quebradiço
na concha azul do vazio.)

Quem serão estes assíduos
mortos que não se extinguem?
De onde vêm? Por que retinem
sob o pó de meu olvido?

Que se revelem, definam
os motivos de sua vinda.
Ou então que me decifrem
seu desígnio: pergaminho.

Sei de mortos que partiram
quase vivos, entre lírios;
outros sei que, sibilinos,
furtaram-se às despedidas.

Lembro alguns, talvez meninos,
que se foram por equívoco;
e outros mais, algo esquecidos
que de si mesmos se iam.

Mas estes, a que família
de mortos pertenceriam?
A que clã, se não os sinto
visíveis, tampouco extintos?

Ou quem sabe não seriam
mortos de morte, mas sim
de vida: imagens em ruínas
na memória adormecidas.

Mas eles, em seu ladino
concílio, disfarçam, fingem
não me ouvir. E seu enigma
(névoa) no ar oscila e brinca.

II
Ó mortos que, sem convite,
à minha mesa finita
sentastes só para urdir
tal intriga metafísica!

Quem vos pediu me despísseis
vosso segredo mais íntimo?
E, ao despi-lo, não me abrísseis
seu núcleo de morte e vida...

E por que tanto sigilo
em vosso verbo melífluo,
se a morte em si já é signo
transfigurado de vida,

se apenas um morto em mim
é o que basta de agonia
para que o tempo o redima
e logo inverta sua sina?

Assim, estes mortos (vivos)
não estão aqui nem ali:
pertencem todos à minha
carne, agora feita espírito.

E mesmo que se retirem
(e eis que o fazem, de mansinho)
algo deles, pelas frinchas
da noite cúmplice, fica.

E me invade, vago líquido,
tingindo fibra por fibra
o ser que em meu ser persiste
conta o outro, que o mastiga.

III
Sobre a mesa, sono e cinza,
dissolvem-se as iguarias
- viandas, aspargos, vinhos -
que ofereci às visitas.

Visitam porém omissas,
não cuidaram de comida,
aos da mesa preferindo
requintes talvez mais finos.

À cabeceira, sozinho,
a coisa alguma presido
senão a mim mesmo: abismo
que em si próprio se enraíza.

Quanto aos convivas - repito -,
de algum modo ainda me habitam;
não fosse assim, como ouvi-los,
agora, em meus labirintos?

Sim, ei-los meus inquilinos,
os mortos, tão coisa viva
que a morte já não os cinge:
deixa-os fluir, linfa, comigo.

  

E SE EU DISSER

E se eu disser que te amo - assim, de cara,
sem mais delonga ou tímidos rodeios,
sem nem saber se a confissão te enfara
ou se te apraz o emprego de tais meios?
E se eu disser que sonho com teus seios,
teu ventre, tuas coxas, tua clara
maneira de sorrir, os lábios cheios
da luz que escorre de uma estrela rara?
E se eu disser que à noite não consigo
sequer adormecer porque me agarro
à imagem que de ti em vão persigo?
Pois eis que o digo, amor. E logo esbarro
em tua ausência - essa lâmina exata
que me penetra e fere e sangra e mata.

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