O POEMA
Não sou eu que
escrevo o meu poema:
ele é que se
escreve e que se pensa,
como um polvo a
distender-se, lento,
no fundo das
águas, entre anêmonas
que nos abismos do
mar despencam.
Ele é que se
escreve com a pena
da memória, do
amor, do tormento,
de tudo o que aos
poucos se relembra:
um rosto, uma
paisagem, a intensa
pulsação da luz
manhã adentro.
Ela se escreve
vindo do centro
de si mesmo,
sempre se contendo.
É medido, estrito,
minudente,
música sem clave
ou instrumentos
que se escuta
entre o som e o silêncio.
As palavras com
que em vão ao invento
não são mais que
ociosos ornamentos,
e nenhuma gala lhe
acrescentam.
Seja belo ou, ao
invés, horrendo,
a ele é que cabe
todo engenho,
não a mim, que
apenas o contemplo
como um sonho que
se sustenta
sobre o nada,
quando o mito e a lenda
eram as vísceras
de que o poema
se servia para
ir-se escrevendo.
DOM QUIXOTE
Vai a passo Dom
Quixote
em seu magro
Rocinante.
Sancho Pança o
segue a trote
pela Mancha
calcinante.
Tudo é pedra,
arbusto seco,
erva má, ermas
masetas.
Não se escuta nem
o eco
do vento a ranger
nas gretas.
O que buscam o
fidalgo
e o seu álacre
escudeiro?
Peripécias,
duelos, algo
que lhes recorde o
cordeiro
quando abriu os
sete selos
e fez soar as
trombetas?
Buscam o quê? O
que fê-los
ir tão longe em
suas bestas?
Pois esse Alonso
Quijano,
ao deixar a sua
aldeia,
só buscava –
áspero engano –
exumar o que, na
teia
de suas tontas
leituras,
eram duendes,
hierofantes,
castelos, leões,
armaduras,
dulcinéias,
nigromantes
e uma Espanha onde
a justiça,
há tanto um tíbio
sol posto,
fosse um bem que
só na liça
pudesse ser
recomposto.
Mas do triste
cavaleiro
era tanto o
desatino
que na cuia de um
barbeiro
vira o elmo de
Mambrino,
nas ovelhas ao
relento,
uma tropa de
meliantes,
e nos moinhos de
vento,
uns desgrenhados
gigantes.
Dom Quixote nunca
via
o que aos seus
pares narrava,
pois que só lia e
mais lia,
e ao ler é que se
encantava.
E assim do texto
as imagens
saltavam – bruscas
centelhas –
no amarelo das
paisagens,
no ocre encardido
das telhas.
Foi quando então,
claro e fundo,
percebeu que o que
ia vendo
nada tinha com o
mundo
sobre o qual
andara lendo.
Ilusão e
realidade,
heroísmo e
covardia,
sensualismo e
castidade,
prosa pedestre e
poesia
– eis os pólos do
conflito
que somente se
harmoniza
no humor de um
cáustico dito
que nos fustiga e
eletriza.
E o que redime o
manchego
não é tanto aquilo
que ama,
e sim o dom de si
mesmo
no amor que doa a
uma dama,
sem nenhuma
recompensa
que não seja a do
fracasso
ou da estrita
indiferença
de quem sequer
viu-lhe um traço.
De fala mansa e
discreta,
que ao calar é que
se escuta,
seu percurso é a
linha reta
entre o que tomba
e o que luta.
Vai a passo Dom
Quixote,
ya el pie en el
estribo.
A morte agora é seu
mote.
Vai a sós. Vai só
consigo.
A IMORTALIDADE
O que é a
imortalidade?
Um sopro que nos
carrega
para os confins da
orfandade,
onde o espírito se
nega
e de si já não
recorda
após a última
entrega?
Que luz é a que
nos acorda
quando a morte, em
dada hora,
bate à porta e
chega à borda
do ser que se vai
embora,
mas crê que não
vai de todo,
pois do invólucro
que fora
algo fica em meio
ao lodo
que lhe veste o
corpo morto
com a púrpura do
engodo?
E o que cabe ao
que foi torto
e nunca exigiu
conserto?
Irá chegar a algum
porto?
Será que na alma
um aperto
não lhe purgou a
maldade
quando do fim se
viu perto?
O que é a
imortalidade?
Uma insígnia, uma
medalha
com que se louva a
vaidade?
Ou não será a
mortalha
que te poupa só a
cara
escanhoada a
navalha?
Será talvez a mais
rara
das obras que
publicaste
ou da crítica a
mais cara?
Será isto, já
pensaste,
a herança em que
se resume
o que aos amigos
deixaste?
Esquece. Sente o
perfume
de algo que se fez
distante:
a mão de uma
criança, o gume
de seu olhar
penetrante
quando viu, no
ermo do cais,
que o tempo que
segue adiante
é o mesmo que
volta atrás
e confunde a
realidade,
e a desmantela, e
a refaz.
É isto a
imortalidade:
esse eterno e
estranho rio
que corre em ti e
te invade.
E o mais é só o
pavio
de um lívido círio
que arde
no insuportável
vazio
que enche toda a
tua tarde.
OS MORTOS
I
Os mortos
sentam-se à mesa,
mas sem tocar na
comida;
ora fartos, já não
comem
senão côdeas de
infinito.
Quedam-se
esquivos, longínquos,
como a escutar o
estribilho
do silêncio que
desliza
sobre a medula do
frio.
Não devendo,
embora lisas,
suas frontes, onde
a brisa
tece uma tênue
grinalda
de flores que não
se explicam.
Nos beirais a lua
afia
Seu florete de
marfim.
(Sob as plumas de
neblina
os mortos estão
sorrindo:
um sorriso que,
tão tíbio,
não deixa sequer
vestígio
de seu traço
quebradiço
na concha azul do
vazio.)
Quem serão estes
assíduos
mortos que não se
extinguem?
De onde vêm? Por
que retinem
sob o pó de meu
olvido?
Que se revelem,
definam
os motivos de sua
vinda.
Ou então que me
decifrem
seu desígnio:
pergaminho.
Sei de mortos que
partiram
quase vivos, entre
lírios;
outros sei que,
sibilinos,
furtaram-se às
despedidas.
Lembro alguns,
talvez meninos,
que se foram por
equívoco;
e outros mais,
algo esquecidos
que de si mesmos
se iam.
Mas estes, a que
família
de mortos
pertenceriam?
A que clã, se não
os sinto
visíveis, tampouco
extintos?
Ou quem sabe não
seriam
mortos de morte,
mas sim
de vida: imagens em
ruínas
na memória
adormecidas.
Mas eles, em seu
ladino
concílio,
disfarçam, fingem
não me ouvir. E
seu enigma
(névoa) no ar
oscila e brinca.
II
Ó mortos que, sem
convite,
à minha mesa
finita
sentastes só para
urdir
tal intriga
metafísica!
Quem vos pediu me
despísseis
vosso segredo mais
íntimo?
E, ao despi-lo,
não me abrísseis
seu núcleo de
morte e vida...
E por que tanto
sigilo
em vosso verbo
melífluo,
se a morte em si
já é signo
transfigurado de
vida,
se apenas um morto
em mim
é o que basta de
agonia
para que o tempo o
redima
e logo inverta sua
sina?
Assim, estes
mortos (vivos)
não estão aqui nem
ali:
pertencem todos à
minha
carne, agora feita
espírito.
E mesmo que se
retirem
(e eis que o
fazem, de mansinho)
algo deles, pelas frinchas
da noite cúmplice,
fica.
E me invade, vago
líquido,
tingindo fibra por
fibra
o ser que em meu
ser persiste
conta o outro, que
o mastiga.
III
Sobre a mesa, sono
e cinza,
dissolvem-se as
iguarias
- viandas,
aspargos, vinhos -
que ofereci às
visitas.
Visitam porém
omissas,
não cuidaram de
comida,
aos da mesa
preferindo
requintes talvez
mais finos.
À cabeceira,
sozinho,
a coisa alguma
presido
senão a mim mesmo:
abismo
que em si próprio
se enraíza.
Quanto aos
convivas - repito -,
de algum modo
ainda me habitam;
não fosse assim,
como ouvi-los,
agora, em meus
labirintos?
Sim, ei-los meus
inquilinos,
os mortos, tão
coisa viva
que a morte já não
os cinge:
deixa-os fluir,
linfa, comigo.
E SE EU DISSER
E se eu disser que
te amo - assim, de cara,
sem mais delonga
ou tímidos rodeios,
sem nem saber se a
confissão te enfara
ou se te apraz o
emprego de tais meios?
E se eu disser que
sonho com teus seios,
teu ventre, tuas
coxas, tua clara
maneira de sorrir,
os lábios cheios
da luz que escorre
de uma estrela rara?
E se eu disser que
à noite não consigo
sequer adormecer
porque me agarro
à imagem que de ti
em vão persigo?
Pois eis que o
digo, amor. E logo esbarro
em tua ausência -
essa lâmina exata
que me penetra e
fere e sangra e mata.
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