ADORMECIDA
Ela
dormia... Sobre o alvor do leito
Desenhava-se,
esplêndida miragem,
Seu lindo
corpo, escultural, perfeito.
Encrespado
das rendas da roupagem,
Seu seio
brandamente palpitava
Como a
lagoa no tremor da aragem.
Solto, o
cabelo se desenrolava
Sobre os
lençóis, em plena rebeldia,
Como um
revolto mar que os alagava.
Como no
céu, quando desponta o dia,
A aurora
raia, de um sorriso a aurora
Pelo seu
meigo rosto se expandia.
E ela
dormia descuidada... Fora,
O mar
gemia um cântico plangente
Como uma
alma perdida que erra e chora.
Um raio de
luar, branco e tremente,
Pela
janela mal cerrada veio
Entrando,
surda, sorrateiramente...
Ia
beijá-la em voluptuoso anseio;
Mas, ao
vê-la dormindo entre as serenas
Ondas
daquele sono sem receio,
Hesitou em
beijar-lhe as mãos pequenas,
E
humildemente, e como ajoelhando,
Beijou-lhe
a fímbria do vestido apenas...
E o lindo
quadro, estático, fitando,
Senti não
sei que mística ternura
Por toda a
alma se me derramando
Porque
acima daquela formosura
Do corpo,
os seus quinze anos virginais
Envolviam-lhe
a angélica figura
Na sombra
de umas asas ideais.
A MINHA IRMÃ
Entregaram-te
enfim à paz do cemitério,
Deixaram-te
na cova o corpo delicado,
E a funda
escuridão enorme do Mistério
Para
sempre engoliu-te, ó lírio desfolhado!
Agora, na
umidade aspérrima do solo,
Terás para
abrigar-te o derradeiro sono
- Em vez
do olhar materno e do materno colo -
A tristeza
glacial de um lúgubre abandono.
E lá -
ir-te-ão roçar a alvíssima epiderme,
E,
roendo-te a carne, apodrecer-te os ossos,
O contato
nojento e túrbido do verme,
E as
negras podridões dos charcos e dos poços.
E enquanto
adormecida à sombra desolada
Dos
ciprestes, tua carne apodrentar-se, as feras
Hão de
sorver a luz ao cálix da alvorada
E hão
aspirar o aroma às frescas primaveras.
E enquanto
na funérea escuridão dormires,
A terra há
de sorrir nas expansões da flora,
Hão de
enfaixar o céu as cores do arco-íris,
E o sol há
de fulgir nas púrpuras da aurora.
E tu...
não hás de mais colher pelos caminhos
A rubra
flor aberta à madrugada; e à ave
Não mais
imitarão a música dos ninhos
As doces
vibrações de tua voz suave!
Amanhã tu
serás o lodo de um monturo,
Uma
caveira a rir um riso de idiota;
E surgirás
no limo, e hás de ser verme impuro,
E virás na
erva ruim que a sepultura brota...
Embora!
Terás sempre a alvura do alabastro
À vista
espiritual de uma ilusão materna...
Ao olhar
de tua mãe tu serás sempre um astro
Esculpido
no azul de uma saudade eterna!
MENINA E MOÇA
Tu, que és
quase uma criança
E que
enlevada sorris
À
tentadora esperança
De ser
amada, e feliz:
Sê formosa;
entre as formosas
Reina e
brilha, se puderes:
Que a
beleza nas mulheres
É como o
viço nas rosas.
Sendo
bonita e mais nada
Cumpre a
mulher com fulgor
Sobre a
terra iluminada
O seu
destino de flor.
Sê
bondosa; entre as melhores
Sê a
melhor, se puderes:
Que a
bondade nas mulheres
É como o
aroma nas flores.
Meiga,
formosa, querida,
Ama e sê
amada: o amor
Na areia
solta da vida
Brota
roseiras em flor.
Serás
feliz? Ai, não queiras
Ser feliz:
às mais ditosas
Brotam
mágoas entre as rosas
Como
espinhos nas roseiras...
Tu, que és
quase uma criança
E
acreditas quanto diz
A
enganadora esperança
De ser
amada e feliz,
Sê
resignada: a roseira
Que mais
viça e mais prospera
Dá rosas
na primavera
E espinhos
a vida inteira...
A INVENÇÃO DO DIABO
Deus,
entregando ao Diabo a metade do mundo,
Deu-lhe a
parte pior, como era de razão;
E, para
arrecadar seu patrimônio, o Imundo
Foi
forçado a varrer todo o cisco do chão.
Tomando
para si todo o imenso tesouro
Da Bondade
e da Luz, do Amor e da Harmonia,
Pode o
Senhor fazer esbanjamento de ouro
Nas
estrelas da noite e no esplendor do dia.
Pode
esparzir na areia as pérolas do orvalho,
Marchetar
de rubis a asa de um beija-flor,
Fazer a
primavera — e por em cada galho
O gorjeio
de uma ave e o riso de uma flor...
A Satanás,
porém, coube em partilha a treva,
O ódio
como prazer, como covil um poço,
E ele lá
no seu reino escuro a vida leva
De um cão
magro a que dão muita pancada e um osso.
E,
enquanto a mão de Deus, abrindo-se, semeia
Astros de
ouro no céu, messes de ouro no pó,
Satanás,
furioso, a mão sacode, cheia
De lepra e
maldição como o punho de Jó.
Só uma vez
Satã respirou satisfeito,
E
arregaçou-lhe o beijo um pérfido sorriso:
Quando,
acaso, ao sair do seu covil estreito,
De repente
se achou dentro do Paraíso.
A primeira
impressão que teve foi de inveja:
Daquele
estranho quadro o imprevisto esplendor,
Só lhe
pode arrancar à boca malfazeja
Uivos de
cão ferido, imprecações de dor.
Mas, de
repente, como o corisco clareia
O
tenebroso céu nas borrascas de agosto,
Uma idéia
triunfante, uma sinistra idéia,
Fuzilou-lhe
no olhar e iluminou-lhe o rosto.
Sobre um
macio chão todo em musgos e rosas,
Eva,
formosa e nua, adormecera ao luar:
E sobre a
alva nudez dessas formas graciosas
Satã
deixou cair um desdenhoso olhar...
Mas num
sonho talvez de cousas ignoradas,
Num desejo
sem alvo, imperfeito e indeciso,
Eva os
lábios abriu — e abriram-se, orvalhadas,
De um
suspiro de amor, as rosas de um sorriso.
Espantado,
Satã viu que esse mármore era
Animado e
gentil, ardente e encantador;
Como um
resumo viu de toda a primavera
Na
frescura sem par daquela boca em flor.
E foi
somente então que o Príncipe das Treva
Imaginou o
Amor furioso e desgrenhado,
E resolveu
fazer dos róseos lábios de Eva
O cálix
consagrado às missas do Pecado.
Lábios feitos
de mel, de rosas ao sereno,
De céu do
amanhecer franjado em rosicler...
Entreabriu-os
Satã, e enchendo-os de veneno,
Sorriu.
Tinha inventado o beijo da mulher.
FUGINDO AO CATIVEIRO
Horas mortas. Inverno. Em plena mata. Em plena
Serra do Mar.
I
Em cima,
ao longe, alta e serena,
A ampla
curva do céu das noites de geada:
Como a
palpitação vagamente azulada
De uma
poeira de estrelas...
Negra,
imensa, disforme,
Enegrecendo
a noite, a desdobrar-se pelas
Amplidões
do horizonte, a cordilheira dorme.
Como um
sonho febril no seu sono ofegante,
Na sombra
em confusão do mato farfalhante,
Tumultuando,
o chão corre às soltas, sem rumo;
Trepa
agora alcantis por escarpas a prumo,
Eriça-se
em calhaus, bruscos como arrepios;
Mais
repousado, além levemente se enruga
Na crespa
ondulação de cômoros macios:
Resvala
num declive; e logo, como em fuga
Precípite,
através da escuridão noturna,
Despenha-se
de chofre ao vácuo de uma furna.
Do fundo
dos grotões outra vez se subleva,
Surge,
recai, ressurge... E, assim, como em torrente
Furiosa,
em convulsões, vai rolando na treva
Despedaçadamente
e indefinidamente...
Muge na
sombra a voz rouca das cachoeiras.
Rajadas
sorrateiras
De um
vento preguiçoso arfam de quando em quando
Como um
vasto motim que passa sussurrando:
E em cada
árvore altiva, e em cada humilde arbusto,
Há
contorções de raiva ou frêmitos de susto.
A mata é
tropical: basta, quase maciça
De tão
cerrada. Ao pé do tronco dominante,
Que,
imperturbavelmente imóvel, inteiriça
Sob a rija
galhada o torso de gigante.
- Uma
vegetação turbulenta e bravia
Rasteja,
alastra, fura, enrosca-se, porfia:
Moitas de
craguatás agressivos; rasteiras
Trapoeirabas
tramando o chão todo; touceiras
De
brejaúva,em riste as flechas oriçadas
De
espinhos; e por tudo, e em tudo emaranhadas,
As
trepadeiras, em redouças balouçando
Hastes
vergadas, galho a galho acorrentando
Árvores,
afogando arbustos, brutalmente
Enlaçando
à jissara o talhe adolescente...
Cem
espécies formando a trama de uma sebe,
Atulhando
o desvão de dois troncos; a plebe
Da floresta,
oprimida e em perpétuo levante.
Acesa num
furor de seiva transbordante,
Toda essa
multidão desgrenhada - fundida
Como a
conflagração de cem tribos selvagens
Em batalha
- a agitar cem formas de folhagens
Disputa-se
o ar, o chão, o orvalho, o espaço, a vida.
Na
confusão da noite, a confusão do mato
Gera
alucinações de um pavor insensato,
Aguça o
ouvido ansioso e a visão quase extinta:
Lembra - e
talvez abafe - urros de onça faminta
A mal
ouvida voz da trêmula cascata
Que salta
e foge e vai rolando águas de prata.
Rugem
sinistramente as moitas sussurrantes.
Acoitam-se
traições de abismo numa alfombra.
Penedos
traçam no ar figuras de gigantes.
Cada ruído
ameaça, e cada vulto assombra.
Uns tardos
caminhantes
Sinistros,
meio nus, esboçados na sombra,
Passam,
como visões vagas de um pesadelo...
São
cativos fugindo ao cativeiro. O bando
É
numeroso. Vêm de longe, no atropelo
Da fuga
perseguida e cansada. Hesitando,
Em recuos
de susto e avançadas afoitas,
Rompendo o
mato e a noite, investindo as ladeiras,
Improvisam
o rumo ao acaso das moitas.
Vão
arrastando os pés chaga dos de frieiras...
De furna
em furna a Serra, imensa, se desdobra,
De sombra
em sombra a noite, infinda, se prolonga;
E
flexuosa, em vaivéns, como de dobra em dobra,
A longa
fila ondula e serpenteia, e a longa
Marcha
através da noite e das furnas avança...
Vão
andrajosos, vão famintos, vão morrendo.
Incita-os
o terror, alenta-os a esperança:
Fica-lhes
para trás, para longe, o tremendo
Cativeiro...
E através desses grotões por onde
Se arrastam,
do sertão que os esmaga e os esconde.
Da vasta
escuridão que os cega e que os ampara,
Do mato
que obsta e apaga os seus passos furtivos,
Seguem,
almas de hebreus, rumo do Jabaquara
- A Canaã
dos cativos.
Vão
calados, poupando o fôlego. De quando
Em quando
- fio d'água humilde murmurando
As
tristezas de um lago imenso - algum gemido,
Um grito
de mulher, um choro de criança,
Conta uma
nova dor em peito já dorido,
Um
bruxoleio mais mortiço da esperança,
A rajada
mais fria arrepiando a floresta
E a pele nua;
o espinho entrando a carne; a aresta
De um
seixo apunhalando o pé já todo em sangue:
Uma
exacerbação nova da fome velha,
A tortura
da marcha imposta ao corpo exangue;
O joelho
exausto que, contra a vontade, ajoelha...
E a longa
fila segue: a passo, vagarosa,
Galga de
fraga em fraga a montanha fragosa,
Bem mais
fragosa, bem mais alta que o Calvário...
Um,
tropeçando, arrima o pai octogenário:
Os mais
valentes dão apoio aos mais franzinos;
E Mães, a
agonizar de fome e de cansaço,
Levam com
o coração mais do que com o braço
Os filhos
pequeninos.
II
Ei-lo, por
fim, o termo desejado
Da subida:
a montanha avulta e cresce
De um vale
escuro ao céu todo estrelado;
E o seu
cume de súbito aparece
De um
resplendor de estrelas aureolado.
Mas ai!
Tão longe ainda!... E de permeio
A vastidão
da sombra sem caminhos,
Um fundo
vale, tenebroso e feio,
E o mato,
o mato das barrocas, cheio
De
fantasmas, de estrépitos, de espinhos.
Tão longe
ainda!...E os peitos arquejantes,
E as forças
e a coragem sucumbindo...
Estacando,
aterrados, por instantes
Pensam que
a morte hão de encontrar bem antes
Do termo
desse itinerário infindo...
Tiritando,
a chorar, uma criança
Diz com
voz débil: "Mãe, faz tanto frio!..."
E a mãe os
olhos desvairados lança
Em torno,
e vê apenas o sombrio
Manto de
folhas que o tufão balança...
"Mãe,
tenho fome!" a criancinha geme,
E ela, dos
trapos arrancando o seio,
Põe-lho na
boca ansiosa, aperta e espreme...
Árido e
seco!...E do caminho em meio
Ela,
aterrada e muda, estaca e treme.
Vai-lhe
morrer, morrer nos próprios braços,
Morrer de
fome, o filho bem-querido;
E ela,
arrastando para longe os passos,
O amado
corpo deixará, perdido
Para os
seus beijos, para os seus abraços...
Esse
cadáver pequenino, e o riso
Murcho no
lábio, e os olhos apagados,
Toda essa
vida morta de improviso,
Hão de
ficar no chão, abandonados
À
inclemência dos sóis e do granizo;
Esse
entezinho débil e medroso,
Que ao
mais leve rumor se assusta e busca
O asilo do
seu seio carinhoso,
Há de
ficar sozinho; e, em torno, a brusca
Voz do vento
ululante e cavernoso...
E, em torno,
a vasta noite solitária
Cheia de
sombra, cheia de pavores,
Onde passa
a visão errante e vária
Dos
lobisomens ameaçadores
Em
desfilada solta e tumultuária...
Desde a
cabeça aos pés, toda estremece;
Falta-lhe
a força, a vista se lhe turva,
Toda a
coragem na alma lhe esmorece,
E,
afastando-se, ao longe, numa curva
O bando
esgueira-se, e desaparece...
Ficam sós,
ela e o filho, agonizando,
Ele a
morrer de fome, ela de medo.
Ulula o
furacão de quando em quando,
E sacudindo
os ramos e o folhedo
Movem-se
as árvores gesticulando.
Ela ergue
os olhos para o céu distante
E pede ao
céu que descortine a aurora:
Dorme
embuçado em sombras o levante,
Mal
bruxuleia pela noite fora
Das
estrelas o brilho palpitante...
Tenta
erguer-se, e recaí; soluça e brada,
E apenas o
eco lhe responde ao grito;
Os olhos
fecha para não ver nada,
E tudo vê
com o coração aflito,
E tudo vê
com a alma alucinada.
Dentro se
lhe revolta a carne; explode
O instinto
bruto, e quebra-lhe a vontade:
Mães, vosso
grande amor, que tanto pode,
Pode menos
que a indômita ansiedade
Em que o
terror os músculos sacode!
Ela,
apertando o filho estreitamente,
Beija-lhe
os olhos úmidos, a boca...
E
desvairada, em pranto, ébria e tremente,
Arrancando-o
do seio, de repente
Larga-o no
chão e foge como louca.
III
Aponta a
madrugada:
Da turva
noite esgarça o úmido véu,
E
espraia-se risonha, alvoroçada,
Rosando os
morros e dourando o céu.
A caravana
trôpega e ansiosa
Chega ao
tope da Serra...
O olhar
dos fugitivos
Descansa
enfim na terra milagrosa
Na
abençoada terra
Onde não
há cativos.
Em baixo
da montanha, logo adiante,
Quase a
seus pés, uma planície imensa,
Clara,
risonha, aberta, verdejante:
E ao fundo
do horizonte, ao fim da extensa
Macia
várzea que se lhes depara
Ali, próxima,
em frente,
Esfumadas
na luz do sol nascente,
As colinas
azuis do Jabaquara...
O dia de
ser livre, tão sonhado
Lá do
fundo do escuro cativeiro,
Amanhece
por fim, leve e dourado,
Enchendo o
céu inteiro.
Uma
explosão de júbilo rebenta
Desses
peitos que arquejam, dessas bocas
Famintas,
dessa turba macilenta:
Um burburinho
de palavras loucas,
De frases
soltas que ninguém escuta
Na vasta
solidão se ergue e se espalha,
E em pleno
seio da floresta bruta
Canta
vitória a meio da batalha.
Seguindo a
turba gárrula e travessa
Que se
alvoroça e canta e salta e ri-se,
Um
coitado, com a trêmula cabeça
Toda a
alvejar das neves da velhice,
Tardo,
trôpego, só, desamparado,
Chega
afinal, exsurge à superfície
Do alto
cimo; repousa, consolado,
Longamente,
nos longes da planície
O olhar
quase apagado;
Distingue-a
mal, dúvida; resmungando,
Fita-a;
compreende-a pouco a pouco; vê-a
Anunciando
próxima, esboçando
- No chão
que brilha de um fulgor de areia,
Num
verde-claro de ervaçal que ondeia-
A aparição
da Terra Prometida...
Todo
trêmulo, ajoelha; e ajoelhado,
De mãos
postas, nos olhos a alma e a vida,
Ele, o
mesquinho e o bem-aventurado,
Adora o
Céu nessa visão terrena...
E de mãos
postas sempre, extasiado,
Murmura,
reza esta oração serena
Como um
tosco resumo do Evangelho:
"Foi
Deus Nosso Senhor que teve pena
De um
pobre negro velho..."
Seguem.
Começa a íngreme descida.
Descem. E
recomeça
A
peregrinação entontecida
No
labirinto da floresta espessa.
Sob o
orvalho das folhas gotejantes,
Entre as
moitas cerradas de espinheiros,
Andrajosos,
famintos, triunfantes,
Descem
barrancos e despenhadeiros.
Descem
rindo, a cantar... Seguem, felizes,
Sem
reparar que os pés lhes vão sangrando
Pelos
espinhos e pelas raízes;
Sem
reparar que atrás, pelo caminho
Por onde
fogem como alegre bando
De
passarinhos da gaiola escapo
- Fica um
pouco de trapo em cada espinho
E uma gota
de sangue em cada trapo.
Descem
rindo e cantando, em vozeria
E em
confusão. Toda a floresta, cheia
Do
murmúrio das fontes, da alegria
Deles, da
voz dos pássaros, gorjeia.
Tudo é
festa. Severos e calados,
Os velhos
troncos, plácidos ermitas,
Os
próprios troncos velhos, remoçados,
Riem no
riso em flor das parasitas.
Varando
acaso às árvores a sombra
Da
folhagem que à brisa arfa e revoa,
Na verde
ondulação da úmida alfombra
O ouro
leve do sol bubuia à toa;
A água das
cachoeiras, clara e pura,
Salta de
pedra em pedra, aos solavancos;
E a flor
de S. João se dependura
Festivamente
à beira dos barrancos...
Vão
alegres, ruidosos... Mas no meio
Dessa
alegria palpitante e louca,
Que
transborda do seio
E
transbordada canta e ri na boca,
Uma
mulher, absorta, acabrunhada,
Segue
parando a cada passo, e a cada
Instante
os olhos para trás volvendo:
De além,
do fundo dessas selvas brutas
Chama-a,
seu nome em lágrimas gemendo,
Uma vozinha
ansiosa e suplicante...
Mãe, onde
geme que tão bem o escutas
Teu filho
agonizante?
IV
De
repente, como um agouro e uma ameaça,
Um alarido
de vozes estranhas passa
Na rajada
do vento...
Estacam.
Como um
bando
De ariscos
caitetus farejando a matilha,
Imóveis,
alongado o pescoço, arquejando,
Presa a
respiração, o olhar em fogo, em rilha
Os dentes,
dilatada a narina, cheirando
A aragem,
escutando o silêncio, espreitando
A solidão;
assim, num alarma instintivo,
Estaca e
põe-se alerta o bando fugitivo.
Nova
rajada vem, novo alarido passa...
Como,
topando o rastro inda fresco da caça,
Uiva a
matilha enquanto inquire o chão agreste,
E de
repente, em fúria, alvoçada investe
E vai
correndo e vai latindo de mistura;
Rosna ao
dar-lhes na pista a escolta que os procura,
E morro
abaixo vem ladrando-lhes no encalço.
Grita e
avança em triunfo a soldadesca ufana.
E os
frangalhos ao vento, em sangue o pé descalço,
Alcatéia
usurpando a forma e a face humana,
Almas em
desespero arfando em corpos gastos,
Mães
aflitas levando os filhinhos de rastos,
Homens com
o duro rosto em lágrimas, velhinhos
Esfarrapando
as mãos a tatear nos espinhos;
Toda essa
aluvião de caça perseguida
Por um
clamor de fúria e um tropel de batida,
Foge...
Rompendo o mato e rolando a montanha,
Foge... E,
moitas, a dentro e barrocais a fora,
Arrasta-se,
tropeça, esbarra, se emaranha,
Arqueja,
hesita, afrouxa, e desanima, e chora...
Param.
Perto,
bramindo, a escolta o passo estuga.
Os
fugitivos, nesse aproximar da escolta
Sentem que
vai chegando o epílogo da fuga:
A
gargalheira, a algema, as angústias da volta...
Além,
fulge na luz da manhã leve e clara,
O contorno
ondulante e azul do Jabaquara.
Adeus,
terra bendita! Adeus, sonho apagado
De ser
livre! É preciso acordar, e acordado
Ver-te
ainda, e dizer-te um adeus derradeiro,
E voltar,
para longe e para o cativeiro.
Sobre
eles, novamente, uma funéria noite
Cai, para
sempre...
Como a
trôpega boiada,
Que,
abrasada de sede e tangida do açoite,
Se arrasta
pela areia adusta de uma estrada:
Volverão a
arrastar-se, humildes e tristonhos,
Tangidos
do azorrague e abrasados de sonhos,
Pelo
deserto areal desse caminho estreito:
A vida
partilhada entre a senzala e o eito...
Agrupam-se,
vencidos,
A tremer,
escutando o tropel e os rugidos
Da escolta
cada vez mais em fúria e mais perto.
Nesse
magote vil de negros maltrapilhos
Mais de um
olhar, fitando o vasto céu deserto,
Ingenuamente
exprobra o Pai que enjeita os filhos...
Destaca-se
do grupo um fugitivo. Lança
Em torno
um longo olhar tranquilo, de esperança,
E diz aos
companheiros:
"Fugi,
correi, saltai pelos despenhadeiros;
A várzea
está lá em baixo, o Jabaquara é perto...
Deixai-me
aqui sozinho.
Eu vou
morrer, decerto...
Vou morrer
combatendo e trancando o caminho.
A morte
assim me agrada:
Eu tinha
de voltar p´ra conservar-me vivo...
E é melhor
acabar na ponta de uma espada
Do que
viver cativo".
E enquanto
a caravana
Desanda
pelo morro atropeladamente,
Ele,
torvo, figura humilde e soberana,
Fica, e a
pé firme espera o inimigo iminente.
Hércules
negro! Corre, abrasa-lhe nas veias
Sangue de
algum heróico africano selvagem,
Acostumado
à guerra, a devastar aldeias,
A cantar e
a sorrir no meio da carnagem
A
desprezar a morte espalhando-a às mãos cheias...
Não pode a
escravidão domar-lhe a índole forte,
E vergar-lhe
a altivez, e ajoelhá-lo diante
Do
carrasco e da algema:
Sorri para
o suplício e a fito encara a morte
Sem que
lhe o braço trema,
Sem que
lhe ensombre o olhar o medo suplicante.
Erguendo o
braço, ele ergue a foice: a foice volta,
E rola
sobre a terra uma cabeça solta.
Sobre ele
vem cruzar-se o gume das espadas...
"Ah,
prendê-lo, jamais!" respondem as foiçadas
Turbilhonando
no ar, e ferindo, e matando.
De lado a
lado o sangue espirra a jorros... Ele,
Ágil,
possante, ousado, heróico, formidando,
Faz frente:
um contra dez, defende-se e repele.
E não se
entrega, e não recua, e não fraqueja.
Tudo nele,
alma e corpo ajustados, peleja:
O braço
luta, o olhar ameaça e desafia,
A coragem
resiste, a agilidade vence.
E,
coriscando no ar, a foice rodopia.
Afinal um
soldado, ébrio de covardia,
Recua; vai
fugir... Recua mais; detém-se:
Fora da
luta, sente o gosto da chacina;
E
vagarosamente alçando a carabina,
Visa,
desfecha.
O negro
abrira um passo à frente,
Erguera a
foice, armava um golpe...
De repente
Estremece-lhe
todo o corpo fulminado.
Cai-lhe
das mãos a foice, inerte, para um lado,
Pende-lhe,
inerte, o braço. Impotente, indefeso
Ilumina-lhe
ainda a face decomposta
Um
derradeiro olhar de afronta e de desprezo.
Como
enxame em furor de vespas assanhadas,
Assanham-se-lhe
em cima os golpes sem resposta,
E
retalham-no à solta os gumes das espadas...
E
retalhado, exausto, o lutador vencido
Todo
flameja em sangue e expira num rugido.
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Fonte
"Toda a Poesia: Antologia Poética". Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2015.
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