segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Vicente de Carvalho: "5 Poemas"

ADORMECIDA

Ela dormia... Sobre o alvor do leito
Desenhava-se, esplêndida miragem,
Seu lindo corpo, escultural, perfeito.

Encrespado das rendas da roupagem,
Seu seio brandamente palpitava
Como a lagoa no tremor da aragem.

Solto, o cabelo se desenrolava
Sobre os lençóis, em plena rebeldia,
Como um revolto mar que os alagava.

Como no céu, quando desponta o dia,
A aurora raia, de um sorriso a aurora
Pelo seu meigo rosto se expandia.

E ela dormia descuidada... Fora,
O mar gemia um cântico plangente
Como uma alma perdida que erra e chora.

Um raio de luar, branco e tremente,
Pela janela mal cerrada veio
Entrando, surda, sorrateiramente...

Ia beijá-la em voluptuoso anseio;
Mas, ao vê-la dormindo entre as serenas
Ondas daquele sono sem receio,

Hesitou em beijar-lhe as mãos pequenas,
E humildemente, e como ajoelhando,
Beijou-lhe a fímbria do vestido apenas...

E o lindo quadro, estático, fitando,
Senti não sei que mística ternura
Por toda a alma se me derramando

Porque acima daquela formosura
Do corpo, os seus quinze anos virginais
Envolviam-lhe a angélica figura
Na sombra de umas asas ideais.



A MINHA IRMÃ

Entregaram-te enfim à paz do cemitério,
Deixaram-te na cova o corpo delicado,
E a funda escuridão enorme do Mistério
Para sempre engoliu-te, ó lírio desfolhado!

Agora, na umidade aspérrima do solo,
Terás para abrigar-te o derradeiro sono
- Em vez do olhar materno e do materno colo -
A tristeza glacial de um lúgubre abandono.

E lá - ir-te-ão roçar a alvíssima epiderme,
E, roendo-te a carne, apodrecer-te os ossos,
O contato nojento e túrbido do verme,
E as negras podridões dos charcos e dos poços.

E enquanto adormecida à sombra desolada
Dos ciprestes, tua carne apodrentar-se, as feras
Hão de sorver a luz ao cálix da alvorada
E hão aspirar o aroma às frescas primaveras.

E enquanto na funérea escuridão dormires,
A terra há de sorrir nas expansões da flora,
Hão de enfaixar o céu as cores do arco-íris,
E o sol há de fulgir nas púrpuras da aurora.

E tu... não hás de mais colher pelos caminhos
A rubra flor aberta à madrugada; e à ave
Não mais imitarão a música dos ninhos
As doces vibrações de tua voz suave!

Amanhã tu serás o lodo de um monturo,
Uma caveira a rir um riso de idiota;
E surgirás no limo, e hás de ser verme impuro,
E virás na erva ruim que a sepultura brota...

Embora! Terás sempre a alvura do alabastro
À vista espiritual de uma ilusão materna...
Ao olhar de tua mãe tu serás sempre um astro
Esculpido no azul de uma saudade eterna!



MENINA E MOÇA

Tu, que és quase uma criança
E que enlevada sorris
À tentadora esperança
De ser amada, e feliz:

Sê formosa; entre as formosas
Reina e brilha, se puderes:
Que a beleza nas mulheres
É como o viço nas rosas.

Sendo bonita e mais nada
Cumpre a mulher com fulgor
Sobre a terra iluminada
O seu destino de flor.

Sê bondosa; entre as melhores
Sê a melhor, se puderes:
Que a bondade nas mulheres
É como o aroma nas flores.

Meiga, formosa, querida,
Ama e sê amada: o amor
Na areia solta da vida
Brota roseiras em flor.

Serás feliz? Ai, não queiras
Ser feliz: às mais ditosas
Brotam mágoas entre as rosas
Como espinhos nas roseiras...

Tu, que és quase uma criança
E acreditas quanto diz
A enganadora esperança
De ser amada e feliz,

Sê resignada: a roseira
Que mais viça e mais prospera
Dá rosas na primavera
E espinhos a vida inteira...



A INVENÇÃO DO DIABO

Deus, entregando ao Diabo a metade do mundo,
Deu-lhe a parte pior, como era de razão;
E, para arrecadar seu patrimônio, o Imundo
Foi forçado a varrer todo o cisco do chão.

Tomando para si todo o imenso tesouro
Da Bondade e da Luz, do Amor e da Harmonia,
Pode o Senhor fazer esbanjamento de ouro
Nas estrelas da noite e no esplendor do dia.

Pode esparzir na areia as pérolas do orvalho,
Marchetar de rubis a asa de um beija-flor,
Fazer a primavera — e por em cada galho
O gorjeio de uma ave e o riso de uma flor...

A Satanás, porém, coube em partilha a treva,
O ódio como prazer, como covil um poço,
E ele lá no seu reino escuro a vida leva
De um cão magro a que dão muita pancada e um osso.

E, enquanto a mão de Deus, abrindo-se, semeia
Astros de ouro no céu, messes de ouro no pó,
Satanás, furioso, a mão sacode, cheia
De lepra e maldição como o punho de Jó.

Só uma vez Satã respirou satisfeito,
E arregaçou-lhe o beijo um pérfido sorriso:
Quando, acaso, ao sair do seu covil estreito,
De repente se achou dentro do Paraíso.

A primeira impressão que teve foi de inveja:
Daquele estranho quadro o imprevisto esplendor,
Só lhe pode arrancar à boca malfazeja
Uivos de cão ferido, imprecações de dor.

Mas, de repente, como o corisco clareia
O tenebroso céu nas borrascas de agosto,
Uma idéia triunfante, uma sinistra idéia,
Fuzilou-lhe no olhar e iluminou-lhe o rosto.

Sobre um macio chão todo em musgos e rosas,
Eva, formosa e nua, adormecera ao luar:
E sobre a alva nudez dessas formas graciosas
Satã deixou cair um desdenhoso olhar...

Mas num sonho talvez de cousas ignoradas,
Num desejo sem alvo, imperfeito e indeciso,
Eva os lábios abriu — e abriram-se, orvalhadas,
De um suspiro de amor, as rosas de um sorriso.

Espantado, Satã viu que esse mármore era
Animado e gentil, ardente e encantador;
Como um resumo viu de toda a primavera
Na frescura sem par daquela boca em flor.

E foi somente então que o Príncipe das Treva
Imaginou o Amor furioso e desgrenhado,
E resolveu fazer dos róseos lábios de Eva
O cálix consagrado às missas do Pecado.

Lábios feitos de mel, de rosas ao sereno,
De céu do amanhecer franjado em rosicler...
Entreabriu-os Satã, e enchendo-os de veneno,
Sorriu. Tinha inventado o beijo da mulher.



FUGINDO AO CATIVEIRO
Horas mortas. Inverno. Em plena mata. Em plena
Serra do Mar.

I
Em cima, ao longe, alta e serena,
A ampla curva do céu das noites de geada:
Como a palpitação vagamente azulada
De uma poeira de estrelas...

Negra, imensa, disforme,
Enegrecendo a noite, a desdobrar-se pelas
Amplidões do horizonte, a cordilheira dorme.

Como um sonho febril no seu sono ofegante,
Na sombra em confusão do mato farfalhante,
Tumultuando, o chão corre às soltas, sem rumo;
Trepa agora alcantis por escarpas a prumo,
Eriça-se em calhaus, bruscos como arrepios;
Mais repousado, além levemente se enruga
Na crespa ondulação de cômoros macios:
Resvala num declive; e logo, como em fuga
Precípite, através da escuridão noturna,
Despenha-se de chofre ao vácuo de uma furna.

Do fundo dos grotões outra vez se subleva,
Surge, recai, ressurge... E, assim, como em torrente
Furiosa, em convulsões, vai rolando na treva
Despedaçadamente e indefinidamente...

Muge na sombra a voz rouca das cachoeiras.

Rajadas sorrateiras
De um vento preguiçoso arfam de quando em quando
Como um vasto motim que passa sussurrando:
E em cada árvore altiva, e em cada humilde arbusto,
Há contorções de raiva ou frêmitos de susto.

A mata é tropical: basta, quase maciça
De tão cerrada. Ao pé do tronco dominante,
Que, imperturbavelmente imóvel, inteiriça
Sob a rija galhada o torso de gigante.
- Uma vegetação turbulenta e bravia
Rasteja, alastra, fura, enrosca-se, porfia:
Moitas de craguatás agressivos; rasteiras
Trapoeirabas tramando o chão todo; touceiras
De brejaúva,em riste as flechas oriçadas
De espinhos; e por tudo, e em tudo emaranhadas,
As trepadeiras, em redouças balouçando
Hastes vergadas, galho a galho acorrentando
Árvores, afogando arbustos, brutalmente
Enlaçando à jissara o talhe adolescente...
Cem espécies formando a trama de uma sebe,
Atulhando o desvão de dois troncos; a plebe
Da floresta, oprimida e em perpétuo levante.

Acesa num furor de seiva transbordante,
Toda essa multidão desgrenhada - fundida
Como a conflagração de cem tribos selvagens
Em batalha - a agitar cem formas de folhagens
Disputa-se o ar, o chão, o orvalho, o espaço, a vida.

Na confusão da noite, a confusão do mato
Gera alucinações de um pavor insensato,
Aguça o ouvido ansioso e a visão quase extinta:
Lembra - e talvez abafe - urros de onça faminta
A mal ouvida voz da trêmula cascata
Que salta e foge e vai rolando águas de prata.
Rugem sinistramente as moitas sussurrantes.
Acoitam-se traições de abismo numa alfombra.
Penedos traçam no ar figuras de gigantes.
Cada ruído ameaça, e cada vulto assombra.

Uns tardos caminhantes
Sinistros, meio nus, esboçados na sombra,
Passam, como visões vagas de um pesadelo...

São cativos fugindo ao cativeiro. O bando
É numeroso. Vêm de longe, no atropelo
Da fuga perseguida e cansada. Hesitando,
Em recuos de susto e avançadas afoitas,
Rompendo o mato e a noite, investindo as ladeiras,
Improvisam o rumo ao acaso das moitas.

Vão arrastando os pés chaga dos de frieiras...
De furna em furna a Serra, imensa, se desdobra,
De sombra em sombra a noite, infinda, se prolonga;
E flexuosa, em vaivéns, como de dobra em dobra,
A longa fila ondula e serpenteia, e a longa
Marcha através da noite e das furnas avança...

Vão andrajosos, vão famintos, vão morrendo.
Incita-os o terror, alenta-os a esperança:
Fica-lhes para trás, para longe, o tremendo
Cativeiro... E através desses grotões por onde
Se arrastam, do sertão que os esmaga e os esconde.
Da vasta escuridão que os cega e que os ampara,
Do mato que obsta e apaga os seus passos furtivos,
Seguem, almas de hebreus, rumo do Jabaquara
- A Canaã dos cativos.

Vão calados, poupando o fôlego. De quando
Em quando - fio d'água humilde murmurando
As tristezas de um lago imenso - algum gemido,
Um grito de mulher, um choro de criança,
Conta uma nova dor em peito já dorido,
Um bruxoleio mais mortiço da esperança,
A rajada mais fria arrepiando a floresta
E a pele nua; o espinho entrando a carne; a aresta
De um seixo apunhalando o pé já todo em sangue:
Uma exacerbação nova da fome velha,

A tortura da marcha imposta ao corpo exangue;
O joelho exausto que, contra a vontade, ajoelha...

E a longa fila segue: a passo, vagarosa,
Galga de fraga em fraga a montanha fragosa,
Bem mais fragosa, bem mais alta que o Calvário...
Um, tropeçando, arrima o pai octogenário:
Os mais valentes dão apoio aos mais franzinos;
E Mães, a agonizar de fome e de cansaço,
Levam com o coração mais do que com o braço
Os filhos pequeninos.

II
Ei-lo, por fim, o termo desejado
Da subida: a montanha avulta e cresce
De um vale escuro ao céu todo estrelado;
E o seu cume de súbito aparece
De um resplendor de estrelas aureolado.

Mas ai! Tão longe ainda!... E de permeio
A vastidão da sombra sem caminhos,
Um fundo vale, tenebroso e feio,
E o mato, o mato das barrocas, cheio
De fantasmas, de estrépitos, de espinhos.

Tão longe ainda!...E os peitos arquejantes,
E as forças e a coragem sucumbindo...
Estacando, aterrados, por instantes
Pensam que a morte hão de encontrar bem antes
Do termo desse itinerário infindo...

Tiritando, a chorar, uma criança
Diz com voz débil: "Mãe, faz tanto frio!..."
E a mãe os olhos desvairados lança
Em torno, e vê apenas o sombrio
Manto de folhas que o tufão balança...

"Mãe, tenho fome!" a criancinha geme,
E ela, dos trapos arrancando o seio,
Põe-lho na boca ansiosa, aperta e espreme...
Árido e seco!...E do caminho em meio
Ela, aterrada e muda, estaca e treme.

Vai-lhe morrer, morrer nos próprios braços,
Morrer de fome, o filho bem-querido;
E ela, arrastando para longe os passos,
O amado corpo deixará, perdido
Para os seus beijos, para os seus abraços...

Esse cadáver pequenino, e o riso
Murcho no lábio, e os olhos apagados,
Toda essa vida morta de improviso,
Hão de ficar no chão, abandonados
À inclemência dos sóis e do granizo;

Esse entezinho débil e medroso,
Que ao mais leve rumor se assusta e busca
O asilo do seu seio carinhoso,
Há de ficar sozinho; e, em torno, a brusca
Voz do vento ululante e cavernoso...

E, em torno, a vasta noite solitária
Cheia de sombra, cheia de pavores,
Onde passa a visão errante e vária
Dos lobisomens ameaçadores
Em desfilada solta e tumultuária...

Desde a cabeça aos pés, toda estremece;
Falta-lhe a força, a vista se lhe turva,
Toda a coragem na alma lhe esmorece,
E, afastando-se, ao longe, numa curva
O bando esgueira-se, e desaparece...

Ficam sós, ela e o filho, agonizando,
Ele a morrer de fome, ela de medo.
Ulula o furacão de quando em quando,
E sacudindo os ramos e o folhedo
Movem-se as árvores gesticulando.

Ela ergue os olhos para o céu distante
E pede ao céu que descortine a aurora:
Dorme embuçado em sombras o levante,
Mal bruxuleia pela noite fora
Das estrelas o brilho palpitante...

Tenta erguer-se, e recaí; soluça e brada,
E apenas o eco lhe responde ao grito;
Os olhos fecha para não ver nada,
E tudo vê com o coração aflito,
E tudo vê com a alma alucinada.

Dentro se lhe revolta a carne; explode
O instinto bruto, e quebra-lhe a vontade:
Mães, vosso grande amor, que tanto pode,
Pode menos que a indômita ansiedade
Em que o terror os músculos sacode!

Ela, apertando o filho estreitamente,
Beija-lhe os olhos úmidos, a boca...
E desvairada, em pranto, ébria e tremente,
Arrancando-o do seio, de repente
Larga-o no chão e foge como louca.

III
Aponta a madrugada:
Da turva noite esgarça o úmido véu,
E espraia-se risonha, alvoroçada,
Rosando os morros e dourando o céu.

A caravana trôpega e ansiosa
Chega ao tope da Serra...
O olhar dos fugitivos
Descansa enfim na terra milagrosa
Na abençoada terra
Onde não há cativos.

Em baixo da montanha, logo adiante,
Quase a seus pés, uma planície imensa,
Clara, risonha, aberta, verdejante:

E ao fundo do horizonte, ao fim da extensa
Macia várzea que se lhes depara
Ali, próxima, em frente,
Esfumadas na luz do sol nascente,
As colinas azuis do Jabaquara...

O dia de ser livre, tão sonhado
Lá do fundo do escuro cativeiro,
Amanhece por fim, leve e dourado,
Enchendo o céu inteiro.

Uma explosão de júbilo rebenta
Desses peitos que arquejam, dessas bocas
Famintas, dessa turba macilenta:

Um burburinho de palavras loucas,
De frases soltas que ninguém escuta
Na vasta solidão se ergue e se espalha,
E em pleno seio da floresta bruta
Canta vitória a meio da batalha.

Seguindo a turba gárrula e travessa
Que se alvoroça e canta e salta e ri-se,
Um coitado, com a trêmula cabeça
Toda a alvejar das neves da velhice,
Tardo, trôpego, só, desamparado,
Chega afinal, exsurge à superfície
Do alto cimo; repousa, consolado,
Longamente, nos longes da planície
O olhar quase apagado;
Distingue-a mal, dúvida; resmungando,
Fita-a; compreende-a pouco a pouco; vê-a
Anunciando próxima, esboçando
- No chão que brilha de um fulgor de areia,
Num verde-claro de ervaçal que ondeia-
A aparição da Terra Prometida...

Todo trêmulo, ajoelha; e ajoelhado,
De mãos postas, nos olhos a alma e a vida,
Ele, o mesquinho e o bem-aventurado,
Adora o Céu nessa visão terrena...

E de mãos postas sempre, extasiado,
Murmura, reza esta oração serena
Como um tosco resumo do Evangelho:

"Foi Deus Nosso Senhor que teve pena
De um pobre negro velho..."

Seguem. Começa a íngreme descida.

Descem. E recomeça
A peregrinação entontecida
No labirinto da floresta espessa.
Sob o orvalho das folhas gotejantes,
Entre as moitas cerradas de espinheiros,
Andrajosos, famintos, triunfantes,
Descem barrancos e despenhadeiros.

Descem rindo, a cantar... Seguem, felizes,
Sem reparar que os pés lhes vão sangrando
Pelos espinhos e pelas raízes;
Sem reparar que atrás, pelo caminho
Por onde fogem como alegre bando
De passarinhos da gaiola escapo
- Fica um pouco de trapo em cada espinho
E uma gota de sangue em cada trapo.

Descem rindo e cantando, em vozeria
E em confusão. Toda a floresta, cheia
Do murmúrio das fontes, da alegria
Deles, da voz dos pássaros, gorjeia.
Tudo é festa. Severos e calados,
Os velhos troncos, plácidos ermitas,
Os próprios troncos velhos, remoçados,
Riem no riso em flor das parasitas.

Varando acaso às árvores a sombra
Da folhagem que à brisa arfa e revoa,
Na verde ondulação da úmida alfombra
O ouro leve do sol bubuia à toa;
A água das cachoeiras, clara e pura,
Salta de pedra em pedra, aos solavancos;
E a flor de S. João se dependura
Festivamente à beira dos barrancos...

Vão alegres, ruidosos... Mas no meio
Dessa alegria palpitante e louca,
Que transborda do seio
E transbordada canta e ri na boca,
Uma mulher, absorta, acabrunhada,
Segue parando a cada passo, e a cada
Instante os olhos para trás volvendo:
De além, do fundo dessas selvas brutas
Chama-a, seu nome em lágrimas gemendo,
Uma vozinha ansiosa e suplicante...
Mãe, onde geme que tão bem o escutas
Teu filho agonizante?

IV
De repente, como um agouro e uma ameaça,
Um alarido de vozes estranhas passa
Na rajada do vento...

Estacam.

Como um bando
De ariscos caitetus farejando a matilha,
Imóveis, alongado o pescoço, arquejando,
Presa a respiração, o olhar em fogo, em rilha
Os dentes, dilatada a narina, cheirando
A aragem, escutando o silêncio, espreitando
A solidão; assim, num alarma instintivo,
Estaca e põe-se alerta o bando fugitivo.
Nova rajada vem, novo alarido passa...

Como, topando o rastro inda fresco da caça,
Uiva a matilha enquanto inquire o chão agreste,
E de repente, em fúria, alvoçada investe
E vai correndo e vai latindo de mistura;
Rosna ao dar-lhes na pista a escolta que os procura,
E morro abaixo vem ladrando-lhes no encalço.

Grita e avança em triunfo a soldadesca ufana.

E os frangalhos ao vento, em sangue o pé descalço,
Alcatéia usurpando a forma e a face humana,
Almas em desespero arfando em corpos gastos,
Mães aflitas levando os filhinhos de rastos,
Homens com o duro rosto em lágrimas, velhinhos
Esfarrapando as mãos a tatear nos espinhos;
Toda essa aluvião de caça perseguida
Por um clamor de fúria e um tropel de batida,
Foge... Rompendo o mato e rolando a montanha,
Foge... E, moitas, a dentro e barrocais a fora,
Arrasta-se, tropeça, esbarra, se emaranha,
Arqueja, hesita, afrouxa, e desanima, e chora...

Param.

Perto, bramindo, a escolta o passo estuga.

Os fugitivos, nesse aproximar da escolta
Sentem que vai chegando o epílogo da fuga:
A gargalheira, a algema, as angústias da volta...

Além, fulge na luz da manhã leve e clara,
O contorno ondulante e azul do Jabaquara.
Adeus, terra bendita! Adeus, sonho apagado
De ser livre! É preciso acordar, e acordado
Ver-te ainda, e dizer-te um adeus derradeiro,
E voltar, para longe e para o cativeiro.

Sobre eles, novamente, uma funéria noite
Cai, para sempre...

Como a trôpega boiada,
Que, abrasada de sede e tangida do açoite,
Se arrasta pela areia adusta de uma estrada:
Volverão a arrastar-se, humildes e tristonhos,
Tangidos do azorrague e abrasados de sonhos,
Pelo deserto areal desse caminho estreito:
A vida partilhada entre a senzala e o eito...

Agrupam-se, vencidos,
A tremer, escutando o tropel e os rugidos
Da escolta cada vez mais em fúria e mais perto.
Nesse magote vil de negros maltrapilhos
Mais de um olhar, fitando o vasto céu deserto,
Ingenuamente exprobra o Pai que enjeita os filhos...

Destaca-se do grupo um fugitivo. Lança
Em torno um longo olhar tranquilo, de esperança,
E diz aos companheiros:

"Fugi, correi, saltai pelos despenhadeiros;
A várzea está lá em baixo, o Jabaquara é perto...
Deixai-me aqui sozinho.
Eu vou morrer, decerto...
Vou morrer combatendo e trancando o caminho.

A morte assim me agrada:
Eu tinha de voltar p´ra conservar-me vivo...
E é melhor acabar na ponta de uma espada
Do que viver cativo".

E enquanto a caravana
Desanda pelo morro atropeladamente,
Ele, torvo, figura humilde e soberana,
Fica, e a pé firme espera o inimigo iminente.

Hércules negro! Corre, abrasa-lhe nas veias
Sangue de algum heróico africano selvagem,
Acostumado à guerra, a devastar aldeias,
A cantar e a sorrir no meio da carnagem
A desprezar a morte espalhando-a às mãos cheias...

Não pode a escravidão domar-lhe a índole forte,
E vergar-lhe a altivez, e ajoelhá-lo diante
Do carrasco e da algema:
Sorri para o suplício e a fito encara a morte
Sem que lhe o braço trema,
Sem que lhe ensombre o olhar o medo suplicante.

Erguendo o braço, ele ergue a foice: a foice volta,
E rola sobre a terra uma cabeça solta.
Sobre ele vem cruzar-se o gume das espadas...
"Ah, prendê-lo, jamais!" respondem as foiçadas
Turbilhonando no ar, e ferindo, e matando.

De lado a lado o sangue espirra a jorros... Ele,
Ágil, possante, ousado, heróico, formidando,
Faz frente: um contra dez, defende-se e repele.
E não se entrega, e não recua, e não fraqueja.
Tudo nele, alma e corpo ajustados, peleja:
O braço luta, o olhar ameaça e desafia,
A coragem resiste, a agilidade vence.

E, coriscando no ar, a foice rodopia.

Afinal um soldado, ébrio de covardia,
Recua; vai fugir... Recua mais; detém-se:
Fora da luta, sente o gosto da chacina;
E vagarosamente alçando a carabina,
Visa, desfecha.

O negro abrira um passo à frente,
Erguera a foice, armava um golpe...

De repente
Estremece-lhe todo o corpo fulminado.

Cai-lhe das mãos a foice, inerte, para um lado,
Pende-lhe, inerte, o braço. Impotente, indefeso
Ilumina-lhe ainda a face decomposta
Um derradeiro olhar de afronta e de desprezo.

Como enxame em furor de vespas assanhadas,
Assanham-se-lhe em cima os golpes sem resposta,
E retalham-no à solta os gumes das espadas...

E retalhado, exausto, o lutador vencido
Todo flameja em sangue e expira num rugido.


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Fonte
"Toda a Poesia: Antologia Poética". Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2015.

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