segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Trajano Galvão: "5 Poemas"

A CRIOULA

Sou cativa... que importa? folgando
Hei de o vil cativeiro levar!...
Hei de sim, que o feitor tem mui brando
Coração, que se pode amansar!...
Como é terno o feitor, quando chama,
À noitinha, escondido com a rama
No caminho — ó crioula, vem cá! —
Há nada que pague o gostinho
De poder-se ao feitor no caminho,
Faceirando, dizer — não vou lá —?

Tenho um pente coberto de lhamas
De ouro fino, que tal brilho tem,
Que raladas de inveja as mucamas
Me sobre-olham com ar de desdém.
Sou da roça; mas, sou tarefeira.
Roça nova ou feraz capoeira,
Corte arroz ou apanhe algodão,
Cá comigo o feitor não se cansa;
Que o meu cofo não mente à balança,
Cinco arrobas e a concha no chão! 

Ao tambor, quando saio da pinha
Das cativas, e danço gentil,
Sou senhora, sou alta rainha,
Não cativa, de escravos a mil!
Com requebros a todos assombro
Voam lenços, ocultam-me o ombro
Entre palmas, aplausos, furor!...
Mas, se alguém ousa dar-me uma punga,
O feitor de ciúmes resmunga,
Pega a taça, desmancha o tambor!

Na quaresma meu seio é só rendas
Quando vou-me a fazer confissão;
E o vigário vê cousas nas fendas,
Que quisera antes vê-las nas mãos.
Senhor padre, o feitor me inquieta;
É pecado...? não, filha, antes peta.
Goza a vida... esses mimos dos céus
És formosa... e nos olhos do padre
Eu vi cousa que temo não quadre
Com o sagrado ministro de Deus...

Sou formosa... e meus olhos estrelas
Que transpassam negrumes do céu
Atrativos e formas tão belas
Pra que foi que a natura mais me deu?
E este fogo, que me arde nas veias
Como o sol nas ferventes areias,
Por que arde?  Quem foi que o ateou?
Apagá-lo vou já — não sou tola...
E o feitor lá me chama — ó crioula
E eu respondo-lhe branda "já vou".



NUM ÁLBUM

A vida é ladeira cansada, enfadosa,
Que hemos, gravados co'a cruz, de vingar;
É água barrenta de fonte lodosa,
Que os duros cuidados não deixam sentar.

Espelho impanado co'o bafo da morte,
Que incertas venturas nos pinta infiel:
Estrela que a nuvem, correndo do norte,
Aos olhos esconde do pobre baixel.

É flor melindrosa, que pouco se inviça,
Nas orlas da campa ferrando a raiz,
E perde o perfume, d'espinhos se arriça,
E pende na terra o já murcho matiz.

E, pois, com o peso da cruz não verguemos
Na senda difícil do ásp'ro alcantil;
As águas da vida ao Senhor presentemos
Bem claras, coadas, em limpo gomil.

O espelho retrate, sem manchas noss’alma,
Tão pura, tão bela, qual Deus no-la deu;
Que a nuvem desfaz-se, a procela se acalma,
E brilha serena a estrela no céu.

E, pois, que é forçoso que a rosa descaia
Do mundo nas lides, nos seus furacões,
Releva que ao menos crestada não caia
Do hálito impuro de torpes paixões!



À MORTE DE UMA MENINA
Rosa, rosa de amor, purpúrea e bela,
Quem entre os goivos te esfolhou da campa.
GARRET.

E toda era viços e seiva, e perfumes,
E era os amores da terra e do céu...
Nascera inda ha pouco da aurora co'os lumes,
E o sol inda brilha... e já murcha pendeu!

Saudosa murmura nos vales a brisa
E a noite lacrima os despojos da flor,
E a lua serena no espaço desliza
Saudades radiando o seu baço fulgor.

Porque tantas galas e a vida despiste
Tão cedo, a florinha do humano rosal?
Que pôde esfolhar-te do galho, em que abriste
Teu seio de aromas — tesouro do vale?

Porque, ó folhinhas, purpúreas, mimosas,
Nas azas dos ventos, inconstantes fugis?...
E a rosa, quem deu que, entre todas as rosas,
Nas orlas da campa lançasse a raiz?...

Ai! triste!... não pôde valer-te a beleza
Da cor de cetim. nem o garbo gentil,
Nem todos os mimos,  nem toda pureza,
Que guardas no seio, nem graças a mil!...

E toda era viços e seiva e perfumes,
E era os amores da terra e do céu...
Nascera inda ha pouco da aurora co'os lumes,
E o sol inda brilha... e já murcha pendeu!....

Não era da terra a florinha singela,
Que a terra não pôde ter flores assim...
Na eterna mansão refloresce mais bela
Nas trancas doiradas de algum Querubim.

  

NO ROÇADO

Raios de fogo dardejava a prumo
O rei da luz; do tijupar ao longe
Com a brisa a pindoba ciciava;
Do algodão os alvíssimos capuchos
Entre o verde das folhas refulgindo
Como anel ao redor se retorciam
De perlas embutido, e de esmeraldas:
O sabiá plumoso, a azul pipira,
O rubro tataíra — Orfeu da mata—
Mudeciam dos galhos entre as folhas:
À sombra do pau-d'arco biflorente
Na branca areia a meiga sururina,
O lúgubre mutum, a siricora,
E a terna pecuapá despem a calma
E o silêncio da mata, a morna brisa,
O garapé vizinho, que murmura,
Das arvores a sombra preguiçosa,
Da cigarra a monótona cantiga
E o fofo leito do arrelvado solo,
Tem um não sei quê, tão suave e brando
Que filtra-se nos membros, quebra as forças,
E nos convida ao repousar da sesta.
Profundo era o silêncio. E os machados
Que alternos soam na derruba ingrata
Do próximo roçado, descansavam.
Nem da palmeira a sibilante queda,
Nem do pau-santo que rechina e treme,
Nem da aroeira que o machado morde,
O ruidoso cair, que a terra abala,
O silêncio quebrava da floresta.
É que do tijupar o pobre sino
À pura refeição chama o escravo.



O NATAL

Neste tempo, em minha terra,
No meu pátrio Meary,
Reverdece a erguida serra,
Folga a mata, o prado ri.
De novas flores se arreia
O pau-d'arco que alanceia
Vaidoso as nuvens do céu:
E o ledo canto que a brisa
Nos silvedos improvisa,
Diz que Cristo hoje nasceu!.

Já o sol a luz declina
Por detrás da mata agora,
Já suspira a sururina,
Canta em coro a siricora:
Já desce a sombra do morte,
Já nas orlas do horizonte
Pálida estrela reluz:
E ao colo da noite escura
Branda a tarde se pendera
Fulgindo com dúbia luz.

Eis que o crepúsculo desata
Seu raro manto nos céus,
Punge a saudade, e da mata
Erguem-se hosanas a Deus!
Do rio na borda falsa,
Na tecida e densa balsa,
Gêmea terna pequapá:
E aos carmes que a brisa tece
Junta o canto, que entristece.
Magoado o sabiá.

É a saudade um composto
De encontradas sensações;
Do crepúsc’lo traz no rosto
Buriladas as feições:
Que o crepúsculo e a saudade
Tem ambos a mesma idade.
Nasceram de um só nascer;
Ata aquele o dia á noite,
A saudade um mesmo açoite
Faz da dor e do prazer.

Tudo lá respira festa
Singelez, ledice, amor,
A cativa já se apresta,
Afina a chama o tambor:
Eis se fecha a vasta roda,
Já começa, á pátria moda.
Tosco e bárbaro folgar:
Tambor soa, a onça ruge,
Dalém os ecos estrume
Do negro o rude cantar.

Co'o tambor a mente aturdem,
Esquecem que escravos são;
Que saudades ali surdem
Do tambor ao coração!...
Folgam, míseros!... nos ferros,
No seu ríspido desterro,
Co'o folgar do seu país!...
Nem sentem no ledo peito
Tropelado o seu direito
A pesar-lhe na cerviz!...

Assim festejam cativos
O que os ferros nos quebrou,
O que, trilhando os altivos,
O home ao homem nivelou!...
E que haja quem, protervo,
Rasgue injusto com vil nervo
As carnes a seu irmão,
Que a liberdade lhe mate,
Que lhe a vida desbarate,
E que se chame — cristão!!...

Nasceu Cristo hoje na palha,
E morreu morte de cruz,
Para que além da mortalha
Nos lumiasse outra luz;
Tragou insultos, afrontas
Cacaladas, férreas pontas
Deixou no peito imbeber;
Abrevou-se de vinagre;
Pôde fazer um milagre,
Porém quis antes sofrer...

E divagam, rédea solta,
Os crimes á luz do sol,
Toda a terra anda revolta,
Areada, sem farol...
Conculca o ímpio sem susto
A nobre fronte do justo,
Sufoca-lhe a grande voz:
Já parece que o remorso,
Que dos vícios anda a corso,
Corrompeu-se como vós!!!

Agora, agora nascido
E já pregado na cruz!...
Oh! meu Deus. de ira vestido
Cospe-nos raios a flux...
Tu, que mil mundos fizeste,
Desmantela, arrasa este,
Evoca um mundo melhor,
Varre, extingue a raça humana
E este mundo, que se dana,
Como fizeste a Gomhor!...

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