CISMAS À BEIRA-MAR
I
Mar longínquo e profundo! A terra erguida
Lançou-te
ao largo, furibundo colo
Duros
anéis d'aspérrima cadeia,
Por que,
batendo nos fuzis de bronze,
Ao rugido
das vagas concertasses
Teu hino
eterno ao criador dos mundos.
Leão
terrível, que um Titã robusto
No seio
encarcerou de jaula estreita,
Serás
eterno ali! - Raivoso embalde
As férreas
grades violento açoitas
Com a juba
hirsuta, e as crinas distendidas
Dos
flancos ofegantes! - Irritado
Da tenaz
resistência e luta insana,
Em vão
colhes a fúria inquebrantável.
E as
forças concentrando, horrendo exalas
No esforço
derradeiro o extremo alento!
Amo-te
assim, oh mar! quando iracundos,
Belicosos,
galgando o dorso impávido
Dos
marinhos corcéis, - arrancam, pula,
Teus
longos esquadrões de bravas ondas
Dum pólo e
doutro pólo, erguendo as frontes
De úmidas,
brancas flores rociadas!
Quando
sentindo, ao recuar das águas,
Nuas as
negras, fúnebres cavernas,
Com
medonho estridor nas trevas uiva
abismo
tenebroso! - quando voam
Sobre as
ondas os gênios invisíveis,
As
bandeiras de fogo desfraldando
Aos
vendavais revoltos, - ou mordendo
Com a boca
cintilante as ancas lúbricas
Dos
marciais ginetes, que insofridos
Franjam,
doiram de rápidas fagulhas
Os
rutilantes freios encantados!
Quando, do
vítreo olhar e largas ventas
Lava e
súlfur soprando em bastos rolos,
E as
estrondosas patas retumbando
No rouco
chão dos pólos acendidos,
Ruem teus
esquadrões pujantes - contra
A indômita
barreira e brônzeo círculo!
Ou quando,
roto o ar aos choques rudes,
Os orbes
estalados retinindo
na
imensidade pávida reboam,
Prolongando
o fragor nos ecos surdos!
II
Portentoso
oceano! Mar sonoro
De vagas
turbulentas que murmuram,
Do
fugitivo céu beijando as nuvens!
Que mão
divina burilou-te à face
Da
criação, relevo do infinito?
Meus olhos
quando atônitos alongo
No azul
sombrio teu, - e os meus ouvidos
Teu
cântico ruidoso atentos sorvem,
Não sei
que sacro horror minha alma embebe!
Na tua
placidez se me afigura
Os olhares
de Deus fulgirem rubros
E a voz de
Jeová gemer profunda.
Simpática
atração me arrouba inteiro
Aos
combros de esmeraldas que balouças
No colo
intumescido... Um vago anelo,
Mais forte
agora, agora mais ardente,
Se acorda
no meu ser - de além contigo
Subir, -
subir onde o rumor dos ventos
Com as
duras asas não te errice as crinas,
Onde mal
chega o pensamento, - e o raio,
Perdendo a
força, não desperta um eco,
E expira
como um som de último arranco
Num peito
moribundo! Ah! quem me dera
Transformar-se
minha alma nessa vagas
Que no teu
ventre mádidas se empolam!
Então,
senhor do espaço, a sós comigo,
E
orgulhoso de mim, varrendo as nuvens,
E
varejando a abóbada sem termos,
Cônscio de
meu valor, louco de raiva,
Atordoando
os céus espavoridos,
Fora
insensato abalroar os mundos
Que neles
se penduram! Fora ousado
Mover no
firmamento as nebulosas
E a
cortina cerúlea, desdobradas
Como um
manto de rei sobre o meu dorso!
Eu saciara
de infinito - a sede
Que todo
me devora - no áureo pranto
Que as
estrelas, abrindo os louros cílios,
Por claras
noites, - sem luar, - sem nuvens,
Choram no
éter azul! Eu te acendera
Nos raios
das tormentas invencíveis
Que
fervem-me no seio! e grande, e altivo,
Ao livre
espaço o cântico dos livres
Mandara
além do páramo - onde voa
A poeira
dos astros desparzida!
A POESIA MODERNA
A POMPÍLIO DE ALBUQUERQUE
Ó cândida
poesia, ó virgem branca e pura!
Águia do
pensamento, errante, foragida!
Onde
pairas, que em vão te anseia, te procura,
Sequiosa
de luz, minha alma consumida?
De que
monte sublime, aos altos céus vizinho,
Foste
ouvir de mais perto os cantos siderais?
Que nova
brisa embala o palpitante ninho
De novos
ideais?
Envolve a
tua fronte a tênebra sombria?
Que ignota
mão sustém o pomo do futuro
Sobre o
abismo do tempo, ó santa poesia,
Que
rebrame a teus pés, profundo, horrendo, escuro?
Como,
quando remuge a rábida tormenta,
Resvala a
indócil nau aos férvidos parcéis,
Ó Arte, -
rolarão na onda que rebenta
Teus
válidos pincéis?
Poesia,
onde estás? Teu corpo voluptuoso
No bosque
do ideal repousa adormecido,
Na
alfombra que margeia o rio harmonioso,
Que
beija-te chorando o trêmulo vestido?
Esmoreceu-te
o sono a pálpebra brilhante
Por onde
irradiava a luz do teu olhar,
De que uma
réstia só talvez fosse bastante
Para o
mundo salvar?
Estancou-se
o caudal fresquíssimo e fecundo
Onde os
bravos leões, batidos pela calma,
Vinham
umedecer o lábio sitibundo,
E reviver
de novo à sombra de tua alma?
- Já não
ousam volver os plainos devastados?
Ó sagrada
vestal, é certo, pois, que em vão
Espreita o
teu dormir, com os olhos encovados,
O estudo,
teu irmão?
Do mundo
que desaba a poeira te sufoca?
Das lepras
sociais minada surdamente,
Sentindo a
vasa rir, cerraste a casta boca,
E o rosto
virginal voltaste descontente?
- Oh! Não!
- Voaste além, librada nos espaços,
De onde
vibres melhor a tua ardente voz,
Enquanto a
sociedade estorce-se nos braços
Da
corrupção atroz.
Ergueste o
vôo além - e viste das alturas,
Nas amplas
espirais do vasto precipício
Torcerem-se
do mal as vítimas escuras,
A luta das
paixões, a cólera do vício;
Depois,
sobre um altar, com diamantinos cravos,
Tu viste
um áureo Cristo, enorme, preso à cruz,
E ouviste
soluçar nas trevas os escravos
Repelidos
da luz.
O nédio
aristocrata o corpo preguiçoso
Viste
estirar, e abrindo a boca enfastiada
Contratar
sem pudor, com riso caviloso,
O preço
por que deve a honra ser comprada;
A altiva
Liberdade, a tua irmã divina,
Sofismada,
negada; - e ouviste sussurrar
Da febre
da vingança a onda purpurina
No peito
popular.
Tu viste a
populaça, amarelenta e nua,
No lodo da
miséria exausta se arrastando;
Um
prostíbulo infame aberto em cada rua;
A
embriaguez a rir; crianças soluçando;
O poder
apoiando as pontas das espadas
Ao corpo
social que verga-se ao grilhão,
E nota
espavorido as fauces esfaimadas
Que o
fitam, do canhão.
Viste
mais... E um tropel de Eumênides e harpias,
Minaz
fermentação de ignívomo elemento,
Lançaste
sobre o mundo em legiões sombrias,
Com o
surdo horror do mar e as cóleras do vento,
"Roei
da sociedade a vacilante base!"
Bradaste à
inundação com lábio varonil;
"O
edifício fatal de uma só vez se arrase,
Desfeito
em cinza vil!"
E és hoje
a grande luz da tempestade invicta!
De cada
consciência entraste nos arcanos,
E o
militar venal, e o ignóbil jesuíta
Ameaçam-te
em vão com o cetro dos tiranos!
És a deusa
viril da Ilíada sagrada!
És o raio
de paz com brados de trovão!
Empunhas
da Justiça a lança imaculada,
E o escudo
da Razão!
O OCEANO, A SERPENTE, LEVIATÃ, VINATEINA, O PEIXE
MACÁR
Basta,
Senhor, de acumular as vagas
Sobre o
meu largo peito
Que com o
líquido peso imenso esmagas.
Como de
espaço estreito,
A tua urna
cheia já despede,
Pela borda
escorrendo as gotas de ouro.
É cheio o
bebedouro:
Quem virá,
Senhor, matar a sede
Teu
rebanho ofegante?
- Tu com o
sopro me abates;
Tu
flagelas-me os flancos; tu me feres
A ilharga
fumegante;
E nem há
mais que esperes
Que, à
pressão, dos agudos acicates,
Possa
correr mais rápido; e precipite,
Cedendo à
força tua,
Lamber com
a vaga ao céu o azul limite,
Que,
quanto mais avanço, mais recua.
Em vão do
abismo o fundo pulso e cavo
Com as
patas orvalhosas;
Em vão,
túrbido e bravo,
Longe
sacudo as crinas espumosas;
Em vão
remoinho, cheio de furor:
- Onde
vamos, Senhor?
Há muito
tempo que amontôo e rolo,
Pelo
caminho, as ondas em voragem;
E não tenho
o consolo
De ver
jamais o termo da viagem.
Viverei a
fitar, sempre, isolado,
Na minha
imensidade, a própria imagem?
Nunca me
será dado
Escutar
outra voz
Ressoar-me
no ouvido?
- Outro
som, que não seja o meu rugido
Horríssono
e feroz?
Ontem,
quando festivo
Do
nascente luar o raio intenso
Roçou-me o
cimo ondeiante e fugitivo,
Senti um
gozo imenso.
Pareceu-me,
Senhor, que me afagava
A tua mão
com lânguidas carícias;
Correu-me
o dorso um trêmulo arrepio,
Quando
julguei-a ver, que me enlaçava
A colo um
áureo fio;
E
penetrado de íntimas delícias
Fiquei-me
palpitando,
Como se
uma asa elétrica, espalmada,
Passasse-me,
voando,
Por sobre
a crina crespa e desgrenhada;
Mas tanto
que tocou-me o ansioso peito,
Vi o raio
saltar, todo desfeito,
Em fofa
espuma, rórida e nevada.
Ah! Se me
fosse deparada alguma
Amiga
praia, - um mundo que não eu,
N'essa
praia eu faria o leito meu,
E todo o
fabricara de alva espuma,
Da poeira
as pérolas mais finas,
De rútilos
cristais,
Raízes de
alga, conchas purpurinas,
E vistosos
corais
Minhas
águas veria
Brilharem
no meu leito, ébrias de amor,
Como o
gládio, que pende e que irradia
Do teu
cinto, Senhor!
Leviatã,
lançando-se do abismo
Quem do
abismo arremessou-me?
Quem de
escamas cintilantes
O rude
corpo forrou-me?
Que mão
potente rasgou-me
As
mandíbulas hiantes?
A onda
inquieta rasteja
Nas praias
a murmurar;
O vento
surdo rouqueja,
Nos
penedos, ao passar;
Dormem as
ilhas nas brumas;
Fervem
cândidas espumas
No crespo
dorso do mar.
Longe, as
vagas se encapelam
Em montes
alevantados,
E túrbidos
se atropelam
Como
famintas ninhadas
De
crocodilos, que lutam
- Como que
a posse disputam
Do regaço
maternal,
E à doce
luz virginal
Que
esparge em torno à manhã
Brilham as
cristas doiradas
Das
montanhas elevadas,
Como
escamas trituradas
Nos dentes
de Leviatã.
A SERPENTE
Tivesse eu asas, como as tuas! - Fora,
Em antes
de falar,
Rasgando o
céu por esse espaço afora,
Às nuvens
mais altívolas pairar;
E em torno
perscrutar
O que vai
pelo mundo.
Mas, não
as tenha embora,
Eu me
erguerei do fundo
Da lama,
para ver
O universo
ao nascer.
É esta, é
esta a árvore da vida!
Em volta
do seu tronco e dos seus ramos
Vou
enroscar-me, estreitamente unida.
Agora,
assim, vejamos
D'este
universo a imagem.
Com a
minha cuada imensa o chão rastejo,
Com mil
cabeças erriçadas beijo
O vasto
céu por cima da folhagem;
Com mil
olhos perscruto a terra toda;
Com mil
línguas dardejo
Atro
veneno em roda.
Mas em
verdade nada mais eu vejo
Que altas
montanhas, que em anéis ondeiam,
Mil rios,
que serpeiam,
Sob as
florestas deslizando lentos,
E o corcel
Semeheu que, enfurecido,
Pelas
garras dos djins corre pungido,
A argêntea
cauda sacudindo aos ventos.
Ei-lo muda
de cor a cada instante,
Já pálido,
já negro, já brilhante,
Já
revestindo o azul do céu sereno,
Já da cor
do veneno
Que me
escorre da boca fumegante.
Causa
piedade e dó.
A ESTÁTUA
Fosse-me
dado, em mármor de Carrara,
Num
arranco de gênio e de ardimento,
Às linhas
do teu corpo o movimento
Suprimindo,
fixar-te a forma rara,
Cheio de
força, vida e sentimento,
Surgira-me
o ideal da pedra clara,
E em
fundo, eterno arroubo, se prostrara,
Ante a
estátua imortal, meu pensamento.
Do albor
de brandas formas eu vestira
Teus
contornos gentis; eu te cobrira
Com
marmóreo cendal os moles flancos,
E a
sôfrega avidez dos meus desejos
Em mudo
turbilhão de imóveis beijos
As curvas
te enrolara em flocos brancos.
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