segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Teófilo Dias: "5 Poemas"

CISMAS À BEIRA-MAR

I
Mar longínquo e profundo! A terra erguida
Lançou-te ao largo, furibundo colo
Duros anéis d'aspérrima cadeia,
Por que, batendo nos fuzis de bronze,
Ao rugido das vagas concertasses
Teu hino eterno ao criador dos mundos.
Leão terrível, que um Titã robusto
No seio encarcerou de jaula estreita,
Serás eterno ali! - Raivoso embalde
As férreas grades violento açoitas
Com a juba hirsuta, e as crinas distendidas
Dos flancos ofegantes! - Irritado
Da tenaz resistência e luta insana,
Em vão colhes a fúria inquebrantável.
E as forças concentrando, horrendo exalas
No esforço derradeiro o extremo alento!
Amo-te assim, oh mar! quando iracundos,
Belicosos, galgando o dorso impávido
Dos marinhos corcéis, - arrancam, pula,
Teus longos esquadrões de bravas ondas
Dum pólo e doutro pólo, erguendo as frontes
De úmidas, brancas flores rociadas!
Quando sentindo, ao recuar das águas,
Nuas as negras, fúnebres cavernas,
Com medonho estridor nas trevas uiva
abismo tenebroso! - quando voam
Sobre as ondas os gênios invisíveis,
As bandeiras de fogo desfraldando
Aos vendavais revoltos, - ou mordendo
Com a boca cintilante as ancas lúbricas
Dos marciais ginetes, que insofridos
Franjam, doiram de rápidas fagulhas
Os rutilantes freios encantados!
Quando, do vítreo olhar e largas ventas
Lava e súlfur soprando em bastos rolos,
E as estrondosas patas retumbando
No rouco chão dos pólos acendidos,
Ruem teus esquadrões pujantes - contra
A indômita barreira e brônzeo círculo!
Ou quando, roto o ar aos choques rudes,
Os orbes estalados retinindo
na imensidade pávida reboam,
Prolongando o fragor nos ecos surdos!

II
Portentoso oceano! Mar sonoro
De vagas turbulentas que murmuram,
Do fugitivo céu beijando as nuvens!
Que mão divina burilou-te à face
Da criação, relevo do infinito?
Meus olhos quando atônitos alongo
No azul sombrio teu, - e os meus ouvidos
Teu cântico ruidoso atentos sorvem,
Não sei que sacro horror minha alma embebe!
Na tua placidez se me afigura
Os olhares de Deus fulgirem rubros
E a voz de Jeová gemer profunda.
Simpática atração me arrouba inteiro
Aos combros de esmeraldas que balouças
No colo intumescido... Um vago anelo,
Mais forte agora, agora mais ardente,
Se acorda no meu ser - de além contigo
Subir, - subir onde o rumor dos ventos
Com as duras asas não te errice as crinas,
Onde mal chega o pensamento, - e o raio,
Perdendo a força, não desperta um eco,
E expira como um som de último arranco
Num peito moribundo! Ah! quem me dera
Transformar-se minha alma nessa vagas
Que no teu ventre mádidas se empolam!
Então, senhor do espaço, a sós comigo,
E orgulhoso de mim, varrendo as nuvens,
E varejando a abóbada sem termos,
Cônscio de meu valor, louco de raiva,
Atordoando os céus espavoridos,
Fora insensato abalroar os mundos
Que neles se penduram! Fora ousado
Mover no firmamento as nebulosas
E a cortina cerúlea, desdobradas
Como um manto de rei sobre o meu dorso!
Eu saciara de infinito - a sede
Que todo me devora - no áureo pranto
Que as estrelas, abrindo os louros cílios,
Por claras noites, - sem luar, - sem nuvens,
Choram no éter azul! Eu te acendera
Nos raios das tormentas invencíveis
Que fervem-me no seio! e grande, e altivo,
Ao livre espaço o cântico dos livres
Mandara além do páramo - onde voa
A poeira dos astros desparzida!


A POESIA MODERNA
A POMPÍLIO DE ALBUQUERQUE

Ó cândida poesia, ó virgem branca e pura!
Águia do pensamento, errante, foragida!
Onde pairas, que em vão te anseia, te procura,
Sequiosa de luz, minha alma consumida?
De que monte sublime, aos altos céus vizinho,
Foste ouvir de mais perto os cantos siderais?
Que nova brisa embala o palpitante ninho
De novos ideais?
Envolve a tua fronte a tênebra sombria?
Que ignota mão sustém o pomo do futuro
Sobre o abismo do tempo, ó santa poesia,
Que rebrame a teus pés, profundo, horrendo, escuro?
Como, quando remuge a rábida tormenta,
Resvala a indócil nau aos férvidos parcéis,
Ó Arte, - rolarão na onda que rebenta
Teus válidos pincéis?
Poesia, onde estás? Teu corpo voluptuoso
No bosque do ideal repousa adormecido,
Na alfombra que margeia o rio harmonioso,
Que beija-te chorando o trêmulo vestido?
Esmoreceu-te o sono a pálpebra brilhante
Por onde irradiava a luz do teu olhar,
De que uma réstia só talvez fosse bastante
Para o mundo salvar?
Estancou-se o caudal fresquíssimo e fecundo
Onde os bravos leões, batidos pela calma,
Vinham umedecer o lábio sitibundo,
E reviver de novo à sombra de tua alma?
- Já não ousam volver os plainos devastados?
Ó sagrada vestal, é certo, pois, que em vão
Espreita o teu dormir, com os olhos encovados,
O estudo, teu irmão?
Do mundo que desaba a poeira te sufoca?
Das lepras sociais minada surdamente,
Sentindo a vasa rir, cerraste a casta boca,
E o rosto virginal voltaste descontente?
- Oh! Não! - Voaste além, librada nos espaços,
De onde vibres melhor a tua ardente voz,
Enquanto a sociedade estorce-se nos braços
Da corrupção atroz.
Ergueste o vôo além - e viste das alturas,
Nas amplas espirais do vasto precipício
Torcerem-se do mal as vítimas escuras,
A luta das paixões, a cólera do vício;
Depois, sobre um altar, com diamantinos cravos,
Tu viste um áureo Cristo, enorme, preso à cruz,
E ouviste soluçar nas trevas os escravos
Repelidos da luz.
O nédio aristocrata o corpo preguiçoso
Viste estirar, e abrindo a boca enfastiada
Contratar sem pudor, com riso caviloso,
O preço por que deve a honra ser comprada;
A altiva Liberdade, a tua irmã divina,
Sofismada, negada; - e ouviste sussurrar
Da febre da vingança a onda purpurina
No peito popular.
Tu viste a populaça, amarelenta e nua,
No lodo da miséria exausta se arrastando;
Um prostíbulo infame aberto em cada rua;
A embriaguez a rir; crianças soluçando;
O poder apoiando as pontas das espadas
Ao corpo social que verga-se ao grilhão,
E nota espavorido as fauces esfaimadas
Que o fitam, do canhão.
Viste mais... E um tropel de Eumênides e harpias,
Minaz fermentação de ignívomo elemento,
Lançaste sobre o mundo em legiões sombrias,
Com o surdo horror do mar e as cóleras do vento,
"Roei da sociedade a vacilante base!"
Bradaste à inundação com lábio varonil;
"O edifício fatal de uma só vez se arrase,
Desfeito em cinza vil!"
E és hoje a grande luz da tempestade invicta!
De cada consciência entraste nos arcanos,
E o militar venal, e o ignóbil jesuíta
Ameaçam-te em vão com o cetro dos tiranos!
És a deusa viril da Ilíada sagrada!
És o raio de paz com brados de trovão!
Empunhas da Justiça a lança imaculada,
E o escudo da Razão!


O OCEANO, A SERPENTE, LEVIATÃ, VINATEINA, O PEIXE MACÁR
Basta, Senhor, de acumular as vagas
Sobre o meu largo peito
Que com o líquido peso imenso esmagas.
Como de espaço estreito,
A tua urna cheia já despede,
Pela borda escorrendo as gotas de ouro.
É cheio o bebedouro:
Quem virá, Senhor, matar a sede
Teu rebanho ofegante?
- Tu com o sopro me abates;
Tu flagelas-me os flancos; tu me feres
A ilharga fumegante;
E nem há mais que esperes
Que, à pressão, dos agudos acicates,
Possa correr mais rápido; e precipite,
Cedendo à força tua,
Lamber com a vaga ao céu o azul limite,
Que, quanto mais avanço, mais recua.
Em vão do abismo o fundo pulso e cavo
Com as patas orvalhosas;
Em vão, túrbido e bravo,
Longe sacudo as crinas espumosas;
Em vão remoinho, cheio de furor:
- Onde vamos, Senhor?
Há muito tempo que amontôo e rolo,
Pelo caminho, as ondas em voragem;
E não tenho o consolo
De ver jamais o termo da viagem.
Viverei a fitar, sempre, isolado,
Na minha imensidade, a própria imagem?
Nunca me será dado
Escutar outra voz
Ressoar-me no ouvido?
- Outro som, que não seja o meu rugido
Horríssono e feroz?
Ontem, quando festivo
Do nascente luar o raio intenso
Roçou-me o cimo ondeiante e fugitivo,
Senti um gozo imenso.
Pareceu-me, Senhor, que me afagava
A tua mão com lânguidas carícias;
Correu-me o dorso um trêmulo arrepio,
Quando julguei-a ver, que me enlaçava
A colo um áureo fio;
E penetrado de íntimas delícias
Fiquei-me palpitando,
Como se uma asa elétrica, espalmada,
Passasse-me, voando,
Por sobre a crina crespa e desgrenhada;
Mas tanto que tocou-me o ansioso peito,
Vi o raio saltar, todo desfeito,
Em fofa espuma, rórida e nevada.
Ah! Se me fosse deparada alguma
Amiga praia, - um mundo que não eu,
N'essa praia eu faria o leito meu,
E todo o fabricara de alva espuma,
Da poeira as pérolas mais finas,
De rútilos cristais,
Raízes de alga, conchas purpurinas,
E vistosos corais
Minhas águas veria
Brilharem no meu leito, ébrias de amor,
Como o gládio, que pende e que irradia
Do teu cinto, Senhor!

Leviatã, lançando-se do abismo
Quem do abismo arremessou-me?
Quem de escamas cintilantes
O rude corpo forrou-me?
Que mão potente rasgou-me
As mandíbulas hiantes?
A onda inquieta rasteja
Nas praias a murmurar;
O vento surdo rouqueja,
Nos penedos, ao passar;
Dormem as ilhas nas brumas;
Fervem cândidas espumas
No crespo dorso do mar.
Longe, as vagas se encapelam
Em montes alevantados,
E túrbidos se atropelam
Como famintas ninhadas
De crocodilos, que lutam
- Como que a posse disputam
Do regaço maternal,
E à doce luz virginal
Que esparge em torno à manhã
Brilham as cristas doiradas
Das montanhas elevadas,
Como escamas trituradas
Nos dentes de Leviatã.


A SERPENTE

Tivesse eu asas, como as tuas! - Fora,
Em antes de falar,
Rasgando o céu por esse espaço afora,
Às nuvens mais altívolas pairar;
E em torno perscrutar
O que vai pelo mundo.
Mas, não as tenha embora,
Eu me erguerei do fundo
Da lama, para ver
O universo ao nascer.
É esta, é esta a árvore da vida!
Em volta do seu tronco e dos seus ramos
Vou enroscar-me, estreitamente unida.
Agora, assim, vejamos
D'este universo a imagem.
Com a minha cuada imensa o chão rastejo,
Com mil cabeças erriçadas beijo
O vasto céu por cima da folhagem;
Com mil olhos perscruto a terra toda;
Com mil línguas dardejo
Atro veneno em roda.
Mas em verdade nada mais eu vejo
Que altas montanhas, que em anéis ondeiam,
Mil rios, que serpeiam,
Sob as florestas deslizando lentos,
E o corcel Semeheu que, enfurecido,
Pelas garras dos djins corre pungido,
A argêntea cauda sacudindo aos ventos.
Ei-lo muda de cor a cada instante,
Já pálido, já negro, já brilhante,
Já revestindo o azul do céu sereno,
Já da cor do veneno
Que me escorre da boca fumegante.
Causa piedade e dó.



A ESTÁTUA

Fosse-me dado, em mármor de Carrara,
Num arranco de gênio e de ardimento,
Às linhas do teu corpo o movimento
Suprimindo, fixar-te a forma rara,

Cheio de força, vida e sentimento,
Surgira-me o ideal da pedra clara,
E em fundo, eterno arroubo, se prostrara,
Ante a estátua imortal, meu pensamento.

Do albor de brandas formas eu vestira
Teus contornos gentis; eu te cobrira
Com marmóreo cendal os moles flancos,

E a sôfrega avidez dos meus desejos
Em mudo turbilhão de imóveis beijos

As curvas te enrolara em flocos brancos.



Nenhum comentário:

Postar um comentário