segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Teixeira de Melo: "5 Poemas"

ESTÂNCIAS

Lembra-te, ó anjo, que eu te amei um dia;
Lembra-te, ó anjo, que eu por ti chorei.
LUÍS DELFINO

Oh! laisse-moi t’aimer pour souffrir en moi-même;
Pour te donner ma vie et n’en parler jamais!
Oh! tais-toi; ne crains rien; si tu veux que je t’aime
Je te remercierai comme si tu m’aimais!
F. SOULIÉ

Lembra-te, virgem, lembra-te um momento
Do teu último dia de criança,
Que o teu silêncio sem querer enchia
De hinos de amor ungidos d’esperança!
Tinhas então no olhar a morbideza
Da infância que pressente a mocidade;
Tinhas na fronte o selo da beleza
E n’alma a sombra vaga da saudade.
O tempo foge, ó virgem, como o vento!
A mocidade é flor que pouco dura!
Tudo sussurra e passa... até que apenas
Um ciprestre nos marque a sepultura.
Amemos como à luz as mariposas,
Como a flor ama o orvalho que a remoça!
Amar não é topar pela existência,
Como a topaste, um’alma irmã da nossa?
O amor é a vida na mulher que um dia -
Ao passar pelo espelho - se achou linda.
Ama e vive, mulher! quando morreres...
Quando morrermos... viverás ainda!
Viverás nestas pálidas endechas
Como a imagem louçã da mocidade:
A primavera foge, mas meus cantos
Talvez levem teu nome à eternidade...
A vida sem amor é um deserto
Em que a sede desvaira a caravana!
É como o mar, que indiferente canta
E arremeda o carpir da dor humana!
Amemos hoje que a tormenta foge
E vai por outros céus rugir agora!
A mim, que te hei de amar por toda a vida,
Branca pomba do céu, ama-me um’hora!
Se não podes amar-me ao menos deixa
Que eu te dê meu porvir e mocidade:
Ninguém o saberá! Hei de escondê-las
Essas horas de amor e felicidade!
Hei de esquivar da luz os meus suspiros,
Embalar no silêncio o meu amor;
Mas deixa o coração seguir-te ao menos
Como a sombra da flor persegue a flor!
Hei de abafar o coração no peito!
Hás de mesmo pensar que te esqueci!
Mas não hei de sofrer os teus sarcasmos,
Embora eu me votasse inteiro a ti.
Ai mulher! ai mulher! que eu não te veja
Messalina de amor vender teus beijos,
Tu, que tens no pudor um véu d’encantos
Que o mundo não manchou com seus desejos.
Deixa que eu beba o ar que povoares
Das lembranças de tempos mais serenos;
Não hei de não trair-me, embora sofra!
Deixa o meu pensamento amar-te ao menos.
Sempre risonho, descuidado sempre,
Embora morra, hipócrita da dor!
Hei de fugir de ti, embora a vida
Também me fuja a mim com teu amor.
Quando passares rezarei baixinho
Uma prece por ti - tímida e pura;
Depois, quando eu morrer, vai tu sozinha
Desfolhá-la na minha sepultura.
No tronco do chorão que me der sombra
(Não tremas de remorso ou de piedade!)
Grava teu nome e passa... e vai bem longe
Vender a um outro a tua mocidade.
Que suplício, mulher! que dor de Tântalo
Suspirar pela morte amando a vida!
Que nunca saibas, tu, como eu te amava,
Nem como a minha dor é desabrida!
O sol dessa ventura que me negas
Alumie teus últimos momentos!
Depois... pelos teus sonhos vaporosos
Hás de ouvir, mas já tarde, os meus lamentos.
Então te lembrarás dos meus medrosos
Cantos de amor ungidos de esperança...
Lembra-te, virgem! lembra-te um momento
Do teu doce abandono de criança!


FANTASIA

Náiade viva da legenda antiga,
Deixa o seio do rio em que te encantas!
Dá-me um riso d’amor, gota do orvalho
Que em noites de verão desperta as plantas.
Vem às horas dos pálidos vampiros
Sobre as asas em pó das borboletas!
Algum silfo talvez te espere em cuidos
Sobre os seios azuis das violetas!
Não vês a natureza a sono solto
Nos braços do silêncio, imóvel, fria?
A alma vagando, estrela d’outros mundos,
Pelos campos da loira fantasia?
E os ventos que adormecem como a noite
Nos cabelos das árvores do vale?
Nem soluçam gemidos que te assustem
Esse mortos que dormem no ervaçal.
Desce às horas do amor e dos mistérios!
Poisa o pé sem temor... é chão de flores!
Quando os vivos ressonam como os mortos,
Vem banhar-te comigo em mar de amores!
Do luar aos clarões que te acordaram
Ouve-se a estrela a cintilar dormindo;
Ouve-se a brisa a desfolhar saudades;
Ouve-se a folha a suspirar caindo!
Vem, flor do rio perfumada em risos!
Vem, flor dos bosques orvalhada em pranto!
Mas, se inda assim o coração te treme,
Dessas asas que tens faze o teu manto.
Dá-me um hino dos teus na voz magoada;
Dá-me um canto do céu na voz tristinha!
Já que o mundo dos vivos me abandona,
Vem, princesa do vale, vem tu ser minha!
Vem teus sonhos de amor que a alma embalsama
Desfolhar sobre mim e o meu futuro!
O mundo não te espreita! e só da noite
Brilham olhos de Deus no manto escuro.
Mas, se a aurora acordar teu pai que dorme?!
Se a brisa despertar no campo as flores?!
Vem sempre! um anjo deve amar mais cedo,
Mais cedo enlanguescer, morrer de amores!


FASCINAÇÃO

Se a mão te aperto trêmula, gelada,
Minh’alma inteira embebe-se na tua;
Quando me fitas teu olhar tranquilo
Todo o meu sangue ao coração recua.
Quando te cravo os olhos meus, pudica
Baixas os teus com um olhar tão triste!...
Não devo amar-te; no entretanto eu te amo!
- E quem a tal fascinação resiste?...
Sinto em minh’alma comoções estranhas
Quando a descuido o teu olhar me lanças:
Creio-me outro, mais gentil, mais puro;
Sonho mil sonhos cheios de esperanças.
Na branca flor que no jardim floresce,
Na rola que soluça na folhagem,
Do céu no azul, no verde do cipestre:
Por toda a parte vejo a tua imagem.
Às vezes julgo surpreender-te um gesto
Que o ser me afoga em ondas de alegria;
Mas logo, pobre sonhador, conheço
Que o sonho mente e mente a fantasia.
Tu és a luz da minha vida, a crença
Que a minha morta mocidade chora;
Minh’alma adeja na amplidão, suspensa,
Quando não vejo o teu sorrir de aurora....
De aurora, sim! - pois a neblina imensa
Em que me envolvo - toda se adelgaça
Ao teu sorriso angelical e às vezes
Que ao pé de mim o teu vestido passa.
Sinto que te amo desse amor vertigem
Que num momento a vida nos consome:
Sinto ao teu nome estremecer-me o seio...
- Tem-me sido fatal teu doce nome!
Nunca disseste uma palavra, nunca
Um gesto só traiu teu pensamento:
Não sei como este amor me irrompeu n’alma!
Mas sei bem que ele faz o teu tormento.
Foi como o sutil fluido que evapora
A natureza em plena primavera:
Um nada que resume a vida inteira,
Um riso, um som que passa, uma quimera!
Eu sei que o nosso amor seria um crime
Perante o mundo e a própria consciência:
Seria atar o riso à desventura
O perturbar-te a angélica inocência.
Assim pois, meu amor, guarda os teus sonhos
E as castas ilusões da mocidade
Para o mortal que os fados te destinam:
Que ele te dê - por mim - a felicidade.
Que ele alcatife o teu passar de flores;
Que o sonho teu... Meu Deus! oh como o invejo
Que entenda, oh anjo, o teu menor sorriso
E que adivinhe o teu menor desejo...
Eu fugirei para remotas plagas,
Onde o não veja, pálido, a teu lado!...
Mas lá tão longe, em toda a parte e sempre
Hei de arrastar o meu grilhão pesado!

  

ESQUECIMENTO

Quando eu cair cansado da romagem,
Uma ave só não quebrará seus cantos;
Ninguém meu leito há de juncar de flores
Nem o pó de meus pés lavar com prantos.

Quando eu lançar dos ombros já dormentes
O roto manto dum viver sem glória,
Ninguém meu berço embalará chorando,
Quem do meu nome guardará memória?!

Por mim, que a vida atravessei cantando,
Por mim, que o mundo chamará de louco,
Ninguém um riso apagará dos lábios.
Dos lábios, onde a dor dura tão pouco!

Eu fui na terra o eco do abandono!
Fui astro errante e de emprestado brilho!
Não descobri nos ermos da romagem
Um marco, um só! Que me ensinasse o trilho!

Cantei; mas foi meu canto o som convulso
Do regougo do mar nas tempestades!
Sonhei como Gonzaga, amei como ele,
E deixo a vida sem deixar saudades.

Folha de um ramo desgrenhado à tarde
— Despregada no inverno e solta ao vento —
Fui tanta vez também rolar por ermos,
Seguindo sempre o mesmo pensamento.

Amei a infância na mulher que amara,
De olhar de fogo e coração de gelo.
Dormi com crenças, acordei descrido;
Prendi a vida a um longo pesadelo.

Passei na terra — como à flor dos mares
Num céu de bronze um bando de andorinhas;
Elas gemem talvez, gemi como elas;
Mas ninguém escutou as queixas minhas.

Vaguei comigo só pela existência,
Fitos debalde os olhos no caminho,
Sem uns laivos de amor e de verdade
Nem ninguém, meu Deus! sempre sozinho.

Quero agora em frouxel, à beira d´água,
Onde o canto do mar me embale a medo,
Descansar da romagem no deserto,
Como um riacho à sombra do arvoredo.

Não tem dobre o finado em leito estranho
Nem letreiro nem cruz nem pedra — Embora!
Por ínvia solidão, sem musgo, à sombra,
Posso, como vivi, dormir agora!

Que noite vou passar — amadornado
No seio imenso e nu da eternidade!!
Talvez lá venha iluminar-me os sonhos
Uma réstia de luz e de verdade!

A dois passos de mim lá corre a louca
Ao mar da eternidade em que se lança!
Rio de lodo, quis sondar-te em seios
Que há de em pouco esconder minha lembrança.

Magdalena gentil, eu te amo tanto!
Contigo sonho em noites de abandono,
Contigo acordo e nutro-me de insônias,
Até que em teu regaço eu tenho sono!

Em que lençol vais embrulhar meus ossos,
Quando eu mudar de pó e isolamento!
Dura verdade que aprendi comigo: —
Pesa mais que a mortalha — o esquecimento!



AO SOL

Não te amo, ó Sol, senão como rascunho
Da luz de Deus! senão como lembrança
Da mão que te acendeu, lâmpada de ouro,
Por sobre o abismo em que eu treina da morte,
A teus pés pela vida às tontas erro.

Verme que esconde um átomo da essência
Que te anima e renova! Átomo mesmo
Do pó da eternidade em frágil vaso
Amassado de sangue e pranto e orgulho!

Águia sem asas — fito-te um momento
E tua luz me embebeda e faz vertigens!
Amo o silêncio, a sombra, o isolamento,
Embora os do sepulcro! E tu, abutre
De asas de fogo, eterno pirilampo
Em basta selva, acima esvoaçando
De milhões de cadáveres corruptos
Que o tempo, rio rápido e revolto,
Roda té o mar sem raias do infinito,
Insultas minha dor, meu pranto estancas!

Tu vês sem dó arcar a humanidade
Sob o peso de séculos e séculos
Sempre moça e garrida e fátua sempre,
À luz dos raios concertando as braças
Que o vento desatou, tingindo as faces
Macilentas da orgia e das insônias,
E abrindo os alvos seios infecundos
Ao beijo frio do que tem mais ouro!
Tu vês de longe a louca humanidade,
Nova Eva despertando entre as delícias
Da vida sem a morte, ambicionando
Outra vida melhor, mais curta embora!
Penélope senil que se não cansa
De a eterna teia desmanchar contudo
Que o esposo a venha achar tecendo ainda!
Ou doida Ofélia a desfolhar sem fino
Sua coroa de noiva – antes da noite!
E o mundo de Panúrgio e Sancho Pança
Te vê passar também como um sarcasmo
Palpitante de fel, e ri-se ao ver-te!

É sempre nova a velha humanidade!
Só o homem passa — palha ou flor de feno —
Nas garras do tufão que não te alcança!
Como ela viverás... mas momento
A mão que te acendeu pode apagar-te.
Eu te amaria, ó Sol, se por um dia
Conhecesse o segredo que me escondes
Das tontas gerações que patinharam
— Como as de hoje — na lama e adormeceram
Na esteira do passado, entre as neblinas
Das era que, impassível como o tempo,
Desde o primeiro dia alumiaste.

Podes, feixe de luz que te desatas
No colo requeimado do universo,
Dar-me um raio dos teus com que ilumine
Minha cegueira a tatear na sombra
Das exploradas minas de ouro puro,
Hoje cinza e carvão, dessa linguagem
Sublime e rude — do cantor mendigo
Da Grécia, o heróico berço em que tu nasces,
E onde Byron morreu contigo, ó Grécia!

Ó Sol, olho de Deus aberto sempre,
Guia meus passos trêmulos ainda
Por entre as flores dos jardins celestes
Em que Camões ceifou perpétuos louros!
Para cantar as lendas esquecidas
Do ninho meu paterno, à sombra amiga
Das copadas mangueiras embalado
Pelas auras dos trópicos aos cantos
Da ferrenha araponga do deserto;
Para cantar as graças feiticeiras
Do meu berço de musgo inda selvagem
Como os primeiros que dormiram nele,
Dá-me um raio dos teus! um só me bastar
Que me esqueçam depois... terei vivido!
Que tu, página branca para o mundo,
Irás talvez vagar onde eu já durma,

No leito frio em que me espera o olvido.
Hei de acordar das matas seculares
Onde o silêncio é o canto do passado,
O gênio adormecido desses tempos
Que sob os olhos meus às vezes passam.

Dá-me imagens de fogo ainda virgens
Das mãos calmas dos cantores todos.
Triste bardo das raças do deserto,
Hei de perdir-te, ó Sol, que as requeimaste,
A história triste das extintas tribos!
Hei de rasgar a página mais pura
Do livro virginal da natureza!
Hei de arrancar ao colibri — das penas
O pó dourado e azul — para escrevê-la!
Hei de quebrar as asas furta-cores
Das nossas borboletas, para dá-las
Em saudoso holocausto à pátria e ao mundo!

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Fonte
"Toda a Poesia: Antologia Poética". Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2015.

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