quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Sergio Cohn: "5 Poemas"

UM CONTRAPROGRAMA

I
esta montanha invade a cidade
e à sua margem penso
não no silêncio, na astúcia
e no exílio (que já foram
tentados a contento) mas
do lado de dentro
mesmo que impossível
extraviar-me no alheio

II
o alheio: não o outro
do morro ou o rosto
da rua, mas o que
ainda despercebido pulsa
e sobreviverá ao tempo
porque o fim disto
– desta cidade – não é
o de todas as coisas.


  
PASSATEMPO

passa que penso
no amigo louco
e não me vejo

aprendi pouco a
pouco a errar pe
los jogos do dia

(ou a medusa,
amor, dor terrena)

o céu é um tabu
leiro de estrelas
sem metafísica

e tudo foi escul
pido pelo tempo

assim sigo resig
nado pela falta
lado a lado com
a vida

(e o que mais
se precisa?)

o amigo louco
apenas algumas
vezes volta

como uma per
gunta perdida:

o que (como
o tempo) não
teve início
acaso existiria?

  

VIGÍLIA REMIX

ame amanhã quem jamais amou
e quem já amou ame amanhã!

j’aime! Amanhã, aos primeiros raios
quando o orvalho umedece pétalas e
lábios, fazendo-os abrir, gotas
sem lua ou deuses entrelaçam os corpos,
e o amor depõe as armas.

ame amanhã sob o púrpura sem pudor,
aos primeiros raios, lábios umedecidos do encontro
dos próprios corpos, do passeio ao amanhecer.
o amor é belo, mesmo nu está em armas.

mas é primavera, no orvalho lua não há,
é nova, tempo de semear, e sem cautela
os corpos se abrem.
ame amanhã quem jamais amou
e quem já amou ame amanhã!



TRÊS FORMAS DE AMOR

MAR
o mar é a fera em si
corpo revolto
imenso, impossível
de abarcar,
demanda toda atenção.
mas quem dele não tira
o olho, se perde da
razão: em fúria
é indomável,
em calmaria labirinto
(azul sob azul,
nenhum deserto
é tão sucinto).

ESTRELA
a estrela é a fera em nós
o desejo anfíbio
de mutar do que somos
a outro –
então mergulho,
desrazão.
a estrela não retorna
amor, silente
é a própria expressão
do não.
Sergio Cohn


SELVA
a selva é a fera nos outros
a soma de desejos
que faz o seu jogo –
ritmos de corpos
devorando-se
sob a aparente calmaria.
cada delícia é
uma armadilha:
úmida de vida,
transforma quem a ama
em mais um.



MNEMO

há um resíduo de futuro
no vento, fotograma ante-
cipado, montagem de fragmentos
induzindo à cena. como
aquela árvore se curvando com-
placente aos invisíveis pesos,
como o mormaço
predizendo chuva, repito,
há um canto anterior
a qualquer canto, uma réstia,
um eco primeiro, como um som
que ressoa por dentro de cada
palavra, como todo gesto se
desenha e apaga, então
novamente, há o revés,
o diáfano, o termo, beleza
posta e perdida, o desen-
cadeamento, assim
como a sede do vapor
por uma forma, assim
como tudo retorna
à imaginação
por trás da cortina
da memória.



PATHOS

o sopro de veneno no ouvido, o jorro
impossível assaltando os olhos, luzes
intermitentes, tantas luzes
no azul manto escuro, um passo,
então silêncio, uma árvore
se sobressai no mercúrio, o verde
de tantos matizes, a cadência
dos tons. rico universo de uma só cor
e tantas dimensões pressentidas.
uma árvore, poderia chamar-lhe
pau-ferro, caesalpinía férrea,
mas é uma apenas uma árvore
à beira do caminho.
catedral ao avesso, sacraliza o ao redor.
as formas tatuadas no seu tronco,
rostos tão estranhos, uma folha cai.
é possível perceber nosso semblante
em suas nervuras, a reciprocidade
do espanto, ou sentar-se
a observar os cristais de orvalho,
mônadas no ventre do tempo.
uma árvore, convite.
nela ver o mundo,
missiva do imponderável.



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Fonte:
Revista Brasileira: Fase VIII - Outubro-Novembro-Dezembro 2013 - Ano II - Nº 77

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