quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Davino Sena: "5 Poemas"

TUDO SE DILUIU

A semana ficou pratrás.
A aflição ficou pratrás.
Chove... E tudo se diluiu.
Chove... E afundou o navio.
Fico diante da janela...
E apoio o cotovelo.

Apoio o cotovelo
e desta janela te vejo.
As flores no tempo vizinho.
Tu me tiraste para dançar.
Tu tocavas veloz ao piano.
A vida passou de mansinho.

Tudo aconteceu hoje? Digo
tudo como realmente houve?
Ninguém nos viu, ninguém nos ouve.



A SOMBRA DA ÁRVORE

O homem. A árvore. O Sol.
Ele quer mergulhar na sombra.
Tinha os olhos ruins, fatigados
pela leitura do passado.
A sombra o leva em sonho
ao sensual calor do mundo.

A árvore. O homem. A sombra.
Longe da luz, mas perto ainda.
Ela o cobriria com galhos
de perdão sobre os falhos dias.
O corpo era tão poderoso
como a floresta vista em sonho.

O sonho jamais os uniu.
A brisa soprou... Veio a tarde.
Flores caíram-lhe no rosto.



PETÚNIA DESPERTA

Petúnia veio de muito longe
e parecia uma árvore quando
os três estudantes trêmulos
a víamos na fila do trem.
A amiga tinha os cabelos
laranja, e o rosto iluminado,
exceto por um sinal na testa
como um borrão pixelado.

O borrão durava segundos
e quase ninguém o notava
além dos poucos que anotamos
os seres paradoxais do mundo.
Uma dia a seguimos pela rua
através da verdejante alameda
sob o monumental rosto da Lua
a dissipar sombras do medo.

Sabíamos das curvas no tempo
tivemos certeza quando a vimos
sumir na recurva alameda
sem deixar ruído ou pegada.
Petúnia não podia nos dizer
o que viera fazer no mundo
nem como abrir o portal
com as trombetas do futuro.

O simples fato era absurdo
e o poder alguém pensá-lo
fez o dia ficar mais escuro
como o trem dentro do túnel.
Vimos algo brilhar no escuro
dois ou três globos de luz
unidos por ramos suaves
pensados mais que vistos.

A esbelta árvore tremia
no escuro do pensamento
mas seus frutos davam cor
e, para nós, um gostoso calor.
Seria bom, não fosse um erro,
pensar que Petúnia havia surgido
de um túnel, e havia assumido
a esbelta forma de laranjeira.

A árvore jamais ali estivera
e portanto ainda não tivera
oportunidade de espreguiçar
os ramos como uma laranjeira.
As laranjas, duas ou três apenas,
pareciam haver sido pintadas,
ou amarradas com barbante
e cordão, falsas e redundantes.

Nós não acreditávamos
mas éramos forçados a crer
que a laranjeira e a mulher
eram um ser único e dividido.
Petúnia e o pé de laranja
tinham existência na franja
de dois mundos paralelos
que interagiam na alameda.

Mulher terrestre, enraizada
estás, no solo firme de ti
mesma, ante o túnel curvada,
como reclinada sobre um lago.
Teus olhos brilham como pomos
de luminoso pé de laranja
mas teu pensamento é um borrão
de folhas, as auroras do verão.

Todos os dias, quando a aurora
enche de sangue o ar, nós te seguimos
com sapatos de hospital, em silêncio
até a alameda que te renova.
Buscamos a resposta que não vem
como ao escuro vai o trem
na expectativa de, ao fim do túnel,
decifrar teu sorriso, Petúnia.

Uma resposta não é flor na lapela
ou qualquer adorno que nos revela
e civiliza, dir-se-ia uma resposta
é ver Petúnia e, a seu lado, a porta.
Eis o túnel ao fim do qual a luz brota
menos como flor do que fruto
jamais ornamento, algo substantivo
ainda que a substância seja fictícia.

Aos cinquent’anos, a vemos
com o esplendor de fêmea
que não se deixa analisar
e emite olor de fruta lisa.
Largamos no largo o largo
pensamento, ora sentimento,
de Petúnia, que se deixa levar
pelo túnel sem olhar para trás.


Deixar-se era a única saída
para o recôndito universo
de matéria escura, no verso
que bate como um relógio.
Um-um, dois-dois, os segundos
como areia na mão erguem
um castelo, enquanto outra mão
esmaga o coração do velho.

De todas as ideias hoje relidas
como petúnias em jardim colhidas
apenas uma, Petúnia, vingou
e brilha no túnel como um sol.
Petúnia é semelhante a pecúnia
quando pisa descalça na cidade
com as sandálias da insônia
e os longos cabelos da realidade.

Ela tinha a pobreza do ar
e alguma eletricidade, sem a qual
jamais se lhe abriria o portal
nem seu ar pobre seria de árvore.
Petúnia, amiga, fiel parceira,
és do mundo paralelo oriunda
e teu ar de desejos nos inunda
como o ar umedece a laranjeira.

Nada sentes por nós, fria
aparição, pixelada imagem
vinda de uma quinta dimensão
real como laranjas numa árvore.
Vens do real, quando o corpo
é atravessado por finas cordas
que nos unem à laranjeira
como os planetas ao sol.

Somos através, somos um corpo
atravessado de buracos, nunca
contínuos como desejaríamos
somos obesos, somos túneis.
Petúnia nos ensina que há
maneiras de ser atravessado
oh de luzes, quantas de luz,
túnel através do qual somos.

Ela vive dentro de um túnel
atravessado vez por outra do real
e sua aparência destituída
tem manchas cuspidas pelo sol.
As manhãs uniram-se em luz
para dar-nos o impulso, o pulso
que dá manha ao pulo, a luz
das manhãs que é Petúnia.

A mulher foi vista na manhã
a pular corda, a imagem
a desfolhar-se em plátanos
dourados que já foram laranjas.
A única pista que restou
é a fotografia da mulher
como laranja caída do alto
como cai folha de plátano.

Fruta ou folha, túnel do real,
passeia os dedos nos cabelos
para a um herói se oferecer
como uma deusa oferta o belo.
Três heróis a viram no salão
ela apontou um, que tinha medo,
e os outros dois, sem mais razão,
mataram-se na curva da alameda.

Todas as noites Petúnia
atrai um homem, herói ou poeta,
para a alameda onde espera
ouvir-lhe a canção única.
A deusa espera ouvir
a única canção de amor
com três heróis na alameda
a olhar o pôr do sol.

Petúnia era a forma do ermo
visível no olhar ansioso
que necessita ver, cioso de si,
de um herói sem jardim.
Tais formas são revistas
pelo homem que delas precisa
quando chega aos cinquenta
e sofre por não revê-las.

Petúnia sabia do ermo
no homem que a despia
sem sentir por ela desejo
quando ardia no túnel.
Éramos todos uns heróis
verticais na fila do trem
os olhos no horizonte
do túnel que já não dói.



PERTO DO SONO

Estelar, movia-se no tempo
até ficar com o lado esquerdo
do rosto sobre o travesseiro.
O corpo vaga no deleite
de um cometa que atravessa
a fronteira da Via Láctea.

O astro se converte em carne
como uma pintura a óleo, tarde
demais para o sono que não
veio, soprando de antemão
sobre o corpo alheio, vizinho
na ondulada galáxia do lençol.

Então o sono chegou, fresco
como o vento, a levar para longe
a poeira estelar do pensamento.



A MORTE DE MEU PAI

Freios. Batida. O carro vira
como um touro ferido na arena.
Os pneus giram, giram no ar
completamente desamparados.
Que toureiro prateado vai
dar o golpe final, macabro?

A aorta rompe-se qual vaso.
Sombras derramam-se no carro.
Favelados de pesadelo
levam o relógio e o rádio.
Subtraem os pneus. Meu pai.
Depois disso, nada me dói.

Qual touro deitado na arena
sente-se leve o motorista
pálido... Não lhe pesa a vida.


---
Fonte:
Revista Brasileira nº 76 (2013) - Academia Brasileira de Letras - ABL

Nenhum comentário:

Postar um comentário