quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Iacyr Anderson Freitas: "5 Poemas"

MENOS UM DIA

cruzei a soleira do sono
escada abaixo

de pesadelo em pesadelo

como se tivesse
um ninho de serpes
no travesseiro

urinei de hora em hora

até que a bigorna em fogo
da aurora
bateu forte no meu rosto

acordei com raiva dos santos
e das sete virtudes teologais

não tomei café não comi um pedaço sequer
de pão

fui direto para o trabalho

para ascender mais um dia
ao calvário

de nenhum
calendário



REGISTRO

um homem amou este final de tarde
– e disso não ficará registro

nem mesmo da fornalha de março
queimando-se em espiga
no terceiro dia de abril

da luz de março
em pleno abril

de sua pústula de mil passantes
a cada esquina

um homem amou
este final de tarde
sem esperanças

deitado em seu quarto
ouvindo crescer o caule
das pitangueiras
a arcada crispada de raízes
os tubérculos últimos

ali onde a brisa nas folhas
pede abrigo

onde a tarde grita

que toda brisa
deriva

do paraíso

  

CHAVE

vê como o próprio dia
é despedida

como se esgota o parto
de cada segundo
como é cruel
a agonia das cigarras o tiritar da noite
nas cisternas
os séculos de sementeiras
que ficaram por crescer

vê como a vida ferve no lodo
como o mangue ferve
nos esgotos como a própria gênese
se faz
entre panos podres
virações vazadas
de inservíveis auroras

como é suja
a vida

e como todas as coisas
preparam o cortejo
de tua

despedida



NA MORTE DE SERGIO KLEIN

Então me deixe sorver este luto,
gota a gota, até que nada reste
nas taças do antigo afeto, se escuto,
agora, tua voz entre os ciprestes.

Está distante: não ouço o que diz
a mesma voz que, alguns meses antes,
brilhava ao telefone. Por um triz,
o destino quis que essa voz não cante.

Nada posso fazer contra o destino.
Curvo os joelhos. Oro. Obedeço.
Enfim, até mesmo esse sol a pino,
esse belo dia azul tem seu preço.



E SOBRE O DESERTO

condenação primeira: carregar
os despojos desta tarde, arrastá-la
para fora do tempo
com seus ossos e nuvens,
enterrá-la onde não haja escape.

como os que buscam no alforje
entre serpes
o alimento de seus mortos,
também ofertarei meu corpo
às figurações da chuva e do trópico,
também poderei ungir
as cartilagens nulas de seu nome.

e sobre o deserto
e sobre os despojos de tudo
o que restou da tarde em seu transporte
permanece a mesma busca,
incessante, de uma terra mais
profunda e gasta, cada dia mais distante.


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Fonte:
Revista Brasileira: Fase VIII - Abril-Maio-Junho 2014 - Ano III - Nº 79

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