MENOS UM DIA
cruzei a soleira
do sono
escada abaixo
de pesadelo em
pesadelo
como se tivesse
um ninho de serpes
no travesseiro
urinei de hora em
hora
até que a bigorna
em fogo
da aurora
bateu forte no meu
rosto
acordei com raiva
dos santos
e das sete
virtudes teologais
não tomei café não
comi um pedaço sequer
de pão
fui direto para o
trabalho
para ascender mais
um dia
ao calvário
de nenhum
calendário
REGISTRO
um homem amou este
final de tarde
– e disso não
ficará registro
nem mesmo da
fornalha de março
queimando-se em
espiga
no terceiro dia de
abril
da luz de março
em pleno abril
de sua pústula de
mil passantes
a cada esquina
um homem amou
este final de
tarde
sem esperanças
deitado em seu
quarto
ouvindo crescer o
caule
das pitangueiras
a arcada crispada
de raízes
os tubérculos
últimos
ali onde a brisa
nas folhas
pede abrigo
onde a tarde grita
que toda brisa
deriva
do paraíso
CHAVE
vê como o próprio
dia
é despedida
como se esgota o
parto
de cada segundo
como é cruel
a agonia das
cigarras o tiritar da noite
nas cisternas
os séculos de
sementeiras
que ficaram por
crescer
vê como a vida
ferve no lodo
como o mangue
ferve
nos esgotos como a
própria gênese
se faz
entre panos podres
virações vazadas
de inservíveis
auroras
como é suja
a vida
e como todas as
coisas
preparam o cortejo
de tua
despedida
NA MORTE DE SERGIO KLEIN
Então me deixe
sorver este luto,
gota a gota, até
que nada reste
nas taças do
antigo afeto, se escuto,
agora, tua voz
entre os ciprestes.
Está distante: não
ouço o que diz
a mesma voz que,
alguns meses antes,
brilhava ao
telefone. Por um triz,
o destino quis que
essa voz não cante.
Nada posso fazer
contra o destino.
Curvo os joelhos.
Oro. Obedeço.
Enfim, até mesmo
esse sol a pino,
esse belo dia azul
tem seu preço.
E SOBRE O DESERTO
condenação
primeira: carregar
os despojos desta
tarde, arrastá-la
para fora do tempo
com seus ossos e
nuvens,
enterrá-la onde
não haja escape.
como os que buscam
no alforje
entre serpes
o alimento de seus
mortos,
também ofertarei
meu corpo
às figurações da
chuva e do trópico,
também poderei
ungir
as cartilagens
nulas de seu nome.
e sobre o deserto
e sobre os despojos
de tudo
o que restou da
tarde em seu transporte
permanece a mesma
busca,
incessante, de uma
terra mais
profunda e gasta,
cada dia mais distante.
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Fonte:
Revista Brasileira: Fase VIII - Abril-Maio-Junho 2014 - Ano III - Nº 79
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