A QUE PARTIU HÁ POUCO
A Sonia Coutinho
in memoriam
A que partiu há
pouco
há muito vinha
partindo
com os amigos
mortos
os pais mortos
o irmão morto
os namorados e
maridos que começavam a morrer
os livros que lera
e escrevera
morrendo nas
estantes
(que estalavam no
meio da noite
suspirando em suas
mais lentas
mortes)
com sonhos mortos
e lembranças da
juventude há muito morta
lembranças
principalmente de
Paris
à qual planejava
voltar em breve.
A que partiu há
pouco
há muito procurava
de certa maneira
inconsciente
o que pudesse
fazer para enganar
ao menos em parte
o que se adensava
com tantas mortes.
Continuava ela a
respirar
a se mover
a tecer alguns
sonhos
e olhava a vida e
pouco a reconhecia
nada mais tinha a
ver com as pessoas
as ruas
e então voava de
regresso à cidade antiga
mas descobria logo
que ela estava também cheia de mortos
mesmo alguns que
continuavam
respirando e se
movendo
porque já não
passavam de fantasmas
para os quais ela
era uma aparição
que os assustava
pois trazia
consigo um cortejo de mortos
e eles pensavam
que ela também fazia parte dele
e por isso entre
ela e eles não poderia haver mais nada
que justificasse o
retorno à cidade antiga.
E então ela voava
em sentido contrário
e permanecia na
cidade maior
com seu cortejo de
mortos
e de novo voava à
cidade antiga
indo e voltando
voltando e indo e
principalmente
pensando em Paris.
E um dia disse a
uma velha amiga
que voltaria de
vez à cidade antiga
onde ficaria com
mais sossego
e não mais
sentindo
(esperava)
os vazios que iam
crescendo em seu íntimo.
Antes porém iria
rever Paris
e pela mais bela
cidade andaria longamente
embora não mais
aguentasse longas caminhadas
ah
Paris
seu recanto mais cintilante
da memória.
E então o telefone
chamava inutilmente hora após hora
noite e dia
e por fim foram
até lá
abriram a porta
e ela certamente
já partira
na tão sonhada
viagem
porque ali só
encontraram um corpo frio
e murcho como os
livros das estantes.
Esta a história
que posso contar
da que partiu há
pouco e há muito vinha partindo
como todos nós que
temos igualmente nossos cortejos
de mortos
e um dia
ocuparemos o nosso lugar e também partiremos
em definitivo
rumo a
espero eu
Paris.
SONETO À SOMBRA DE ORFEU
Ó meninos, ó noites, ó sobrados!
Jorge de Lima
Luas iluminavam
cabeleiras
de moças,
debruçadas nos sobrados,
que acordavam em
nós fundas olheiras
onde sonhavam
sonhos assustados.
Ó meninos, ó
noites, ó sobrados!
Esperanças de
Gatas Borralheiras,
Belas
Adormecidas... Constelados,
queimávamos em
íntimas fogueiras.
Ó luares,
sobrados, cabeleiras
descendo docemente
em cachoeiras
sobre os que não
sabiam que, encantados,
ainda iriam arder
vidas inteiras
nas chamas de
enluaradas cabeleiras...
Ó meninos, ó
noites, ó sobrados!
SONETO DA LUMINOSA RONDA OU UMA VISITA A
MÁRIO QUINTANA
A Sérgio de Castro Pinto
E eis de volta a
Memória, a de onde emana
a imagem da
ruazinha sossegada,
já tão longe...
Mas bela, enluarada,
como se fosse um
verso de Quintana.
Como se fosse a
alma de Quintana,
que meu pai
revelou-me: emocionada
leitura; éramos
jovens; constelada
a vida na poesia
de Quintana.
E um dia
apresentaram-me ao Poeta,
mas já o bem
conhecia pela ronda
de aventuras
vividas em discreta
cumplicidade. A
luminosa ronda
em que ainda sigo
meu pai e o Poeta
pelo vago País de
Trebizonda...
SONETO DA ALMA COMO UM RIO
Penso sempre tua
alma como um rio
em que de mim não
se reflete nada
agora. Antes,
talvez uma apagada
sombra se
percebesse, mas um frio
vento soprou o
tempo, e eis que um vazio
se fez. E então já
não restou mais nada,
a escassa sombra
foi-se, dissipada,
e tudo se apagou
de mim no rio.
Contou-se um conto
e agora já mais nada
se reflete de mim.
Só há o frio
cantando uma
esperança naufragada.
Não tem culpa tua
alma desse frio
lembrando-me que
sou água passada,
pois, como rio, é
sempre outro rio...
SONETO DO FULGOR
Sempre estará em
mim esta lembrança
de que mal sei
falar, pois que é magia
de luar, de sol,
de mar, de fantasia
de purezas antigas
de criança.
Quem foi você?
Quem é? Uma esperança
outrora, sim.
Depois, densa agonia,
brisa de asas de
anjo, poesia.
E tudo de você.
Nunca me cansa
lembrar-me. Que é
sonhar de novo o sonho
que você foi. E é.
E noite e dia,
dormindo ou acordado,
o mesmo sonho.
Que sonho e sou. E
vivo, imensamente,
na dor suave e na
áspera alegria
de fulgurar em mim
secretamente.
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Fonte:
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014
Fonte:
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014
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