terça-feira, 24 de novembro de 2015

Ruy Espinheira Filho: "5 Poemas"

A QUE PARTIU HÁ POUCO
A Sonia Coutinho
in memoriam

A que partiu há pouco
há muito vinha partindo
com os amigos mortos
os pais mortos
o irmão morto
os namorados e maridos que começavam a morrer
os livros que lera e escrevera
morrendo nas estantes
(que estalavam no meio da noite
suspirando em suas mais lentas
mortes)
com sonhos mortos
e lembranças da juventude há muito morta
lembranças
principalmente de Paris
à qual planejava voltar em breve.
A que partiu há pouco
há muito procurava
de certa maneira inconsciente
o que pudesse fazer para enganar
ao menos em parte
o que se adensava com tantas mortes.

Continuava ela a respirar
a se mover
a tecer alguns sonhos
e olhava a vida e pouco a reconhecia
nada mais tinha a ver com as pessoas
as ruas
e então voava de regresso à cidade antiga
mas descobria logo que ela estava também cheia de mortos
mesmo alguns que continuavam
respirando e se movendo
porque já não passavam de fantasmas
para os quais ela era uma aparição
que os assustava
pois trazia consigo um cortejo de mortos
e eles pensavam que ela também fazia parte dele
e por isso entre ela e eles não poderia haver mais nada
que justificasse o retorno à cidade antiga.
E então ela voava em sentido contrário
e permanecia na cidade maior
com seu cortejo de mortos
e de novo voava à cidade antiga
indo e voltando
voltando e indo e
principalmente
pensando em Paris.

E um dia disse a uma velha amiga
que voltaria de vez à cidade antiga
onde ficaria com mais sossego
e não mais sentindo
(esperava)
os vazios que iam crescendo em seu íntimo.
Antes porém iria rever Paris
e pela mais bela cidade andaria longamente
embora não mais aguentasse longas caminhadas
ah
Paris
seu recanto mais cintilante
da memória.

E então o telefone chamava inutilmente hora após hora
noite e dia
e por fim foram até lá
abriram a porta
e ela certamente já partira
na tão sonhada viagem
porque ali só encontraram um corpo frio
e murcho como os livros das estantes.

Esta a história que posso contar
da que partiu há pouco e há muito vinha partindo
como todos nós que temos igualmente nossos cortejos
de mortos
e um dia ocuparemos o nosso lugar e também partiremos
em definitivo
rumo a
espero eu
Paris.



SONETO À SOMBRA DE ORFEU
Ó meninos, ó noites, ó sobrados!
Jorge de Lima

Luas iluminavam cabeleiras
de moças, debruçadas nos sobrados,
que acordavam em nós fundas olheiras
onde sonhavam sonhos assustados.

Ó meninos, ó noites, ó sobrados!
Esperanças de Gatas Borralheiras,
Belas Adormecidas... Constelados,
queimávamos em íntimas fogueiras.

Ó luares, sobrados, cabeleiras
descendo docemente em cachoeiras
sobre os que não sabiam que, encantados,

ainda iriam arder vidas inteiras
nas chamas de enluaradas cabeleiras...
Ó meninos, ó noites, ó sobrados!



SONETO DA LUMINOSA RONDA OU UMA VISITA A MÁRIO QUINTANA
A Sérgio de Castro Pinto

E eis de volta a Memória, a de onde emana
a imagem da ruazinha sossegada,
já tão longe... Mas bela, enluarada,
como se fosse um verso de Quintana.

Como se fosse a alma de Quintana,
que meu pai revelou-me: emocionada
leitura; éramos jovens; constelada
a vida na poesia de Quintana.

E um dia apresentaram-me ao Poeta,
mas já o bem conhecia pela ronda
de aventuras vividas em discreta

cumplicidade. A luminosa ronda
em que ainda sigo meu pai e o Poeta
pelo vago País de Trebizonda...



SONETO DA ALMA COMO UM RIO

Penso sempre tua alma como um rio
em que de mim não se reflete nada
agora. Antes, talvez uma apagada
sombra se percebesse, mas um frio

vento soprou o tempo, e eis que um vazio
se fez. E então já não restou mais nada,
a escassa sombra foi-se, dissipada,
e tudo se apagou de mim no rio.

Contou-se um conto e agora já mais nada
se reflete de mim. Só há o frio
cantando uma esperança naufragada.

Não tem culpa tua alma desse frio
lembrando-me que sou água passada,
pois, como rio, é sempre outro rio...



SONETO DO FULGOR

Sempre estará em mim esta lembrança
de que mal sei falar, pois que é magia
de luar, de sol, de mar, de fantasia
de purezas antigas de criança.

Quem foi você? Quem é? Uma esperança
outrora, sim. Depois, densa agonia,
brisa de asas de anjo, poesia.
E tudo de você. Nunca me cansa

lembrar-me. Que é sonhar de novo o sonho
que você foi. E é. E noite e dia,
dormindo ou acordado, o mesmo sonho.

Que sonho e sou. E vivo, imensamente,
na dor suave e na áspera alegria
de fulgurar em mim secretamente.

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Fonte:
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014

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