terça-feira, 24 de novembro de 2015

Myriam Fraga: "5 Poemas"

PROVÉRBIO

Não adianta chorar o leite derramado,
Pois o que já passou nunca mais voltará.
Na ciranda da vida, esse é o nosso destino,
Viageiros sem rumo numa incerta jornada.

Se o caminho foi longo, ao longo da estrada
Fomos deixando amores, dores, sofrimentos,
Que esquecidos ficaram, como se encantados,
A dormir, para sempre, nas ruínas do tempo.

Até que de repente, num breve momento,
Ressurgem outra vez no coração aflito,
Acendendo mágoas, reinventando segredos,

E novamente vivos, de novo despertos,
A renascer das cinzas, voltam como espectros,
Assustadoramente, a assombrar nossos dias.



OCASO

A luz que amadurece em meus cabelos
Põe reflexos de cobre nos espelhos
Onde a tarde se alonga como um rio
A escorrer suas águas nos vazios

De um passado distante que perdura
Além de todo além e onde se escuta
Um som de antiga flauta murmurante
A despertar momentos esquecidos.

No mais tudo é silêncio, tudo assombro,
Ante o esplendor do sol que se apagando
Deixa apenas um risco no horizonte,

Como um rastro de luz que se divide
Entre o esplendor do dia que se esconde
E a escuridão que aos poucos se insinua.



O RIO

Devagar, devagar, desço ao mais fundo
Precipício que avisto além do escuro
Patamar debruçado sobre o abismo
Que é o ponto terminal desta jornada.

Nesta escura descida tão funesta,
Às vezes, como pássaros furtivos,
Vão despontando os sonhos que ficaram
Esquecidos ao longo do caminho.

De degrau em degrau, na longa escada,
Vou vencendo a distância que me resta
Enquanto o sol se apaga no horizonte

E o mundo em volta rápido escurece,
Até que, finalmente, avisto o rio
E o barqueiro no leme à minha espera.



POENTE EM MAR GRANDE

Vista da ilha, ao longe, a cidade é como um sáurio,
Um dragão multicor, a dormir embalado
Pelas ondas do mar que docemente o afagam,
Na volúpia das águas que nunca se acalmam.

Na praia a alongar-se a maré mansa se espraia,
Ao sabor da enchente, no estertor da vazante,
À sombra dos coqueiros que esgarçam suas palmas
No sopro dos ventos de um verão que se acaba.

Na barra os recifes desenham um mandala
Cujo centro é a ilha, santuário encantado,
De uma esfinge ancestral a devorar a tarde.

O sol, com seu pincel, incendeia as vidraças,
Mas a chama de ouro pouco a pouco se apaga
E atrás da amendoeira a luz da lua se espalha.



MANDALA

Aos poucos, devagar, chego ao abismo,
Ao fundo de mim mesma, ao precipício
Onde dormem desejos impossíveis,
No escondido dos sonhos mais secretos.

Aos poucos vou cumprindo e desenhando,
Na medida das pontas do compasso,
O círculo imperfeito desta vida,
Do tempo inicial do nascimento

Ao centro do mistério que atravesso
Sem saber onde leva a correnteza
Das águas desse rio que me arrasta,

Cuja foz é a nascente que adivinho
E onde se encontra o fim e o recomeço
No arremate das linhas que desfaço.


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Fonte:
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014

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