sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Ronaldo Costa Fernandes: "5 Poemas"

ANOITECIMENTO

Anoitece no meu coração coberto de ervas e,
na luta desigual, cresço com a miséria.
Trens trazem minérios de rumor e tristeza.
Além da janela, homens caçam a manhã,
enterram no lodo o tempo da esperança
e cavam fundo até aparecer o osso do mundo.
Nem mesmo as minhas imaginações servem
na tarde ferida e de tijolos exaltados
para inventar suposta vida
que não seja experiência sem retorno.
A vida como carro desgovernado
a mais de duzentos quilômetros por hora,
em noite chuvosa, numa estrada não sinalizada.
Se ao menos soubesse
o ponto de chegada dos lobos,
não me atormentaria com o tempo
que não tem começo nem fim.



LIÇÕES

Existir é a prova dos nove.
Um dia me cansarei de ser
a nota dissonante
e abandonarei a lição de casa,
a lição da rua, a lição da vida,
oh, Deus,
todas as lições que nunca aprendi.
Lição se aprende com o corpo.
O corpo tem sua matéria,
sua disciplina, seu passar de ano.
A natureza ensina com galhos,
cada folha que cai é um ponto.
Por toda parte há as esquinas das vírgulas.
Tenho medo do abc das torrentes,
da aritmética das montanhas,
da História das minhas dores.
Minha dor é um fruto
que, amadurecido, não cai
e vai apodrecendo o galho,
o caule e a raiz tormentosa.



BANDEIRA

Minha bandeira é não dar bandeira.
Minha bandeira é o toque de silêncio,
a morte do soldado desconhecido
que sou.
Quem depositará flores
neste monumento à minha batalha?
Minha ordem não tem progresso



POEMA BARROCO

Quem carrega a morte consigo
traz duas formas de vida,
quem leva a vida morrendo
quando chega a verdadeira
por fim encontra unidade na derradeira.
Divide-se o corpo em dois,
uma parte já há muito não servia,
a outra é apenas conteúdo
para o continente ataúde.

Esta é a multidão mais desprezada,
não se observa na rua
o cemitério vertical das almas oxidadas
o campo santo das avenidas
o movimento distrital
das almas no trânsito
cada qual em seu carneiro
cada qual em seu carro funerário.

  

TORRE

Todas as torres são de Babel.
Na minha cidade todos os edifícios
são torres habitadas.
Os edifícios falam línguas diversas.
As torres quando se exibem
colocam seus vestidos de lâmpadas.
As torres morrem em pé
e, de pé, soberbas, apodrecem.
Todos os homens são torres
que vagam babélicos.
Uns são torres inertes,
outros são torres escondidas
na névoa da noite
– a luz vermelha no alto não
é alerta, mas o alto
medo de fazer da vida
uma viagem sempre em alerta.
Quem quer ascender
sofre a vertigem da torre:
em vez de abismo para baixo
são abismos para cima.



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Fonte:
Revista Brasileira: Fase VII - Abril-Maio-Junho 2009 - Ano XV - Nº 59 - (Academia Brasileira de Letras - ABL)

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