sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Anibal Beça: "5 Poemas"

SOLO

Assim como chega
sem convite à vista
esse ruflar de asas
me assalta e conquista
me cobre e agasalha
no cobre do outono.
Mas logo me deixa
de novo o abandono
de tardes vazias
olhando andorinhas
tão leves tão lentas
de tanta preguiça.

Agora percebo
que sou passageiro
mero cão rafeiro
aqui neste banco
farejando a praça
de nuvem esgarçada
no azul distraída.
A cor que me fica
me enterra amarelo
e o sol sem a gema
me deixa o lençol
tão claro de claras.



O BEIJO
“Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada”.
Herberto Helder
“Boca ó minha delicia meu néctar eu te amo“
Gillaume Apollinaire

Punhais de nuvens descem com os ventos
Desembainhados nos lívidos lábios
Abrindo à fuga o fogo do momento

Seda e linho se atiçam nesse acaso
Para a chuva de sílaba imanente
Regando a pele fina que se enlaça.

Úmido aço no laço sem tormento
Desfaz todos os nós toda trapaça:
Molhado lambe a língua rio fluente.

A porta se escancara e tudo passa
Sem grãos medindo a hora nua ausente
Enquanto mãos caçando viram caça.

A fala dos afetos frente a frente
Derrete-se ao veludo das palavras
E vai esvaziar o véu silente.

Nervura calipígia denso espasmo
Revira persiana iridescente
Raio de íris fremente em mar de pálpebras.

Estrela negra rompe o céu cadente
Rútila brilha a lira acalentada
Desfalecendo o arpejo umidamente

Suor falaz dos poros pelos flancos
As mãos soletram montes num poente
De um sol mormaço rubro caligráfico

Escrita em arrepio abstinente
A ausência se estertora em ímã sáfico
Um hino de atração soa dolente.

Dois lábios que se encontram num abraço
São asas de avoantes reticentes
Mas sabem do selvagem no céu vasto.



OS ARAUTOS
“Hay golpes en la vida, tan fuertes … Yo no sé!”
César Vallejo

Já não se me pousa o corvo heráldico
pela palha esfarrapada das vestes
pelo escuro canto dos arautos:
Nunca mais...

O fio se fia para o novelo da roca
um rodar tartamudo com soluços
o tempo solavanca em sua boleia
e eu, como Vallejo, não sei...

Uma folha se eleva leve e vai em vão
interceder num diálogo com o vento
mas turbulências são evidentes na face
valas profundas vincadas...

O que me salva é minha tarefa.
Não me afogo em lagos encharcados de culpa:
os meus pecados não caberiam num sermão
de confessionários não sei...

Apenas sei que a lâmina vibra em sua luz
ilumina os poucos pêlos ralos
e no espelho se traduz a minha espera.
Falta-me o forno para queimar o pão
no entanto carrego um vulcão na alma
crepitando erupções passadas:
assim me quedo sem saber de nada

Quando virá? Não sei...



PARÊMIAS

Colho do olhar a calma mansidão
presente, sempre armada na visão.

Vejo e muito olho o lombo nas retinas
de livros grossos lidos na surdina.

Eis que da estante fogem personagens
todos aqueles vistos na viagem

Na descoberta mágica do sonho
Acordado, nas lentes, um sardônico

ser, plasmado entre o medo e os meus pecados
de Sade a Nabokov degredado

lambendo em Chatterley godivas ladies
prendo lolitas dóceis nas paredes.

Madame Bovary o teu Flaubert sou eu!
Despindo as tuas vestes, teu plebeu.

Entre basilios e bentinhos sei-me Eça
Cruzado com Machado em dor expressa.

Na verdade nem Freud nem Masoch
Apenas um comum ser sem retoque.

  

PROFANO
Para Marcos Sena

Passa a noite com seu fio
e vai deslizante e célere
nesse meu olhar distante.

A lamparina refulge
a memória acesa em chama
ardendo acontecimentos.

Tento pendurar-me ao fio
da corda e ao calor das horas
mas o fogo não me é fuga.

Plumas do sonho me sabem
um ajoelhado insone
no evangelho dos notívagos.

Ajoelhado, jamais!
Disse-o ao seu ouvido um dia.
quando senhor me sabia.

Rodilhas dentadas dançam
nos segundos dos ponteiros:
a dissoluta engrenagem.

Chegada a hora do vinho
ela me lavou os pés
perdoei-a com a fala

Cabelos revoltos voam
na curvatura do dorso.
Não me soube mais divino.

Então a lavei com a língua
e a enxuguei com oliveiras.
Ouvi distante: ECCE HOMO!



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Fonte:
Revista Brasileira: Fase VII - Abril-Maio-Junho 2009 - Ano XV - Nº 59 - (Academia Brasileira de Letras - ABL)

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