terça-feira, 24 de novembro de 2015

Affonso Manta: "5 Poemas"

O REALEJO DE VINHO
Para Solon Barreto

Para quem me queira ouvir:
Sou um homem aos frangalhos.
Parte por culpa de tudo.
Parte por culpa de nada.

E digo mais ao casual
Ouvinte deste relato:
Não sendo herdeiro nem rico,
Não tenho crédito na praça.

Amo as japonas escuras,
De mangas e tudo vasto.
E os colarinhos puídos
Uso desabotoados.

Ao pôr a minha gravata,
Fabrico um laço bem largo.
E acho triste andar com ela.
E, mais tristes, as gravatas.

Eu nunca faço questão
Que uma roupa seja cara.
Mas, ampla: e, sendo possível,
Com certo ar desesperado.

Eu prefiro, aos bons charutos,
Um velho e forte cigarro.
E odeio fumar cachimbo.
Pois sou muito angustiado.

No mais: um vento me agita,
Interior e largado,
E me devasta os cabelos,
Rosto, sorriso e palavra.


LÁ VAI AFFONSO MANTA

Com estrelas na testa de rapaz,
Com uma sede enorme na garganta,
Lá vai, lá vai, lá vai Affonso Manta
Pela rua lilás.

Coroa de alumínio sobre o crânio,
Lapelas enfeitadas de gerânios
E flechas no carcás.

Manto florido de madapolão,
Bengala marchetada de latão,
Desfila o marechal,

O rei da extravagância, o sem maldade,
O campeão da originalidade,
O peregrino astral.



RELÂMPAGOS
Para Garbogini Quaglia

Lembrar-me do que fui nunca me cansa.
Cansa-me andar no centro do Destino.
Eu sou feliz porque já sou menino.
Menino não precisa de esperança.

Eu revirei a vida pelo avesso.
Eu encontrei o fio da meada.
Eu dei no mundo muita cabeçada.
Eu sei onde é o fim e onde o começo.

Quem me dera estar santo de uma vez.
E enlouquecer de luzes de repente.
Mas conservando toda a lucidez.

Viver sem o limite, em plena graça,
Na paz de uma razão incandescente
Capaz de dar relâmpagos na praça.



PÊNDULO
Para Iêda Machado

Conduza meu carneiro cor de vinho
Para pastar os lírios brancos do ar.
Guarde meu coração devagarinho
Na cômoda da sala de jantar.

Tire do gaiolim meu passarinho.
Ele gosta do sol e de voar.
Ponha no armário verde, com carinho,
A roupa que eu vesti para brincar.

Seja um anjo, meu anjo, de bondade.
Não zombe do meu passo hesitante.
Não moteje da minha enfermidade.

Eu sou algo indeciso, eu vacilo,
Eu cambaleio sem razão bastante
E, lento como um pêndulo, eu oscilo.



PORÃO

Estarmos separados e distantes
É, para mim, um triste e amargo vinho.
E não ter mais agora o teu carinho
São-me agonias lentas e constantes.

Teus olhos, que me foram diamantes
E iluminavam todo o meu caminho,
Não querem ver como eu estou sozinho
E me abandonam todos os instantes.

Tu que eras o repouso do guerreiro,
Sem pena do teu pobre companheiro,
Foste embora, indomável coração.

E a minha fome de ternura e afeto
Ficou assim como qualquer objeto
Esquecido no fundo de um porão.





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Fonte:
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014

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