MONSTRO
Não importa se na
forma de um poema ou não.
Ou importa?
O conteúdo é a
forma?
Viver a alteridade
radical – ser um outro –
foi o desejo da
minha aventura humana. Hoje
eu mesmo sou o
Outro.
Aventuro-me a ser
esse Outro, quem sou:
cedo às exigências
que sobem do meu corpo;
respondo ao que
considero ser
as demandas das
minhas entranhas;
preencho-me de
minha própria história, como se ela desse a forma
do que desde
sempre fui e sou.
Sólido e denso
agora
como um touro
obedeço
ao que está
escrito
na carne dos
mamíferos
nos astros?
Engordo e
envelheço
como todos os
porcos, como todos os bichos.
TEMPO DE SATURNO
Mais uma vez – a
terceira ou quarta em quase cinquenta anos
de vida ganha e
perdida neste planeta, procurando ao mesmo tempo alçar voo
e deitar raízes,
adaptar-me, ganhar
forma e sentido, como um pássaro
de outro
continente,
ferido, perdido
em pânico,
entre exitoso e
falho
me emociono diante
da Fontana di Trevi:
Fonte de águas
claras, e fonte de lágrimas
nos olhos do meu
rosto.
Quase cinquenta
anos – e o velho
e novo Netuno,
como se fosse eterno, no entanto,
como em nenhum
outro lugar no espelho cego
no espelho cego de
tão iluminado, dessa fonte
acena ainda com
suas promessas de amores.
Do outro lado, do
outro lado da fonte, do muro, do outro lado
de Roma, está o
Paraíso.
Mas lá não há
nada. Sei que seus portais jamais se abrirão. Apenas
uma emoção que eu
ainda desconheço, plantada na minha carne,
como um saudade de
mim mesmo;
(eu, que
desconheço quem ou o que sou, e que nunca saberei.
Eu, que um dia
talvez tenha sido, sem sabê-lo, sem ser nunca quem era.)
Netuno na fonte
suspira o aceno da redenção,
com suas Vênus e
Afrodites, algumas encarnadas
em minha vida, e
por elas agradeço e sorrio, e triste
sem saber por quê,
sem me dar conta, entre discretas águas, nomeio
todas as mulheres
que amei, todos os encontros que sempre foram promessas
e porque apenas
promessas, encontros infinitos
na Fontana di
Trevi, num trem de Florença a Montepulciano,
numa excursão ao
Vesúvio,
diante da bancada
de peixes da feira de Laranjeiras,
num refrigerador
às 3 horas da madrugada num mosteiro no interior
do Estado de Nova
York,
numa encruzilhada
de jardim na Índia,
no pátio de uma
escola num bairro de classe média de São Paulo há 40 anos,
na porta de um
teatro alternativo de Curitiba,
na cafeteria do
Museu de Arte Moderna de São Francisco...
Agora sei que o
máximo a nós permitido é apenas isso: contemplá-lo
na forma de Netuno
emergindo dos oceanos, jorrando as águas cristalinas
e afrodisíacas,
absinto, ambrosia, exigindo
de nossos pobres
corpos e mentes que envelheçam com comedimento
nossos pobres,
glorificados corpos perdidos nas fronhas do tempo,
para sempre deste
lado do paraíso
na grande e
pequena plataforma do possível.
Mas para chegar
aos cinquenta deve-se muito a Cronos, e nesse mesmo dia
de que é feito a
vida no planeta, em giros
e em meio às
ruínas do Fórum romano
o que restou do
templo de Saturno me diz algo sobre fantasia
e sobre o corpo
das meninas
que como alegoria
se transfere para toda metafísica,
e sem rimas ou
floreios,
sem metáforas, sem
rodeios, sem poesia:
quando enfim
metemos a língua em seus orifícios
o gosto é sempre o
mesmo.
Templo de Saturno,
de joelhos, humilde:
peço-lhe apenas as
bênçãos para viver aqui,
envelhecendo com
um mínimo de bom senso.
ENVELHECIMENTO
Monstruoso,
Como um porco,
amarrado e imobilizado pelas quatro patas,
Mas ainda capaz de
urrar, e entrando nos cinemas e nos cafés,
Ainda que calado,
não deixou de amar a vida,
De sentir-se até
certo ponto interessado; apenas um pouco enfadado
E distante, e no
fim das contas, comer, beber e ficar gordo.
Monstruosos, somos
agora todos.
Depois de tantos
poemas e amores e risos, insossa
É a noite, e agora
não passas
De um velho parco;
que em vão se afasta...
Todos os momentos,
do primeiro ao último
Poderiam ter sido
outros, mas você
Nasce dos
acontecimentos.
O que há de novo é
o velho:
Temos nos acompanhado a distância.
Sabemos ambos que ocupamos
Mais ou menos o mesmo espaço.
Mas ainda não trocamos nenhuma palavra
Nem fomos formalmente apresentados.
Eu e esse mesmo não nos falamos.
Mas o encontro é inevitável.
AURÉOLA
A vida acabou.
Sou outro agora.
Porque
irremediavelmente perdi o que havia desde sempre perdido.
Meu nome é
redimido.
Nesse sentido, sou
o que sou.
Humano.
Morto-vivo.
Sem destino.
Organismo vivo
entre os vivos.
AMÊNDOA
a ferida
cicatrizada forma um caroço
que se guarda no
corpo
como um troço na
garganta
incomodando
sem conseguir ser
cuspido: um cancro
uma amêndoa
apodrecida
escura por dentro,
meio esterco
coisa suja
orgânica
catarro, coriza
sangue de chouriço
um banzo
fruto dos
fracassos a serem transmutados
contra a velhice
a mística
a escrita
não valem nada
esse topázio,
essa granada.
,
,
---
Fonte:
revista Brasileira: Fase VIII - Outubro-Novembro-Dezembro 2014 - Ano III - Nº 81
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