quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Marcelo Sandmann: "5 Poemas"

COM O VENTO

Faço o inventário das coisas
que me chegam com o vento:

A tosse seca no sobrado vizinho.
O cheiro de carne queimada
nos trigais da Ucrânia.
A centrífuga da máquina de lavar
em movimento.
Um cão latindo longe, aflito.
Os gritos das crianças
nas vielas sujas de Gaza.
O cravo perfurando a mão
esquerda de Cristo.

São as coisas que me chegam
com o vento,
nesta tarde de desabrigo.



PARTIDO DO FRIO

Penso tirar partido do frio.
Esse frio não tão somente
condição atmosférica
(posto seja isso, sim,
agudamente),
mas também
todo um estado de espírito.

Preparo versos de gelo,
que devo mastigar
com o prazer de quem mastiga
pedras.

E que quero cuspir,
junto a cacos de dente
e uma baba de muco e sangue,
nessa parede indene,
frígida,
asséptica.



TAXIDERMIA

Com lâmina de aço inexorável,
ele fere firme a epiderme,
esgarça os nervos,
retalha os músculos,
revira as vísceras
e risca nos ossos
sua inicial.

Taxidermista habilidoso,
extrai do corpo
o que nele há de carne.

E esse invólucro difuso,
a que muitos chamam
“alma”,
vai enchendo de palavras,
palha vã
que nos mantém.



MENOS CLARAS

Vamos falar de coisas
menos claras.
Do que à primeira vista
não pode nem ser visto.
Do que em contato
escape
a todo tato.

Vamos ouvir o som de um sismo
percutindo
no fundo de cratera
de satélite em declínio
de planeta perdido
em remoto
sistema solar.

Vamos sonhar com o que foge
à Matemática,
pois que é de outra matemática,
mais dura e rara.
Um cálculo que o cérebro
processe
quando em coma.

Vamos amar
a mulher em chamas,
vulcão em trabalho de parto.
Ela verte com fúria suas cinzas,
e lava em lavas
o que esteja
no caminho.

Vamos rezar ao deus abatido
que jaz no fundo
do corpo.
Que jaz no fundo do copo.
Essa água mais seca
que a sede,
mais turva que o vinho


VIDA SECA

Ah, pare com tantos ais,
que a vida não é mais que isso.
Tem o duro, o bruto, o presto,
brilho, riso é só resto.
Não busque o que não se acha.
Não lamente. Já, já passa.
E uma outra agonia se acha.
Não entre na dor tão fundo,
nem queira tanto do mundo.
Veja a cadela Baleia
e a lição que ela nos dá.
Foi somente ao morrer que,
feliz, vislumbrou preás.


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Fonte:
revista Brasileira: Fase VIII - Outubro-Novembro-Dezembro 2014 - Ano III Nº 81

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