COM O VENTO
Faço o inventário
das coisas
que me chegam com
o vento:
A tosse seca no
sobrado vizinho.
O cheiro de carne
queimada
nos trigais da
Ucrânia.
A centrífuga da
máquina de lavar
em movimento.
Um cão latindo
longe, aflito.
Os gritos das
crianças
nas vielas sujas
de Gaza.
O cravo perfurando
a mão
esquerda de
Cristo.
São as coisas que
me chegam
com o vento,
nesta tarde de
desabrigo.
PARTIDO DO FRIO
Penso tirar
partido do frio.
Esse frio não tão
somente
condição
atmosférica
(posto seja isso,
sim,
agudamente),
mas também
todo um estado de
espírito.
Preparo versos de
gelo,
que devo mastigar
com o prazer de
quem mastiga
pedras.
E que quero
cuspir,
junto a cacos de
dente
e uma baba de muco
e sangue,
nessa parede
indene,
frígida,
asséptica.
TAXIDERMIA
Com lâmina de aço
inexorável,
ele fere firme a
epiderme,
esgarça os nervos,
retalha os
músculos,
revira as vísceras
e risca nos ossos
sua inicial.
Taxidermista
habilidoso,
extrai do corpo
o que nele há de
carne.
E esse invólucro
difuso,
a que muitos chamam
“alma”,
vai enchendo de
palavras,
palha vã
que nos mantém.
MENOS CLARAS
Vamos falar de
coisas
menos claras.
Do que à primeira
vista
não pode nem ser
visto.
Do que em contato
escape
a todo tato.
Vamos ouvir o som
de um sismo
percutindo
no fundo de
cratera
de satélite em
declínio
de planeta perdido
em remoto
sistema solar.
Vamos sonhar com o
que foge
à Matemática,
pois que é de
outra matemática,
mais dura e rara.
Um cálculo que o
cérebro
processe
quando em coma.
Vamos amar
a mulher em
chamas,
vulcão em trabalho
de parto.
Ela verte com
fúria suas cinzas,
e lava em lavas
o que esteja
no caminho.
Vamos rezar ao
deus abatido
que jaz no fundo
do corpo.
Que jaz no fundo
do copo.
Essa água mais
seca
que a sede,
mais turva que o
vinho
VIDA SECA
Ah, pare com
tantos ais,
que a vida não é
mais que isso.
Tem o duro, o
bruto, o presto,
brilho, riso é só
resto.
Não busque o que
não se acha.
Não lamente. Já,
já passa.
E uma outra agonia
se acha.
Não entre na dor
tão fundo,
nem queira tanto
do mundo.
Veja a cadela
Baleia
e a lição que ela
nos dá.
Foi somente ao
morrer que,
feliz, vislumbrou
preás.
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Fonte:
revista Brasileira: Fase VIII - Outubro-Novembro-Dezembro 2014 - Ano III Nº 81
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