terça-feira, 24 de novembro de 2015

Maura de Senna: "5 Poemas"

CANTO DA COMPANHEIRA

Sairei pela manhã clara em busca do pensamento do mundo.
Irei até as searas e as trepidantes fábricas
e surpreenderei o operário em seu labor.
Vê-lo-ei mover êmbolos e turbinas, hélices e tratores
e, comovida e atenta, lhe farei perguntas.
Entrarei nos barcos, descerei às minas,
estarei nas mansões e rios cortiços
nas igrejas e nas tascas
pois nenhum lugar me há de ser vedado.
Escutarei as ânsias do povo, as pedras da rua
e verei as lutas entre o velho e o novo.

Escreverei então
com suor e sangue e o húmus da terra
o que houver captado
assim unida, colada ao fundo da vida
e filtradas pela minha emoção
mensagens novas chegarão aos homens.

Voltarei pelo fim da tarde
com ligeiros passos
para pôr, antes da noite,
flores vivas no grande jarro.
Cortarei rosas no jardim em tua honra
rosas e dálias para te saudarem.
Voltarei com ligeiros passos
e quando chegares trazendo teu dia
áspero, participante, lúcido
e cachos de begônias rubras para mim
já estarão soltos meus cabelos
e acesa a lâmpada.



AMOR

Em verdade te digo que não foi naquela hora
que te pertenci:
quando me tomaste nos teus braços poderosos
e me tiveste sob teus beijos e tua respiração.
Em verdade te digo que não foi naquela hora
mas quando, diante do teu, surgiu meu espírito livre e novo
de rebento inquieto deste século
e descobrimos todas as comunhões das nossas almas.
Quando conheceste as minhas derrotas
e disseste que eram triunfos.
Quando viste pulsar meu coração nu
e o festejaste.
Quando soubeste que nem sempre
os teus pensamentos são os meus pensamentos
nem os teus caminhos são os meus caminhos.
Mas o amor brilhou como nunca em tua face
e me surpreendeste com a cascata de palavras
de que eu tinha sede
desde a minha primeira hora consciente.
Foi quando te pertenci.



LIBERTAÇÃO
A Teresinka Pereira

Que eu saia de mim
e corte com ânsia todos os mares
e chegue a todas as praias sem fadiga.
Que eu esteja nas grandes planícies, nas montanhas,
no lodo
e no tumulto, na orla dos lagos e dos abismos.
Que eu saia de mim
e fique nos caminhos o meu hálito.
Que todos os clamores e todos os risos
e também todos os silêncios repercutam em minha
orelha
e a minha língua se torne clara e ardente como o sol
e todos me entendam, os meninos, os pobres.
Que eu saia de mim
e com a soma de minhas libertações
e a massa de minhas vitórias sobre mim
me volte leve e humana
para as angústias e os problemas dos homens.
Que eu saia de mim
e jamais interrogue sobre o princípio, sobre o fim,
mas sempre diante do universo
meu espírito agnóstico seja um olho comovido.
Que eu saia para sempre de mim
e seja uma nova criatura
em que as coisas e os seres fiquem grudados.
Que eu não volte para mim
que para sempre me perca
da criatura salva
todos sejam impregnados.



TUDO FALTARIA
A Nina Costa Dantas
  
Ainda que no meu minuto de poesia eu praticasse
o nudismo completo da alma
e as gentes se curvassem diante da minha pureza;
embora eu possuísse a graça dos lírios do campo
e a minha palavra fosse como água clara
rolando da montanha
e eu me sentasse ao lado dos sábios da terra;
e ainda que eu tivesse a beleza de Paulina Bonaparte
e os homens me chamassem divina
e a doçura das úmidas bergamotas
meu amado sempre achasse em minha boca;
ainda assim, tudo faltaria
se eu não tivesse o humano em todos os meus gestos.
Se o rosto de todas as crianças
eu não quisesse banhado de ventura
como se elas tivessem brotado de minha carne
e devorado meu sangue antes de nascer.
Tudo faltaria
se eu não fosse capaz de querer
para todo ser humano
o pão, a rosa e a paz.



CANTO DAS MÃES

As mulheres levavam os filhos pequenos pela mão
e, a seu lado, os que já tinham sonhos e namoradas.
Levavam até mesmo os recém-nascidos
que haviam arrancado dos berços
e erguiam nos braços como bandeiras.
Filhas de todos os povos, milhões de mães unidas,
pararam diante da face lívida
dos que estavam preparando a destruição
da carne de sua carne.
Pararam para cantar.
Apertando os filhos ao peito
elas diziam com suas vozes límpidas
que não os dariam para a matança.
(Esperavam pedras e pragas, dardos e maldições
os donos das fábricas da morte?)
No entanto, o que tiveram pela frente foi mais forte,
pois o verbo simples do amor, o salmo indefeso da paz
os derrotou.
Naquele encontro face a face,
enquanto as mães cantavam, os monstros compreendiam
que era a própria fonte da vida que cantava,
que eles nada mais podiam.
Forças cósmicas se haviam desencadeado
contra os seus desígnios
e os brotos da terra, que eles pretendiam cortar,
queriam crescer e amar.
Olharam, por fim, com vergonha e desolação
as suas grandes fábricas inúteis.
Os meninos estavam salvos.
E começou então
uma nova terra e um novo céu
com flores e frutos e trigais e risos
e pombos brancos voando sobre a cabeça dos povos.

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