POEMA À BOCA FECHADA
Não direi:
Que o silêncio me
sufoca e amordaça.
Calado estou,
calado ficarei,
Pois que a língua
que falo é de outra raça.
Palavras
consumidas se acumulam,
Se represam,
cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em
limos transformadas,
Vaza de fundo em
que há raízes tortas.
Não direi:
Que nem sequer o
esforço de as dizer merecem,
Palavras que não
digam quanto sei
Neste retiro em
que me não conhecem.
Nem só lodos se
arrastam, nem só lamas,
Nem só animais
bóiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em
cachos se entrelaçam
No negro poço de
onde sobem dedos.
Só direi,
Crispadamente
recolhido e mudo,
Que quem se cala
quando me calei
Não poderá morrer
sem dizer tudo.
NA ILHA POR VEZES HABITADA
Na ilha por vezes
habitada do que somos, há noites,
manhãs e
madrugadas em que não precisamos de
morrer.
Então sabemos tudo
do que foi e será.
O mundo aparece
explicado definitivamente e entra
em nós uma grande
serenidade, e dizem-se as
palavras que a
significam.
Levantamos um
punhado de terra e apertamo-la nas
mãos.
Com doçura.
Aí se contém toda
a verdade suportável: o contorno, a
vontade e os limites.
Podemos então
dizer que somos livres, com a paz e o
sorriso de quem se
reconhece e viajou à roda do
mundo infatigável,
porque mordeu a alma até aos
ossos dela.
Libertemos devagar
a terra onde acontecem milagres
como a água, a
pedra e a raiz.
Cada um de nós é
por enquanto a vida.
Isso nos baste.
RETRATO DO POETA QUANDO JOVEM
Há na memória um
rio onde navegam
Os barcos da
infância, em arcadas
De ramos inquietos
que despregam
Sobre as águas as
folhas recurvadas.
Há um bater de
remos compassado
No silêncio da
lisa madrugada,
Ondas brancas se
afastam para o lado
Com o rumor da
seda amarrotada.
Há um nascer do
sol no sítio exato,
À hora que mais
conta duma vida,
Um acordar dos
olhos e do tacto,
Um ansiar de sede
inextinguida.
Há um retrato de
água e de quebranto
Que do fundo
rompeu desta memória,
E tudo quanto é
rio abre no canto
Que conta do
retrato a velha história.
POEMA PARA LUÍS DE CAMÕES
Meu amigo, meu
espanto, meu convívio,
Quem pudera
dizer-te estas grandezas,
Que eu não falo do
mar, e o céu é nada
Se nos olhos me
cabe.
A terra basta onde
o caminho pára,
Na figura do corpo
está a escala do mundo.
Olho cansado as
mãos, o meu trabalho,
E sei, se tanto um
homem sabe,
As veredas mais
fundas da palavra
E do espaço maior
que, por trás dela,
São as terras da
alma.
E também sei da
luz e da memória,
Das correntes do
sangue o desafio
Por cima da
fronteira e da diferença.
E a ardência das
pedras, a dura combustão
Dos corpos
percutidos como sílex,
E as grutas do
pavor, onde as sombras
De peixes irreais
entram as portas
Da última razão,
que se esconde
Sob a névoa
confusa do discurso.
E depois o
silêncio, e a gravidade
Das estátuas
jazentes, repousando,
Não mortas, não
geladas, devolvidas
À vida inesperada,
descoberta,
E depois,
verticais, as labaredas
Ateadas nas
frontes como espadas,
E os corpos
levantados, as mãos presas,
E o instante dos
olhos que se fundem
Na lágrima comum.
Assim o caos
Devagar se ordenou
entre as estrelas.
Eram estas as
grandezas que dizia
Ou diria o meu
espanto, se dizê-las
Já não fosse este
canto.
ESPAÇO CURVO E FINITO
Oculta consciência
de não ser,
Ou de ser num
estar que me transcende,
Numa rede de
presenças e ausências,
Numa fuga para o
ponto de partida:
Um perto que é tão
longe, um longe aqui.
Uma ânsia de estar
e de temer
A semente que de
ser se surpreende,
As pedras que
repetem as cadências
Da onda sempre
nova e repetida
Que neste espaço
curvo vem de ti.
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