sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Mário Beirão: "5 Poemas"

CINTRA
A Teixeira de Pascoaes

Oh Pena, altar de nuvens sobre a Serra,
Paço de sombras reais, feito em granito
E
séculos de Azul, — olhando a Terra
Das janelas que ogivam o Infinito!
Oh vôo das florestas que se esfolham,
Tontas de céus, fragrância!
Oh tardas sombras roxas da Distância!
Ruínas — noite donde as águias olham!
Oh cedros esmanchando as ramarias,
Afofando penumbras!
Crepúsculos longínquos de arcarias!
Água que, ao pôr-do-sol, és múrmura e deslumbras,
Que deslumbras meus olhos, meus ouvidos,
E, incerta de gemidos,
Vais esculpindo a diáfanos lavores
As pedras onde o sol desmaia e verte cores!
Oh paisagem do céu! Cintra! Visão suprema!
Arquitetura dos acordes dum poema!
Em ti as mãos do Vento em fúria batalharam!
O Gênio e a Lenda para alem te perpetuaram!
Oh Graça que desceste à Terra por encanto,
Granitos que, ao luar, sois brancos alabastros,
Ramos verdes, à noite, onde estremecem astros,
Meu canto vem de vós, é para vós meu canto!
Fraguedos, serrania,
Do alto de vós olhando,
Tolhidos de invernia,
Alados de neblinas!
Nos longes acenais, notívagos, em bando,
Franjas, espuma vaga de cortinas,
Aéreas e nevadas,
Farrapos onde a Noite esconde as madrugadas…
Oh figuras dum drama subterrâneo,
Gélidas do pavor das sombras que repassam!
Fragas, espectros vãos, que a um rasgo momentâneo,
O vento esculpe e os raios despedaçam!
E ao longe o Mar é um canto de epopéia
Memorando naufrágios…
Profundo ferve, anseia,
Lívido estagna, e sonha, e pára no caminho!
Eis que numa revolta, amargo de presságios,
Lavra de espuma e som visões em desalinho,
Rasga o pano da Noite e, monstro de águas, uiva,
E tomba doido a rir, sobre os areais, exausto…
A areia escalda ao sol… Ígnea de sede ruiva,
Mina-se de água e Azul, absorve o mar num hausto!
Oh Cintra, rente ao céu, o Mar te afaga,
Floresces em murmúrio, em hálitos de vaga…
De ti eu dominei, varei os horizontes,
Estou cansado já, fui Júpiter na Terra!
Nas tuas fontes,
Onde um crepúsculo erra
E o ar é de abandono,
Que eu fosse o musgo em sombra verdecendo,
A voz de longe e Outono,
Baixinho fenecendo…
Fosse a humildade!
Os úmidos recantos
Onde a sombra se esquece, incerta de saudade,
E a chuva caiem prantos…
Fosse o tronco musgoso, enverrugado,
Onde — lembrança eterna,
Um coração se vê de setas trespassado!
Fosse a Elegia do Ar quando o Ar inverna,
Rumores de água, queixas…
…Mansa, como rezando,
" — Porque me deixas!"
Como que a Sombra diz no seu silêncio frio
Á fonte de esquecida memorando,
Lucilante de lágrimas a fio…
Ah, pudesse eu viver pela espessura
Dos bosques rumorosos,
Ás horas em que a Sombra as coisas transfigura!
Ser o Outono, o crepúsculo, a harmonia
Das aves cuja voz é um hálito de luz
De poentes que morrem de saudosos!
Vestir os troncos nus,
Chorar melancolia…
Á tarde quando a luz penumbras vem rezando
A Forma é Aparição,
Há lágrimas de Azul as almas orvalhando,
A Cor é emanação…
Tudo se transfigura:
Há paisagens, cenários pela Altura!
Eu deixo de existir
Para mais dentro em mim viver, sentir…
É a hora transcendente
Em que o Passado surge evocador do escuro,
E, sôfrego, o Presente
Dissolve a nevoa do Futuro.
Oh Pena ao alto erguida,
Recortada na sombra — aza de águia perdida,
Nas rochas esfarpando-se!
Nuvem numa outra nuvem evolando-se…
Oh Cintra, ao poente, a fumos de viuvez,
Subindo num adeus,
Quimérica de longe a Terra já não vês:
É uma ânsia de Infinito a que te abrasa,
Oh verde forma de aza
Com frêmitos de céus!
Oh Cintra és já Distância
Na comunhão dos astros!
Teus granitos transformam-se: alabastros,
De brancos a rezar… Ideal sonância!
E, eu que vivi em ti, rezo contigo,
Eu, o incerto, misérrimo mendigo,
Trago nos olhos tristes pedrarias,
Astros radiando pálidos fulgores,
Desmaios de harmonias,
No concerto mais intimo das cores.
E a Noite escuta, empalidece,
Um murmúrio de voz esvoaça numa prece:
Flébil, o ar magoando,
Idílios suspirando,
Duma estrela que nasce ao pôr-do-sol
O canto chora… lágrimas sem fim!
A alma dum rouxinol
Sonha com Bernardim.
E desfez-se, apagou-se
Em ondas de saudade — o olor mais doce…
Súbito, heróico de saudades,
Um canto acorda, funde o bronze das Idades!
Oh canto pela noite, em prantos marulhado,
Memória em cujo olor há mortas primaveras,
Pelos astros, o Espaço cadenciado,
Ungido pela benção das Esferas,
Falas da minha raça, dos profetas
Invectivando o Mar,
De mouros pela areia, cujas setas
Eram menos mortíferas que o olhar!
Oh ritmo das oitavas
Nas veias do meu sangue a tumultuar!
Oh lira de Camões, acordes de ondas bravas!
E, brônzea a voz sucumbe: os céus ficam arfando,
Reboando, ecoando…
Mas a candura, a graça do sorriso,
De quem vive a morrer,
E tem no olhar de magoa o Paraíso,
E Deus no coração sem o saber,
Desfolham-se num hálito de outono
Pelos céus, pelas almas de abandono…
Oh moreno cantor a ouvir de bruços,
Das góticas ogivas merencórias,
Musgosas de saudade,
Ecos duma outra Idade,
Vozes de viola zoando moribundas,
Morrendo gemebundas;
Crepúsculo de som, penumbra de memórias…
Oh Lusíada absorto
Na quimera do Alem! Infante é tudo morto,
De que serve esperar!
Falas de longe: a Morte diz à Vida
A sua grande, eterna despedida…
Em ti, meu pálido Anto,
Há mortos a falar!
Oh moribunda voz em lágrimas de canto…
E eis-me perdido e só, como um ceguinho,
Tateio céus de extática harmonia,
E vejo Deus em mim a ungir-me de carinho,
E sou onda de luz em melodia…
Morri para viver alem da Morte:
Meu negro olhar agora é azul-celeste,
Ouço na minha lira o meu transporte,
Senhor! Bendita a morte que me deste!
Oh floresta! Oh granitos revestidos
De auroras e crepúsculos e Lenda:
Que o som da minha lira a vós ascenda!
Vossa escultura de intima harmonia
Seja acordes em echos desferidos,
Eternidade, Azul, melancolia…
Quero inclinar a fronte,
Quero dormir ouvindo de Além-Mundo
Meu carme gemebundo
Rasgando nuvens, céus, aladamente,
E, baixinho, humaníssimo, contente,
Umedecendo ressequida fonte…
E eis-me esculpindo formas de florestas,
Eis-me gravando a som um tronco esquálido,
Abrindo nas prisões esguias frestas,
Por onde o luar se escoa muito pálido…
Eis-me gravado a som, eis-me esculpindo
Oh Cintra o teu perfume pelo Outono…
Eis-me sagrado e lindo,
Rasgando a luz a noite do meu sono…
E vivo a Eternidade no meu canto!
Atônito de mim, revolvo mundos,
Sou mágico de encanto,
Erro pelos abismos mais profundos,
E trago auroras rútilas nos olhos
E harmonizo de paz os horizontes!
Sou melodia úmida do mar
Rezada nos escolhos…
E, ao vir do Outono, incerto de Distância,
Saudoso olor memora a minha infância,
Vou ausente de mim por mim a andar…
Tudo o que eu fui acorda! É água viva…
Cintra, vagueio em ti! Nas tuas fontes
Minha saudade em lágrimas deriva,
E o Outono é o meu fantasma a recordar!



TEUS OLHOS

Teus olhos de tão mística elegia,
resplandecentes de penumbra viva,
Perdem-se em mim: do meu olhar deriva
A luz da mais cristã melancolia!

Possa eu viver em ti, nessa harmonia
De memorante paz meditativa;
Minha alma da tua alma se cativa,
Aspira o teu silêncio que inebria!

Teu vulto no Ar imprime-se em debuxos
De recortada flor; visões perpassam
Nocturnamente nos teus olhos bruxos!

Uma fonte discorre outonos tristes;
Caem flores do Céu; almas esvoaçam;
Estendo as mãos... adeus! Já não existes!



ENLEVO

Porque esse olhar de sombra de temor
Se perde em mim, às horas do sol posto,
Quando é de âmbar translúcido o teu rosto,
E a tua alma desmaia como flor;

Porque essas mãos, ardidas de fervor,
Ampararam minha vida de desgosto,
Pobre que sou, Mulher, eu hei composto
Harmonias de prece em teu louvor!

Dei-te a minha alma para ti nascida,
Meus versos que são mais que a minha vida;
Por Deus, perdoa ao mísero mendigo!

Perdoa a quem, ansioso de outro mundo,
Implora à Morte o sono mais profundo,
Só pela graça de sonhar contigo!



ALELUIA

Se cantas, nasce o dia;
A luz segreda à flor: Ave, Maria!

Tudo é silêncio, espanto,
Quando vaga no Azul o teu encanto...

Passas e deixas no ar
O perfume das rosas de toucar!

Creio em ti, como em Deus;
Viver à tua luz é estar nos Céus!

Verdes enleios de hera
Cingem de amor teu vulto, ó Primavera!

Nos perdidos caminhos,
Voam gorjeios, músicas dos ninhos...

A Terra em névoas de ouro
Ascende a Deus em teu olhar de choro!

Senhora da Harmonia,
Em ti a minha vida principia!

Se voas pela Altura,
Gravas no Azul a tua formosura!

Teu voo é um longo adeus:
O caminho das almas para os Céus...

Longe, saudosa, adejas,
E pairas sobre mim... bendita sejas!

  

CASTELO DE BEJA

Castelo de Beja,
No plaino sem fim;
Já morto que eu seja,
Lembra-te de mim!

Castelo de Beja,
De nuvens toucado;
A luz que te beija
É sol do Passado!

Castelo de Beja,
Espiando o inimigo;
Te veja ou não veja,
Sempre estou contigo!

Castelo de Beja,
Feito de epopeias;
Um sonho flameja,
Nas tuas ameias!

Castelo de Beja,
Subindo, lá vais...
Tu fazes inveja
Às águias reais!

Castelo de Beja,
Lembra-te de mim:
Saudade que adeja,

No plaino sem fim...


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Fonte
"Toda a Poesia: Antologia Poética". Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2015.

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