sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Mário Alves de Oliveira: "5 Poemas"

LANCHE ERUDITO
A Márcio Chavadian

Em torno dessa mesa, todo dia,
matamos nossa sede, nossa fome,

e quanto mais se bebe, mais se come,
mais se engorda de brisa e poesia.

Prazer de mastigar o pão torrado
molhado em café quente e humanismo,

sorver aos goles, Bíblia, cristianismo,
sondar se o mel do mal contém pecado.

Falar de futebol, filosofia,
passando de Pelé a Kierkegaard,

entre fumaça, pó, e muito alarde,
lembrar o novo tema: ecologia.

Cinema e diretores, prato cheio
para o mingau-de-aveia da cultura;

delícia de sabor fica a mistura
de pão com queijo, René Clair no meio.

Um pulo na pintura, e besuntamos
a boca de manteiga e de fovismo;

cubinhos de Picasso e de cubismo
para tirar o gosto ... e terminamos.

Levanta-se por fim, deixa-se a mesa,
levando-se dali o que se pode:

fatias de alegria, de beleza,
farelos de Fellini no bigode.



POEMA ÚMIDO

Chegando então a chuva, veio março,
molhou todo o papel dos calendários,

os dias escorreram nas paredes
atrás do fundo podre dos armários.

Deu lodo junto ao tanque, a samambaia
desceu pelos portais em grossas pencas,

infiltrações de verde sobre as lajes
cobriram-nas de musgos e de avencas.

Os livros nas estantes deram mofo,
mofaram sob as camas os chinelos.

De dentro dos sapatos e das botas
romperam de imprevisto os cogumelos.

A vida umedeceu nas prateleiras
entre potes de barro e tardes frias,

pisou em poça d´água nas calçadas,
escorregou em limo muitos dias.

Por fim, arroz e trigo deram brotos,
nasceram tinhorões, o sol surgiu,

e como no princípio dos princípios,
partiu levando março e trouxe abril.



TRÊS POR QUATRO

Eu sou assim como se fosse feito
de estopa, de cortiça, de isopor:
no coração de látex, anódino,
transitam mal as emoções, a dor.

Os olhos dizem, só não contam tudo
do muito que retenho disfarçado.
Do signo de câncer, caranguejo,
vou lento e defensivo: pelo lado.

Às vezes rompo a crosta, vou à tona,
deixo escapar o sentimento exangue.
Os astros não perdoam: sou de julho,
cada gota de amor me custa sangue.



BÍLIS

Arde a vida no sangue e fere as veias
com seu tropel de gatos em demência,
e é sempre dor mais fina, mais ardência,
quando transborda e livre se incendeia,

quando desfecha golpes de clemência
nos pátios, corredores de cadeia,
nos muros e masmorras onde freia,
onde estrangula a doce displicência.

Dói a vida na pele e dói nos pêlos:
na via-crúcis íngreme das rugas,
na queda e na brancura dos cabelos.

Dói a vida nos lados, fora e dentro,
e o resto são comédias e são fugas
à dor atroz e funda que há no centro.




CONSTRUÇÕES

Veja você: na construção da casa
gastou-se todo o esforço do casal.
A casa ficou pronta, ficou sólida,
o lar porém desfez-se no final.

Tudo foi feito no rigor da técnica,
não se falou em preço, economia.
Veja você quanto tijolo usou-se,
quantas lajotas, telha e esquadria.

Os azulejos, os ladrilhos postos
combinam nos padrões, nos coloridos.
Veja você a qualidade em torno,
nos móveis, nos armários embutidos.

No muro, nas paredes e nas portas,
buscou-se, mais que tudo, segurança.
Um bom projeto, quando bem traçado,
resguarda o morador da vizinhança.

Um bom projeto sabe a conta certa
de vergalhão, de pedra, de cimento.
Só que não sabe a quantidade exata
do amor na engenharia do aposento.

Sabe prever as corrosões, os danos,
infiltrações, ferrugens, maresia.
Só não se ocupa das porções de sonho
que escorrem pelo tanque, pela pia.



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Fonte:
Revista Brasileira: Fase VII - Julho-Agosto-Setembro 2009 - Ano XV - Nº 60 - (Academia Brasileira de Letras - ABL)

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