LANCHE ERUDITO
A Márcio Chavadian
Em torno dessa
mesa, todo dia,
matamos nossa
sede, nossa fome,
e quanto mais se
bebe, mais se come,
mais se engorda de
brisa e poesia.
Prazer de mastigar
o pão torrado
molhado em café
quente e humanismo,
sorver aos goles,
Bíblia, cristianismo,
sondar se o mel do
mal contém pecado.
Falar de futebol,
filosofia,
passando de Pelé a
Kierkegaard,
entre fumaça, pó,
e muito alarde,
lembrar o novo
tema: ecologia.
Cinema e
diretores, prato cheio
para o
mingau-de-aveia da cultura;
delícia de sabor
fica a mistura
de pão com queijo,
René Clair no meio.
Um pulo na
pintura, e besuntamos
a boca de manteiga
e de fovismo;
cubinhos de
Picasso e de cubismo
para tirar o gosto
... e terminamos.
Levanta-se por
fim, deixa-se a mesa,
levando-se dali o
que se pode:
fatias de alegria,
de beleza,
farelos de Fellini
no bigode.
POEMA ÚMIDO
Chegando então a
chuva, veio março,
molhou todo o
papel dos calendários,
os dias escorreram
nas paredes
atrás do fundo
podre dos armários.
Deu lodo junto ao
tanque, a samambaia
desceu pelos
portais em grossas pencas,
infiltrações de
verde sobre as lajes
cobriram-nas de
musgos e de avencas.
Os livros nas
estantes deram mofo,
mofaram sob as
camas os chinelos.
De dentro dos
sapatos e das botas
romperam de
imprevisto os cogumelos.
A vida umedeceu
nas prateleiras
entre potes de
barro e tardes frias,
pisou em poça
d´água nas calçadas,
escorregou em limo
muitos dias.
Por fim, arroz e
trigo deram brotos,
nasceram
tinhorões, o sol surgiu,
e como no
princípio dos princípios,
partiu levando
março e trouxe abril.
TRÊS POR QUATRO
Eu sou assim como
se fosse feito
de estopa, de
cortiça, de isopor:
no coração de
látex, anódino,
transitam mal as
emoções, a dor.
Os olhos dizem, só
não contam tudo
do muito que
retenho disfarçado.
Do signo de
câncer, caranguejo,
vou lento e
defensivo: pelo lado.
Às vezes rompo a
crosta, vou à tona,
deixo escapar o
sentimento exangue.
Os astros não
perdoam: sou de julho,
cada gota de amor
me custa sangue.
BÍLIS
Arde a vida no
sangue e fere as veias
com seu tropel de
gatos em demência,
e é sempre dor
mais fina, mais ardência,
quando transborda
e livre se incendeia,
quando desfecha
golpes de clemência
nos pátios,
corredores de cadeia,
nos muros e
masmorras onde freia,
onde estrangula a
doce displicência.
Dói a vida na pele
e dói nos pêlos:
na via-crúcis
íngreme das rugas,
na queda e na
brancura dos cabelos.
Dói a vida nos
lados, fora e dentro,
e o resto são
comédias e são fugas
à dor atroz e
funda que há no centro.
CONSTRUÇÕES
Veja você: na
construção da casa
gastou-se todo o
esforço do casal.
A casa ficou
pronta, ficou sólida,
o lar porém
desfez-se no final.
Tudo foi feito no
rigor da técnica,
não se falou em
preço, economia.
Veja você quanto
tijolo usou-se,
quantas lajotas,
telha e esquadria.
Os azulejos, os
ladrilhos postos
combinam nos
padrões, nos coloridos.
Veja você a
qualidade em torno,
nos móveis, nos
armários embutidos.
No muro, nas
paredes e nas portas,
buscou-se, mais
que tudo, segurança.
Um bom projeto,
quando bem traçado,
resguarda o
morador da vizinhança.
Um bom projeto
sabe a conta certa
de vergalhão, de
pedra, de cimento.
Só que não sabe a
quantidade exata
do amor na
engenharia do aposento.
Sabe prever as
corrosões, os danos,
infiltrações,
ferrugens, maresia.
Só não se ocupa
das porções de sonho
que escorrem pelo
tanque, pela pia.
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Fonte:
Revista Brasileira: Fase VII - Julho-Agosto-Setembro 2009 - Ano XV - Nº 60 - (Academia Brasileira de Letras - ABL)
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