quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Marcos Siscar: "5 Poemas"

TOMBEAU

o túmulo está em toda parte na terra
onde abrimos trincheiras à unha na água
em que nos afogamos de cerveja no fogo
do tacho queimando calhamaços no ar
onde sepultamos balões coloridos
buracos que fazemos em cada curva
do cioso apego à história já escrita
sempre esteve ali e em outra parte
sempre nos serviu e nos deixou a ver navios
o túmulo nos seduziu com o esquecimento
com o rock style da última estação
mas nos deu memória e nos civilizou
como a pedra e o nome só não está
no esquecimento da página não escrita
ou nela sobretudo como um buraco
invertido uma vasta superfície gelada
uma indiferença branca onde repousa
a mordida aplacada de sua boca



SIMPLICIDADE

a cidade é o que está diante
não tenho mais uma cidade
não me peça cores de simplicidade
sei apenas disso e é muito simples
preciso daquilo que é simples
a cidade é o que está diante e já
não tenho uma simples cidade
não não tenho essa cidade
(nem aquela assombreada
luzes amarelas sobre os seios
como na boca o leite do dia
nem as outras reluzentes
ao calor da madrugada)
não não as tenho em meu espelho
a cidade está mais à frente


A DISTÂNCIA CONSENTIDA

qual é a distância certa da cidade? a altura
certa para ver a cidade? de onde a cidade
não seja apenas vista de onde não seja apenas
memória de outra ou miragem pressentida
meu desejo desta tarde é o da distância certa
um indício de reciprocidade uma ideia de alegria
não a ilusão panorâmica do visível
mas a distância consentida ali onde se aceita
a invenção da vida as insinuações da morte
a camada de mortos e de vivos sob a vasta
construção em curso metamorfose de cidade
me pergunto onde estou e qual a distância certa
nada além ou aquém desta
nenhuma silhueta nada que passe caro kavafis
sombra ligeira sobre o topo das colinas

  

CONTRALUZ

quando saímos de casa dizemos que são outros tempos
as madeiras são envernizadas as memórias de demolição
o sol queima no rosto e tudo é demasiadamente real
raios ultravioleta fios elétricos sobre os muros
as manchas brancas de protetor solar
quando voltamos o sol já não nos ilumina apenas as colinas no alto
estão acesas de uma luz fosca mas nítida
nenhum calor nos faz carícias sobre o corpo nenhuma
sombra nenhum ideal apenas o protetor
solar escorre
os olhos ardem
e enfim platão desce



NENHUMA ÉPOCA É MAIS DIFÍCIL QUE SEU POEMA

ao lado das meninas de abrigo e tênis nike
sobre o tapete de grama o vendaval da tarde
pôs um véu de sementes de leucaena
como sobre um tapete de grama tão sintética
germinar a cabeça leucocephala de um poema?
procuro soluções mudando perspectivas
com um movimento para cima da cabeça
vejo apenas entranhas de árvores e nada muda
curvado com a cabeça entre as pernas o mundo
se inverte mas tudo continua igualmente inerte
adeus melenas adeus meninas de tênis nike
esmago mudas leucenas mas a vida é invasora
gemina 100 por cento onde quer que caia



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Fonte:
Revista Brasileira: Fase VIII - Abril-Maio-Junho 2013 - Ano II - Nº 75 - Academia Brasileira de Letras - ABL

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