terça-feira, 24 de novembro de 2015

Manuel Anastácio: "5 Poemas"

ELI ELI LAMA SABACHTHANI?

Promete não dizeres mais nada
Entre os arcos desenhados pela minha voz.
De nós, nada mais deve restar agora
Que os dois num só, a sós.
Promete não dizeres mais nada
Enquanto durar a nossa constelação.
Promete manter o céu em silêncio
Até que venha a hora
Em que peçam explicação,
E remoam o espanto
Perante o silêncio de água e sangue
Que escorre dos meus flancos
– Depois de ter gritado a última acusação
Que ninguém compreenderá.
Porque, nessa hora, não me terás abandonado,
Mas aberto a porta
Para que, enfim, retorne, e entre de novo em mim.



CREDO I

Creio num só corpo,
Numa só onda,
Numa só corda,
Num só fim.

Creio, acredito
No sal bendito das lágrimas
Na concreta nudez
Da limpidez das águas
Na urgência do florir da terra
E em cobrir telas e folhas brancas
Com as transparências em que acredito.

Creio,
Num só grito.
Num só corpo,
Numa só onda,
Numa só corda.



LAMENTAÇÃO DA VIRGEM
Para a Maria Helena

No horizonte, na tênue linha onde os gritos morrem
E se cala o eco,
As montanhas concentram-se num fractal
Onde o bem e o mal tomam formas
De insuportáveis dimensões.
Antes do horizonte, insustentáveis, as coisas fogem ao olhar,
E os sentidos obrigam a um só momento.
Antes do horizonte não há memória nem pensamento,
E a erosão destrói a história e qualquer outra ilusória narração.
As imagens, oxidadas, envelhecem, veladas em poeira e abrasão.
Os mantos abrem buracos por onde o coração das coisas vê
as estrelas
E Abraão, sem vê-las, planeia veredas.
Mas antes do horizonte apenas seguem sendas e atalhos
Cortados em retalhos sem limite.
Antes do horizonte, os caminhos
Esbarram na impossibilidade de atravessar o que a luz obriga.
Dos mais curtos, dos prometidos, há pedaços.
Há fragmentos de percursos interrompidos.
Há farrapos de mera possibilidade.
E, na verdade, perdidos,
Somos rendidos nos caminhos pelos deuses que passam
E nos trespassam com sonhos e promessas
Que se esbatem no horizonte.

A erosão corrói a cutícula do universo
E há no seu inverso, a deposição, o mistério das coisas como
elas são.
E, por fim,
Num só múltiplo princípio.



À ESPERA DO TORNADO
(A partir do conto homônimo de Gláucia Lemos)

Um dia ainda escreverei a história
de uma mulher que tinha um homem que a amava
e que um tornado levou.
Escreverei a história de quanto ela esperou.
Contarei como o vento arranhou a face de quem o viu
levando árvores, cães e telhados.
E contarei o caso de, dos homens, só levar os apaixonados.
O vazio no peito dos que não amaram nem amariam
Não compensava o peso dos seus membros estéreis e apagados.
Esses foram poupados.
Poupados ao olho voraz do vazio em que o homem que amava
aquela mulher lhe gritou
Espera por mim, minha amada,
Espera por mim. Um dia voltarei.
E contarei como as mulheres abandonadas
Seguiram, solitárias, pelas estradas, à procura.
E contarei, ó como contarei, enquanto os meus olhos
conseguirem disfarçar as lágrimas,
como o rasto dos seus olhos se espalhava pelo chão,
pelo duro bordo dos trilhos, pelo vermelho dos frutos do café,
pelas ondas alvas do algodão
e pelo verde das folhas com que o milho se vestia.
Pudesse eu, e contaria, ó se contaria,
Como os olhos verdes das que tinham olhos verdes debotou
enquanto o matagal oculto deles se tingia.
Soubesse eu como fazê-lo, e contaria
Como se tornaram mais negras as noites,
Alimentando a sua escuridão com o negro dos olhos,
Das que tinham olhos negros e os viram tornar cinza,
apagando o seu negro brilho na ansiedade que perscruta as
sombras.
Todas seguiram os caminhos da esperança desolada.
Todas, menos a mulher de quem contarei
As horas gastas nos trabalhos em que persistia,
Dia após dia, até ao momento em que, recolhida,
Junto à janela,
Novamente ouvia o vento em lamento melancólico e
pirracento
Que quezilento, em lento protesto lhe repetia
Espera por mim, minha amada,
Espera por mim.

E, após o pedido, a promessa
Um dia voltarei.
E a mulher esperava, sob a areia prateada da noite,
sob a curva abóbada dos noturnos violões
Tornados próximos pelo silencioso hálito de Deus, à noite,
Assim esperava a mulher de quem contarei
A espera, a esperança de que na dança dos elementos
Também houvesse o passo da restituição.
De quem contarei a bênção de acreditar
Que não há vento nem maldição que não devolva
O que seria de justiça não levar.
Contaria, ó como contaria,
Como trazia amarradas as dores do seu segredo sagrado.

Contaria, pudesse eu entender o que mais dizem os galhos
das amendoeiras
Varados pelo vento,
No seu lamento ao ledo e triste alento
Da mulher que tinha um homem que a amava. E que, um dia,
o vento levou.
E por quem ela esperaria,
Depois de esquecidos os sorrisos com que amarrara a dor aos
dias,
Presa ao milagre adiado com que o vento, rendido, o devolveria.


FLORES DE PEDRA 

Ser estranho à vida, vento, julgaste que era pedra
Eu, vento, uma pedra
E jogaste-me como pedra
Eu, vento,
Ao fundo e estranho poço definido nos bordos dos teus abraços,
De pedra eles, de vento eu
Tão estranhos eles, meus, à vida, quanto a tua minha pedra
Onde o vento se aninhou em ventre
E sonha ser pedra
Eu, vento, uma pedra
Afeiçoada à tua minha perda angular
Com que defini, eu vento, o que restava à vida
E expressei-o, a ela estranho,
Apenas e através de grossos traços
riscos proscritos pontos e espaços
Similares nos seus cantos afeiçoados
Aos silhares com que se aparelham peitos e pulsações.
Aos silhares onde o vento se julga pedra.
Onde eu, vento, quero ser pedra.
Eu, vento, uma pedra.

Compreendidas entre os eixos
Das pedras perpendiculares à vida,
Assim as nossas perdas tumulares
Se erguerão, de vento em pedra,
Estranhas à vida,
Em recíproca e lapidar ignorância
Apenas porque a última instância do eco lhes será negada.
Mas entre a nossa vida
E o nosso nada
Nada mais há, querida, que um beijo de mármore
Uma pedra
Uma perda
Uma ternura móvel angular cristalizada.
É por isso que somos pedra
Nós vento, uma pedra
Somos perda
E seremos, como pedras, a vida no teu corpo reencontrada.




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Fonte:

REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 51, 2013

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