ELI
ELI LAMA SABACHTHANI?
Promete não
dizeres mais nada
Entre os arcos
desenhados pela minha voz.
De nós, nada mais
deve restar agora
Que os dois num
só, a sós.
Promete não
dizeres mais nada
Enquanto durar a
nossa constelação.
Promete manter o
céu em silêncio
Até que venha a
hora
Em que peçam
explicação,
E remoam o espanto
Perante o silêncio
de água e sangue
Que escorre dos
meus flancos
– Depois de ter
gritado a última acusação
Que ninguém
compreenderá.
Porque, nessa
hora, não me terás abandonado,
Mas aberto a porta
Para que, enfim,
retorne, e entre de novo em mim.
CREDO I
Creio num só
corpo,
Numa só onda,
Numa só corda,
Num só fim.
Creio, acredito
No sal bendito das
lágrimas
Na concreta nudez
Da limpidez das
águas
Na urgência do
florir da terra
E em cobrir telas
e folhas brancas
Com as
transparências em que acredito.
Creio,
Num só grito.
Num só corpo,
Numa só onda,
Numa só corda.
LAMENTAÇÃO DA VIRGEM
Para a Maria Helena
No horizonte, na
tênue linha onde os gritos morrem
E se cala o eco,
As montanhas
concentram-se num fractal
Onde o bem e o mal
tomam formas
De insuportáveis
dimensões.
Antes do
horizonte, insustentáveis, as coisas fogem ao olhar,
E os sentidos
obrigam a um só momento.
Antes do horizonte
não há memória nem pensamento,
E a erosão destrói
a história e qualquer outra ilusória narração.
As imagens,
oxidadas, envelhecem, veladas em poeira e abrasão.
Os mantos abrem
buracos por onde o coração das coisas vê
as estrelas
E Abraão, sem
vê-las, planeia veredas.
Mas antes do
horizonte apenas seguem sendas e atalhos
Cortados em
retalhos sem limite.
Antes do horizonte,
os caminhos
Esbarram na
impossibilidade de atravessar o que a luz obriga.
Dos mais curtos,
dos prometidos, há pedaços.
Há fragmentos de
percursos interrompidos.
Há farrapos de
mera possibilidade.
E, na verdade,
perdidos,
Somos rendidos nos
caminhos pelos deuses que passam
E nos trespassam
com sonhos e promessas
Que se esbatem no
horizonte.
A erosão corrói a
cutícula do universo
E há no seu
inverso, a deposição, o mistério das coisas como
elas são.
E, por fim,
Num só múltiplo
princípio.
À ESPERA DO TORNADO
(A partir do conto homônimo de Gláucia Lemos)
Um dia ainda
escreverei a história
de uma mulher que
tinha um homem que a amava
e que um tornado
levou.
Escreverei a
história de quanto ela esperou.
Contarei como o
vento arranhou a face de quem o viu
levando árvores,
cães e telhados.
E contarei o caso
de, dos homens, só levar os apaixonados.
O vazio no peito
dos que não amaram nem amariam
Não compensava o
peso dos seus membros estéreis e apagados.
Esses foram
poupados.
Poupados ao olho
voraz do vazio em que o homem que amava
aquela mulher lhe
gritou
Espera por mim,
minha amada,
Espera por mim. Um
dia voltarei.
E contarei como as
mulheres abandonadas
Seguiram,
solitárias, pelas estradas, à procura.
E contarei, ó como
contarei, enquanto os meus olhos
conseguirem
disfarçar as lágrimas,
como o rasto dos
seus olhos se espalhava pelo chão,
pelo duro bordo
dos trilhos, pelo vermelho dos frutos do café,
pelas ondas alvas
do algodão
e pelo verde das
folhas com que o milho se vestia.
Pudesse eu, e
contaria, ó se contaria,
Como os olhos
verdes das que tinham olhos verdes debotou
enquanto o matagal
oculto deles se tingia.
Soubesse eu como
fazê-lo, e contaria
Como se tornaram
mais negras as noites,
Alimentando a sua
escuridão com o negro dos olhos,
Das que tinham
olhos negros e os viram tornar cinza,
apagando o seu
negro brilho na ansiedade que perscruta as
sombras.
Todas seguiram os
caminhos da esperança desolada.
Todas, menos a
mulher de quem contarei
As horas gastas
nos trabalhos em que persistia,
Dia após dia, até
ao momento em que, recolhida,
Junto à janela,
Novamente ouvia o
vento em lamento melancólico e
pirracento
Que quezilento, em
lento protesto lhe repetia
Espera por mim,
minha amada,
Espera por mim.
E, após o pedido,
a promessa
Um dia voltarei.
E a mulher
esperava, sob a areia prateada da noite,
sob a curva
abóbada dos noturnos violões
Tornados próximos
pelo silencioso hálito de Deus, à noite,
Assim esperava a
mulher de quem contarei
A espera, a
esperança de que na dança dos elementos
Também houvesse o
passo da restituição.
De quem contarei a
bênção de acreditar
Que não há vento
nem maldição que não devolva
O que seria de
justiça não levar.
Contaria, ó como
contaria,
Como trazia
amarradas as dores do seu segredo sagrado.
Contaria, pudesse
eu entender o que mais dizem os galhos
das amendoeiras
Varados pelo
vento,
No seu lamento ao
ledo e triste alento
Da mulher que
tinha um homem que a amava. E que, um dia,
o vento levou.
E por quem ela
esperaria,
Depois de
esquecidos os sorrisos com que amarrara a dor aos
dias,
Presa ao milagre
adiado com que o vento, rendido, o devolveria.
FLORES DE PEDRA
Ser estranho à
vida, vento, julgaste que era pedra
Eu, vento, uma
pedra
E jogaste-me como
pedra
Eu, vento,
Ao fundo e
estranho poço definido nos bordos dos teus abraços,
De pedra eles, de
vento eu
Tão estranhos
eles, meus, à vida, quanto a tua minha pedra
Onde o vento se
aninhou em ventre
E sonha ser pedra
Eu, vento, uma
pedra
Afeiçoada à tua
minha perda angular
Com que defini, eu
vento, o que restava à vida
E expressei-o, a
ela estranho,
Apenas e através
de grossos traços
riscos proscritos
pontos e espaços
Similares nos seus
cantos afeiçoados
Aos silhares com
que se aparelham peitos e pulsações.
Aos silhares onde
o vento se julga pedra.
Onde eu, vento,
quero ser pedra.
Eu, vento, uma
pedra.
Compreendidas
entre os eixos
Das pedras
perpendiculares à vida,
Assim as nossas
perdas tumulares
Se erguerão, de
vento em pedra,
Estranhas à vida,
Em recíproca e
lapidar ignorância
Apenas porque a
última instância do eco lhes será negada.
Mas entre a nossa
vida
E o nosso nada
Nada mais há,
querida, que um beijo de mármore
Uma pedra
Uma perda
Uma ternura móvel
angular cristalizada.
É por isso que
somos pedra
Nós vento, uma
pedra
Somos perda
E seremos, como
pedras, a vida no teu corpo reencontrada.
---
Fonte:
REVISTA DA
ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 51, 2013
Nenhum comentário:
Postar um comentário