sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Luís da Gama: "5 Poemas"

RETRATO

É renga, magricela e presumida,
Com pele de muxiba engrovinhada;
O corpo de sumaca desarmada,
A cara de muafa malcozida;

A perna de forquilha retorcida,
Os ombros de cangalha um tanto usada;
A boca, de ratões grata morada,
Maçante na conversa em mal sofrida;

Senhora de um leproso cão rafeiro,
Que, querendo passar por mocetona,
Se besunta com sebo de carneiro;

Vestida é saracura de japona,
De feia catadura, e de mau cheiro,
Eis a choca perua da Amazona.



MINHA MÃE

Era mui bela e formosa,
Era a mais linda pretinha,
Da adusta Líbia rainha,
E no Brasil pobre escrava!
Oh, que saudades que eu tenho
Dos seus mimosos carinhos,
Quando c’os tenros filhinhos
Ela sorrindo brincava.

Éramos dois — seus cuidados,
Sonhos de sua alma bela;
Ela a palmeira singela,
Na fulva areia nascida.
Nos roliços braços de ébano.
De amor o fruto apertava,
E à nossa boca juntava
Um beijo seu, que era a vida.

Quando o prazer entreabria
Seus lábios de roixo lírio,
Ela fingia o martírio
Nas trevas da solidão.
Os alvos dentes. nevados.
Da liberdade eram mito,
No rosto a dor do aflito,
Negra a cor da escravidão.

Os olhos negros, altivos,
Dois astros eram luzentes;
Eram estrelas cadentes
Por corpo humano sustidas.
Foram espelhos brilhantes
Da nossa vida primeira,
Foram a luz derradeira
Das nossas crenças perdidas.

Tão terna como a saudade
No frio chão das campinas,
Tão meiga como as boninas
Aos raios do sol de Abril.
No gesto grave e sombria,
Como a vaga que flutua,
Plácida a mente — era a Lua
Refletindo em Céus de anil.

Suave o gênio, qual rosa
Ao despontar da alvorada,
Quando treme enamorada
Ao sopro d’aura fagueira.
Brandinha a voz sonorosa,
Sentida como a Rolinha,
Gemendo triste sozinha,
Ao som da aragem faceira.

Escuro e ledo o semblante,
De encantos sorria a fronte,
— Baça nuvem no horizonte
Das ondas surgindo à flor;
Tinha o coração de santa,
Era seu peito de Arcanjo,
Mais pura n’alma que um Anjo,
Aos pés de seu Criador.

Se junto à cruz penitente,
A Deus orava contrita,
Tinha uma prece infinita
Como o dobrar do sineiro,
As lágrimas que brotavam,
Eram pérolas sentidas,
Dos lindos olhos vertidas
Na terra do cativeiro.



A CATIVA

Como era linda, meu Deus!
Não tinha da neve a cor,
Mas no moreno semblante
Brilhavam raios de amor.

Ledo o rosto, o mais formoso,
De trigueira coralina,
De Anjo a boca, os lábios breves
Cor de pálida cravina.

Em carmim rubro engastados
Tinha os dentes cristalinos;
Doce a voz, qual nunca ouviram
Dúlios bardos matutinos.

Seus ingênuos pensamentos
São de amor juras constantes;
Entre a nuvem das pestanas
Tinha dois astros brilhantes.

As madeixas crespas negras,
Sobre o seio lhe pendiam,
Onde os castos pomos de ouro
Amorosos se escondiam.

Tinha o colo acetinado
— Era o corpo uma pintura —
E no peito palpitante
Um sacrário de ternura.

Límpida alma — flor singela
Pelas brisas embalada,
Ao dormir d’alvas estrelas,
Ao nascer da madrugada.

Quis beijar-lhe as mãos divinas,
Afastou-mas — não consente;
A seus pés de rojo pus-me
— Tanto pode o amor ardente!

Não te afastes lhe suplico,
És do meu peito rainha;
Não te afastes, neste peito
Tens um trono, mulatinha!...

Vi-lhe as pálpebras tremerem,
Como treme a flor louçã,
Embalando as níveas gotas
Dos orvalhos da manhã.

Qual na rama enlanguescida
Pudibunda sensitiva,
Suspirando ela murmura;
Ai, senhor, eu sou cativa!...

Deu-me as costas, foi-se embora
Qual da tarde do arrebol
Foge a sombra de uma nuvem
Ao cair da luz do sol.



LAURA

Aqui, ó Laura,
No teu jardim,
Pétalas colho
D’alvo jasmim.

Delas rescende
Doce fragrância,
Quais meigos sonhos
Da tua infância.

As plúmbeas nuvens,
Já fugitivas,
Os ermos buscam,
Serras esquivas.

Plácida lua
Nos Céus alveja,
Prateia os lagos,
E as flores beija.

Aqui, ó Laura,
Teus olhos garços,
Na linfa clara,
Nos Céus esparsos.

Lânguidos brilham
Nestas estrelas,
Que as brandas ondas
Retratam belas.

Na cor de rosa,
A luz da lua,
Risonha vejo
A face tua.

Carmíneos lábios
Nos rubros cravos,
Que n’hástea pendem,
Quais melios favos.

Teu níveo colo
— Na estátua erguida
Do amor de Tasso
— Da bela Arminda.

Na onda breve
O arfar do seio,
Que a aragem move
Com brando enleio.

Dos mal-me-queres
Áureos novelos
Os anéis fingem
Dos teus cabelos.

Da violeta
Na singeleza
Tua alma vejo,
Tua pureza

Ergue-te, ó Laura,
Do brando leito,
Dá-me em teu peito
De amor gozar;

Um volver d’olhos,
Um beijo apenas
Entre as verbenas
Do teu pomar.

Não fujas, Laura,
Vem a meus braços
Leva-me vida
Nos teus abraços...

Lá surge um Anjo!
Oh Céus, é ela!
— Estrela vésper
De luz singela!

Cobre-lhe os membros
Alva roupagem,
Que manso agita
Suave aragem.

Longos cabelos
Belos se estendem,
E em ondas de ouro
Dos ombros pendem.

A ela corro
Tento abraçá-la
Recurvo os braços,
Mas sem tocá-la!

Era um Arcanjo
De aéreo sonho
No ar perdeu-se
Ledo e risonho.

Laura formosa
No leito estava,
Dos meus lamentos.
Só desdenhava.

Já a luz do dia
Renasce além,
Debalde espero,
Laura não vem.

Não têm meus versos
Beleza tanta,
Que ouvi-los possa
Quem tudo encanta.

Naquele peito
De olente flor,
Paixões não entram,
Não entra amor.



A BORBOLETA

Sobre a açucena,
Que no horto alveja,
A borboleta
Mansinha adeja;

Libando os pingos
De orvalho brando,
Que a nuvem loura
Vem salpicando.

Meneia os leques
Por entre as flores,
Que o ar perfumam
Com seus olores.

Mimosos leques
De cores finas,
— Tela formosa
Das mãos divinas,

Ora serena,
Pairando a flux,
Esmaltes mostra
Do brilho à luz.

Ora nas águas
Boiando vai,
Qual folha seca
Que ao vento cai.

Ao vir da aurora
Vai do jasmim
Beijar a cútis
D’alvo cetim.

Ao cravo, à rosa
Afagos presta,
— Que a aragem sopra
E o sol recresta.

Ao pôr da tarde
Pousa em delírio
Nas tenras folhas,
Do roxo lírio.

E o frágil corpo
Em sono brando,
Que embala a brisa,
Que vem soprando,

Alívio encontra
Na solidão
Até que d’alva

Rompa o clarão.


---
Fonte
"Toda a Poesia: Antologia Poética". Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2015.

Nenhum comentário:

Postar um comentário