sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Lúcio de Mendonça: "5 Poemas"

ALICE

Os seus olhos são como os das pombas,
sem falar no que está oculto dentro.



CÂNTICO DOS CÂNTICOS

Imagina um sorriso só de criança,
Todo candura, e junta-lhe a meiguice
De um sorriso de mãe; e tens ideado
O sorriso de Alice.
Imagina um olhar - mistério e sonho,
Cheio de luz, de glória, de doidice...
Com a sedução dos olhos da mãe d’água:
E tens o olhar de Alice.
Imagina uma grave melodia,
Tão doce como nunca mais se ouvisse,
Como nunca se ouviu na terra ainda,
E tens a voz de Alice.
Já viste como o cisne fende o lago?
Como desliza a névoa na planície?
Como anda na clareira a pomba rola?
É ver o andar de Alice.
Olha o macio pétalo corado
De rosa que de todo não abrisse.
O mimo da conchinha nacarada
É a boca de Alice.
Se um dia visses no alcantil dos cerros
A imaculada neve que caísse,
Verias, ai de mim! do que é formado
O coração de Alice.



FLOR DE IPÊ

Na clara estação gorjeada,
Em flor o ipê se desata;
Ó bela árvore dourada!
Ó loura filha da mata!
O tronco, o pai, se revê
Todo ufano, todos zelos,
Nesses teus áureos cabelos
Que o sol beija, ó flor de ipê!
As abelhas, jóias vivas,
Adereçam-te o toucado;
Diz-te frases expressivas
O sabiá namorado;
De ramo em ramo o tiê
Cai, com gota de sangue;
E a coral se enrosca langue
Nos teus braços, flor de ipê!
Mas, ai! tanta formosura,
Tão festejada e querida,
Pouco tempo vive e dura,
Logo cai a flor sem vida;
E sombrio e nu se vê,
Mudo, trágico, isolado,
Como um pai desamparado,
O velho tronco do ipê.
Na alegre quadra encantada
Dos sonhos e da esperança.
Vestiu-te a ilusão dourada
O coração de criança;
Surgiu-te - meu Deus! por quê? -
Ante os passos peregrinos
Crianças de olhos divinos,
Loura como a flor do ipê.
Sonhos de que te cobriste,
Coração em primavera,
Caíram, todos, ai, triste!
Quanta dourada quimera!
Eis-te da sorte à mercê,
Já sem viço, já sem flores...
Aqueles pobres amores
Foram como a flor do ipê!



A TAPERA
Les temps sont acomplis, les choses
se sont tues.
LECONTE DE LISLE

A meio vale escuro, à beira do caminho.
Está silenciosa a velha casa em ruína...
Desabitado lar, abandonado ninho,
O horror da solidão fantástica o domina.
O horror da solidão, por quê? também na mata,
Na virgem, secular, inóspita floresta,
Há uma calma grande, em que a alma se dilata;
E, ao invés do terror, que portentosa festa!
Mais funda é a solidão na agreste cumiada
Onde não pisou nunca o bípede tirano;
Mas lá quanta alegria aberta e iluminada!
- O cunho do terror vem dos vestígio humano.
Vê-se um velho postigo escancarado ao poente...
O tosco parapeito apodreceu... e vê-se
Que ali chorou, talvez, de saudades do ausente
Uma noiva fiel, que de esperar morresse.
A bela porta, franca outrora, está fechada...
É ninho de répteis a trapedira amiga.
Que convidava a entrar na plácida morada,
Que já ninguém procura e a ninguém mais abriga.
Pobre, inútil ruína! Olhemos de mais perto,
Pelo teto, que abriu dos temporais o açoite...
Brotam ervas do solo esquecido e deserto...
E este era o coração da casa, ao lar, à noite!
Aqui se reunia, em pacífico bando,
A família, a sonhar os dias do futuro,
Enquanto, fora, o vento andava praguejando
E a noite ia seguindo o seu caminho escuro.
Ali, para o nascente, havia um aposento
Pequeno e recatado... ai! ali, porventura,
Morava a sinhá-moça, o riso, o encantamento
Da rústica vivenda, a doce criatura!
No vão dessa janela aberta para a estrada
Quanta cena de afeto ainda se imagina!...
Um cavaleiro ao longe a sumir-se, e inclinada
Ao parapeito, a branca e chorosa menina...
Desconjuntado, já caindo-lhe os pedaços,
Vê-se um velho oratório... e, coberto de poeira,
Um Cristo mutilado abre os divinos braços...
Quanta fé o beijou na angústia derradeira!
Cá fora, indiferente, ingratamente alheio,
Passa o vento da mata, o alado vagabundo.
Sem um beijo, sequer, ao esqueleto feio
Da ruína sem dono, esquecida no mundo!
Somente à noite agora, ao ter da lua triste
A compassiva luz fantástica e serena,
Reanima-se a tapera e ressuscita e existe
De um sombrio existir que mete medo e pena.
Existe uma alma assim... Outrora foi ruidosa.
Clara, feliz, brilhante à luz da primavera...
Agora é nua e só, - sombra silenciosa,
Morta à beira da vida... a lúgubre tapera!



IDEAL

Desde bem cedo me sorriste,
Ó luz da alma contemplativa!
Na minha noite escura e triste
Hás de brilhar, enquanto eu viva.
Astro do enlevo solitário,
Oculta flor do ermo saudoso,
Lâmpada do íntimo sacrário,
Etérea fonte de almo gozo.
Tu és, na altura inacessível,
O eterno prêmio que eu almejo
E sigo; brilhas impassível
E eu vivo, enquanto ainda te vejo!
Por mais que neste inferno pene
E arder-me a vida toda sinta,
Adoro-te, ó sonho perene!
Ó ambição da alma faminta!
Astro amigo, fulge e cintila.
E roto à vida o frágil nexo,
Venha-me à fronte, enfim tranquila,
A extrema-unção do teu reflexo!

 

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Fonte
"Toda a Poesia: Antologia Poética". Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2015.

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