sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Laurindo Rabelo: "5 Poemas"

NO ÁLBUM DUMA SENHORA

Meu nome aqui deixara solitário
Escrito nessa cor;
Com que desde nascido as faixas d’alma
Tingiu-me o dissabor;

Meu nome aqui deixara solitário
Em traço negro incerto,
Qual friso do buril da desventura
Em claro plano aberto;

A não temer que alguém, que não soubesse
O que este nome diz,
Ao vê-lo neste livro me insultasse
Chamando-me feliz.

Saiba, pois, quem o ler, que de uma Virgem
No livro afortunado
Seu nome escuro, como seu destino,
Escreve um desgraçado!

Sobre ele verta a Virgem uma lágrima
Do seu pranto celeste,
Que talvez se desbotem os negrumes
Do luto que o reveste.

Sim, ó Virgem, do pranto de teus olhos,
Concede, sim, concede
Uma lágrima triste ao pobre nome
Que lágrimas só pede!

De teus olhos quisera uma centelha
Um peito do vulcão;
Ao contrário, porém, só pede pranto
Um morto coração!
O sol ilumina, a gala ofende
Ao solo mortuário:
Só sobressaem os cristais do pranto
Dos mortos no sudário.

Eia, pois, cair deixa neste nome
O teu pranto celeste;
Que talvez se desbotem os negrumes
Do luto que o reveste.



A MINHA RESOLUÇÃO

O que fazes, ó minh’alma!
Coração, por que te agitas?
Coração, por que palpitas?
Por que palpitas em vão?
Se aquele que tanto adoras
Te despreza, como ingrato,
Coração, sê mais sensato,
Busca outro coração!

Corre o ribeiro suave
Pela terra brandamente,
Se o plano condescendente
Dele se deixa regar;
Mas, se encontra algum tropeço
Que o leve curso lhe prive,
Busca logo outro declive,
Vai correr noutro lugar.

Segue o exemplo das águas,
Coração, por que te agitas?
Coração, por que palpitas?
Por que palpitas em vão?
Se aquele que tanto adoras
Te despreza, como ingrato,
Coração, sê mais sensato,
Busca outro coração!

Nasce a planta, a planta cresce,
Vai contente vegetando,
Só por onde vai achando
Terra própria a seu viver;
Mas, se acaso a terra estéril
Às raízes lhe é veneno,
Ela vai noutro terreno
As raízes esconder.

Segue o exemplo da planta,
Coração, por que te agitas?
Coração, por que palpitas?
Por que palpitas em vão?
Se aquele que tanto adoras
Te despreza, como ingrato,
Coração, sê mais sensato,
Busca outro coração!

Saiba a ingrata que punir
Também sei tamanho agravo:
Se me trata como escravo,
Mostrarei que sou senhor;
Como as águas, como a planta,
Fugirei dessa homicida;
Quero dar a um’alma fida
Minha vida e meu amor.



A LINGUAGEM DOS TRISTES

Se houver um ente, que sorvido tenha
Gota a gota o veneno da amargura;
Que nem nos horizontes da esperança
Veja raiar-lhe um dia de ventura;

Se houver um ente, que, dos homens certo,
Neles espere certa a falsidade;
Que veja um laço vil num rir de amores,
Uma traição nos mimos da amizade;

Se houver um ente, que, votado às dores,
Todo com a tristeza desposado,
De cruéis desenganos só nutrido,
Somente males a esperar do fado;

Que venha, acompanhar-me na agonia,
Qu’esta minh’alma, sem cessar, traspassa!
Venha, qu’há muito luto, a ver se encontro
Quem sinta, como eu, tanta desgraça

Venha, sim, que talvez por nosso trato
Uma nova linguagem seja urdida,
Em que possam falar-se os desgraçados,
Que do mundo não seja traduzida.

Por lei inexorável do destino,
Quem gemer à desgraça condenado,
Inda lidando no lidar do mundo,
Há de viver do mundo desterrado.

E em que desterro! Os outros só nos tiram
Os olhos do lugar do nascimento;
A desgraça, porém, do mundo inteiro
Desterra o coração e o pensamento.

Ao menos a linguagem deste exílio
Mais suportável torne a vida crua;
Tenha ao menos a terra da desgraça
Uma linguagem propriamente sua.

E quem tê-la melhor? Por mais que fale
O sedutor prazer em frase ardente,
Por mais que se perfume e se floreie,
Nunca é, como a dor, tão eloquente.

Nos fenômenos d’alma o corpo sempre
Do seu modo de obrar diversifica:
Pelas quebras da orgânica fraqueza
A força esp’ritual se multiplica.

Quando, livre, o esp’rito aos céus remonta,
Da Eternidade demandando o norte,
Toda força primeva recobrando —
Tomba a matéria, e cai nas mãos da morte!

Quando o gás do prazer dilata o seio,
A força do sentir dormente acalma;
Quando a pressa da dor o seio aperta,
A força do sentir se expande n’alma.

Assim novas palavras, novas frases,
Nova linguagem, pede o sofrimento;
Porque dobra o sentir, e duplas asas
P’ra vôos duplos colhe o pensamento:

Não, não pode em seus termos quase inertes,
Esse falar comum de cada dia,
Deste duplo sentir, d’idéias duplas,
Exprimir fielmente a valentia.

Enganai-vos, ditosos! Vossas falas,
Anos que falem, nunca dizem tanto,
Quanto num só momento dizer pode
Um suspiro, um soluço, um ai, um pranto.

Eia, pois, tristes! eia!... desde agora
Uma nova linguagem seja urdida,
Em que possam falar-se os desgraçados,
Que do mundo não seja traduzida.

Veja o mundo, de gozos egoísta,
Qu’os tristes nada têm de suas lavras:
Que, orgulhosos na pátria da desdita,
Nem dos ditosos querem as palavras.



AMOR E LÁGRIMAS

Se fosse possível na minha alma
Amanhecer um dia da ventura,
Corado por um beijo de donzela
Ao despontar d’aurora...

Se, Anjo de salvação mandado ao mísero,
Sorrindo, pelo céu jurasse a bela
Fazer-me cada vez por novos beijos
Mais rubra a cor do dia...

Se fiel companheira em toda parte
Quisesse me seguir, presa comigo,
Como um raio celeste preso a um astro
A iluminar-lhe o curso...

Se a visse, desdenhosa a mil tesouros,
Só por ter-me, deixá-los e contente
A gabar-me o sabor do pão grosseiro
Que me alimenta a vida...

Não a crera; e talvez que até julgasse
Tantas provas de amor atroz perfídia,
Se amor me não brilhasse nos seus olhos
No centro de uma lágrima.

Amor é fogo; o coração que ama
Todo nas suas chamas se evapora,
No rosto se condensa, e chega aos olhos
Em água convertido.

Que é um riso? — Um prazer. Prisão estreita
De duas almas? — Simpatia apenas:
E os abraços e beijos? — Muitas vezes
Sustento de lascívia.

Tudo isso diz amor; mas quando? — Quando,
Filho de um doce afeto que se apura
Nos cadinhos da dor, é batizado,
Num batismo de prantos.

É belo ver-se uns olhos cintilantes,
Acesos em vulcões de fogo ignoto,
A dardejar faíscas invisíveis
Que os corações abrasam:

É belo ver-se um rosto nacarado
No carmim do prazer: é belo ver-se
Partir fino coral de rubros lábios
Um sim d’alma saído:

Mas em rostos assim amor não fala;
E, se fala, as mais vezes diz mentiras;
E este — sim — que tomamos por verdade
É escárnio do crente.

Quereis vê-lo sincero? Observai-o
N’açucena de um rosto desmaiado,
Entre os lírios de uns lábios que roxeiam
Suspiros de agonia:

Nuns olhos, cuja luz crepusculante,
Entre a neve das lágrimas, pareça
Revérbero da alâmpada mortiça
Do templo da saudade.

Aí podeis lhe crer o que disser-vos,
Podeis segui-lo sem temer um crime;
Que amor, se o pranto lhe borrifa as asas,
Seu vôo ao céu dirige.



A SAUDADE BRANCA

Que tens, mimosa saudade?
Assim branca quem te fez?
Quem te pôs tão desmaiada,
Minha flor? Que palidez!...

Ah!... já sei: n’um peito vário
Emblema foste de amor:
O peito mudou de afeto,
E tu mudaste de cor.

Mas não; só peito animado
Por constância e lealdade,
Unida pode trazer-te
Consigo, minha saudade.

Demais tu não mudas; seja
Qual for o destino teu,
Conservas sempre o aspecto
Que a natureza te deu.

Que tens, mimosa saudade?
Assim branca quem te fez?
Quem te pôs tão desmaiada,
Minha flor? Que palidez!

Quem sabe se és flor, saudade?
Quem sabe? Da sepultura
Amor nas pedras penetra
Por milagre da ternura.

Quem sabe... (Oh! meu Deus não seja,
Não seja esta idéia vã!)
Se em ti não foi transformada
A alma de minha irmã?!

“Minha alma é toda saudades;
“De saudades morrerei” —
Disse-me, quando a minh’alma
Em saudades lhe deixei:

E agora esta saudade
Tão triste e pálida... assim
Como a saudade que geme
Por ela dentro de mim!...

A namorar-me os sentidos!
A fascinar-me a razão!...
Julgo que sinto a voz dela
Falar-me no coração!

Exulta, minh’alma, exulta!...
Aos meus lábios, flor louçã!
No meu peito... Toma um beijo...
Outro beijo, minha irmã!

Outro beijo, que estes beijos
Não te proíbe o pudor;
Sou teu irmão, não te mancham
Os beijos de meu amor.

Fala um pouco. Se almas podem
Em flores se transformar,
Sendo almas encantadas,
As flores podem falar.

Mas não falas?... não respondes?...
Oh! cruéis enganos meus!
Saudade, por que me iludes?
Minha irmã!... Meu Deus!... Meu Deus!...

Minha irmã!... minha ventura,
Esperança, encanto meu!
É teu irmão quem te chama!...
Responde!... fala!... Sou eu!

Dista muito o céu da terra?
Os anjos asas não têm?
Desata um vôo, meu anjo!
Não tardes, meu anjo! Vem!

Vem! Ao menos um momento
Quero ver-te, irmã querida:
Embora, depois de ver-te,
Fique cego toda a vida.

Mas não vens? Deus te não deixa
Vir ao mundo, meu amor?
Só devo encontrar no pranto
Lenitivo à minha dor?

Ah! minh’alma desfalece...
E o coração, que apressado
Com tanta força batia,
Mal palpita... está cansado.

Muda, sem termos, nem vozes
Me vai ralando a agonia:
A tempestade de angústias,
Mudou-se em melancolia.

Que é isto?! Como tão negro
Ficou-me todo o horizonte!
Que suor me banha o rosto!
Que peso sinto na fronte!

Ah! meu Deus! graças! aos olhos
O pranto sinto chegar;
Se a boca não fala, ao menos
Os olhos podem chorar.

Nós temos duas saudades;
Uma de sangue ensopada
Pela mão do desespero
No seio d’alma plantada;

Outra da melancolia
Toma o gesto, e veste a cor,
Exangue, pálida e fria,
Mas calada em sua dor.

Parece que a natureza
Quis provar esta verdade,
Quando diversa da roxa

Te criou, branca saudade.
---
Fonte
"Toda a Poesia: Antologia Poética". Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2015.

Nenhum comentário:

Postar um comentário